quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O hábito faz o monge

Ainda não foi acesa mas já está pronta para iniciar a sua função

 

Feita de encomenda e por medida em granito branco primorosamente esculpido por sábias mãos de uma célebre família de canteiros de Gáfete e tenha embora um ar algo mais fino, é tão eficiente como a sua rústica antecessora. E, tal como ela, nunca expeliu um bafo de fumo sequer, para fora da sua zona de combustão, por mais insignificante que fosse. Para certificá-lo basta observar as paredes da sala de uma brancura imaculada que seria impossível assim permanecerem se houvesse fugas indesejadas, por mínimas que fossem.
Herdei dos meus pais e avós este gosto pelo lume de chão ao vivo e ao natural. E estou convicto que os meus dois filhos o herdaram também, pois tal como o pai não o trocam por quaisquer outros aquecimentos mais modernos e menos geradores de cinzas ou sobrantes.
O hábito faz o monge? Talvez. O meu avô José (de quem herdei o nome) não dispensava sentar-se ao seu lume durante todo o outono e inverno, entrando até muitas vezes pela primavera dentro. E à minha avó Amélia, nunca lhe conheci fogão ou fogareiro, fosse a carvão, a petróleo ou a gás. Tudo o que cozinhava (e que comidinhas tão boas fazia) fosse inverno ou verão, era sempre e só em lume de chão a lenha, numa sertã ou nas panelas e caçarolas de barro.
Por seu lado, mal se mudou para a nossa casa aos 80 anos para viver conosco até ao fim da sua vida, o avô Faustino, pai do meu pai (não conheci a minha avó Adelina porque faleceu antes de eu a poder conhecer) imediatamente marcou, como território seu, o canto direito da nossa chaminé com o seu banquinho de madeira, já que o outro, o esquerdo, foi toda a vida o do dono da casa meu saudoso pai.
Um de um lado, outro do outro, não causavam, porém, qualquer problema, porque o espaço entre os dois era mais que suficiente para lá cabermos ainda todos, já que a chaminé ia de canto a canto da cozinha, tendo sido deixado apenas espaço para uma pequena despensa. Era aquela a zona vip da casa. Ali cozinhava a minha mãe todas as nossas refeições e ali se reunia a família todas as noites para se aquecer e confraternizar num harmonioso conforto e paz, geradores de uma felicidade genuína.
Assim aprendemos que para ser feliz não é preciso muito.
Quando cada um de nós, os quatro irmãos, constituímos as nossas famílias pelo matrimónio, levámos conosco, obviamente, aqueles hábitos simples e saudáveis. E mais tarde, os nossos filhos, também. Eu não troco o lume da lareira por nenhum outro aquecimento. Há lá melhor calorzinho que este? Assim que a gente entra em casa vindo do frio da rua é como que entra para o céu. Somos acolhidos por um ambiente tão confortável e naturalmente aquecido, que é capaz de revigorar qualquer espírito por mais gelado que venha.
Os meus filhos, idem. O Pedro com a esposa e a filha vivem num agradável apartamento na cidade, mas têm também na sala uma excelente lareira aberta com lume de chão não muito diferente da minha, que acendem diariamente durante todo o inverno. E o filho Manel idem, pese embora a dele seja fechada com estufa de vidro, daquelas que aproveita o calor da combustão e o ventila para a sala e para os quartos no primeiro andar, aquecendo assim toda a casa.
O lume aceso na lareira e a chaminé da casa a fumegar ao vento é algo que habita a minha memória e me transporta inevitavelmente ao tempo e aos costumes com que me criei, cresci e fiz homem porque todos os lares habitados eram aquecidos com lareiras acesas, cujo odor se difundia pela aldeia inteira fervilhante de gente e vida.
Cheirava a famílias, quase todas numerosas.
Embora essa realidade aos poucos se tenha praticamente extinguido, significa para mim, entre muitas outras coisas, o que vivi. A saudade imensa de um tempo que se foi. Dos vizinhos, amigos e conterrâneos que fizeram parte do que hoje sou. E, mais do que qualquer outro sentimento, significa inevitavelmente a minha família que já partiu.
Infelizmente já são muitos mais os que faltam do que os que ainda restamos.
Quando olho para o fumo branco que sai da minha chaminé em cada inverno, peço-lhe sempre que suba até conseguir chegar ao céu e lhes entregue a minha saudade junto com o infinito amor que continuo a sentir por todos eles.

José Coelho
Texto e foto