segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Melancolia...



Pôr do sol no Vale de Ródão - Marvão 
 Foto by José Coelho

Boa semana...


Benção Celta

Cansaço...




 O que há em mim é sobretudo cansaço
 Não disto nem daquilo,
 Nem sequer de tudo ou de nada:
 Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
 Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
 As paixões violentas por coisa nenhuma,
 Os amores intensos por o suposto em alguém,
 Essas coisas todas
 Essas e o que falta nelas eternamente
 Tudo isso faz um cansaço,
 Este cansaço,
 Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
 Há sem dúvida quem deseje o impossível,
 Há sem dúvida quem não queira nada
 Três tipos de idealistas, e eu, nenhum deles:
 Porque eu amo infinitamente o finito,
 Porque eu desejo impossivelmente o possível,
 Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
 Ou até se não puder ser...

E o resultado?
 Para eles a vida vivida ou sonhada,
 Para eles o sonho sonhado ou vivido,
 Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
 Para mim só um grande, um profundo,
 E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,
 Íssimo, íssimo, íssimo,
 Cansaço...


Álvaro de Campos

sábado, 29 de agosto de 2015

Bom domingo...



“Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar. Estamos só de passagem. O nosso objetivo é observar, crescer, amar… E depois vamos para casa.”


-Provérbio aborígene-

terça-feira, 25 de agosto de 2015

sábado, 22 de agosto de 2015

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Gosto de ler... José Luís Peixoto.


Impossível é não Viver


Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho. 

Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos. 

Além disso, é magnífico estragar a festa aos poderosos. É divertido, saudável, faz bem à pele. Quando eles pensam que já nos distribuíram um lugar, que já está tudo decidido, que nos compraram com falinhas mansas e autocolantes, mostramos-lhes que sabemos gritar. Envergonhamo-los como as crianças de cinco anos envergonham os pais na fila do supermercado. Com a diferença grande de não sermos crianças de cinco anos e com a diferença imensa de eles não serem nossos pais porque os nossos pais, há quase quatro décadas atrás, tiveram de livrar-se dos pais deles. Ou, pelo menos, tentaram. 

O único impossível é o que julgarmos que não somos capazes de construir. Temos mãos e um número sem fim de habilidades que podemos fazer com elas. Nenhum desses truques é deixá-las cair ao longo do corpo, guardá-las nos bolsos, estendê-las à caridade. Por isso, não vamos pedir, vamos exigir. Havemos de repetir as vezes que forem necessárias: temos direito a viver. Nunca duvidámos de que somos muito maiores do que o nosso currículo, o nosso tempo não é um contrato a prazo, não há recibos verdes capazes de contabilizar aquilo que valemos. 

Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direcção. A nossa liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida, cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível, diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números, diz-lhes que impossível é não teres voz. 

José Luís Peixoto

Sem tempo para bloggar...

Foto by Pedro Coelho

Com os filhos caçulas e a netinha senior por perto neste mês de Agosto e porque a família sempre teve, tem e há-de ter uma prioridade absoluta nas nossas vidas, parou tudo para podemos viver estes breves dias a dar e a receber muitos miminhos, a desfrutar cada momento, em suma, a ser felizes todos juntos, já que a maior fatia do ano temos que viver longe uns dos outros, cada um a cuidar do seu dia-a-dia...

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Parece que foi ontem...




 Agosto de 1976
 Agosto de 2015
 Uma prendinha de mim para ti hoje...
 E também uma prendinha de ti para mim...
Mas sem dúvida que estas são as mais valiosas e queridas prendas que a Vida nos deu. 
O Manel e o Pedro, frutos do nosso amor, vieram fazer de nós os pais mais felizes do mundo. 
As duas princesinhas Francisca e Mariana, fruto do amor deles e das nossas noras amigas 
Ana e Paula, são o sol da nossa velhice que já vem chegando... 
Obrigado por nos terem promovido à deliciosa condição de  avós e...
 Um grande beijinho para todos.

sábado, 8 de agosto de 2015

De mim para mim...




Sózinho em casa há um par de dias. A condição de avós a isso obriga de vez em quando. Ainda bem, porque é mesmo muito gratificante tão magnífica condição. E há que assumir as responsabilidades acrescidas que as netinhas trouxeram às nossas vidas. Assim, com o infantário em férias, a pequena utente teve que ficar por casa, e, como os papás trabalham os dois, avança a avó para a missão de ficare a tomar conta, coisa que como devem calcular ela não se importa nada e adora fazer.

Não é a primeira vez que por esse ou por outro motivo fico sozinho vários dias, semanas até, na minha Toca. E também não me importo muito. Primeiro, pelo motivo que é. E segundo, porque sabe bem de vez em quando sermos os donos absolutos do nosso tempo, gerirmos o nosso dia como muito bem nos apetece, mergulharmos por nós adentro à procura da paz que existe no silêncio de uma casa assim semi-vazia, ou tão só, quiçá, para aquietarmos as múltiplas inquietudes que, queiramos ou não, atormentam regularmente a nossa vida.

Curiosamente, levanto-me todos os dias muito mais cedo do que o costume. A primeira falta que sinto imediatamente é o do aroma delicioso do café do pequeno-almoço e das torradas preparadas pela minha companheira de já quase uma vida inteira que costumam inundar todo o rés do chão da nossa casa logo pela manhãzinha, até ouvir o habitual:

- Zé, já podes vir! 

Por isso tenho que ser eu a providenciar agora o meu próprio mata-bicho. Mas não é a mesma coisa! Para mim sozinho o jarro da máquina de café dá para 3 dias. E deixemos lá de tretas que um café para ser gostoso tem que ser fresco, isto é, acabadinho de fazer.

Depois vem a faxina do almoço. Que vou fazer hoje? Coisas simples. Um bacalhau com grão, uma salada fria, uma sopa de legumes. Mas faço logo se possível que chegue para dois dias que este calor não convida a devaneios junto do fogão. Vai lá vai... Ah! E outra missão imprescindível. Tratar dos canitos. Bem... Canitos? Só se for o caniche Bolinhas que esse sim é pequenote. Mas a Suri? Eu costumo tratá-la e cumprimentá-la sempre com um "olá cancelão" porque ela parece um burro (se calhar uma burra) no seu tamanhão de rafeira alentejana desengonçada e com uma voz tão grossa que é capaz de arrepiar todos os cabelos de um qualquer desconhecido que se aventure no quintal sem nós estarmos por perto.

Outra curiosidade é o facto de ainda não ter sequer ligado a tv da sala nem uma só noite. Prefiro sentar-me na varanda do quintal a ver o entardecer. É sempre um quadro magnífico observar as rolas a disputarem com as pegas barulhentas os primeiros figos pingo de mel que este ano já estão a ficar precocemente maduros. Será deste calor anormal? Até os cachos da latada também estão a ficar já dourados e translúcidos. Já os provei! Ontem vi um papa-figos a pousar na figueira. Coitado! Não consegue passar despercebido com aquelas suas cores amarelo vivo com azul-escuro. Ou será amarelo e negro?

O dia a ir-se embora visto desta minha varanda é um quadro digno de ser reproduzido em tela por qualquer pintor. Todos os dias, seja verão ou inverno. Neste tempo quente o sol começa por deixar o vale onde fica a estação e mais além o ribeiro da Cavalinha. Depois vai banhando de ouro a Murta e os cumes graníticos da Anta e da Cavalinha de Cima para se despedir na Meirinha. Quando desaparece completamente do horizonte, a noite vem logo atrás lá dos lados da Herdade dos Pombais, onde parece andar escondida. No inverno dá-se exatamente o inverso. Os cumes que agora se despedem de nós com o dourado do sol poente, enchem-se de uma neblina branca e húmida com o ar frio do anoitecer que vem descendo até ao vale e transmite um ar misterioso à paisagem. Só falta mesmo aparecer no meio dela, D. Sebastião.

Esta região raiana pedregosa e inóspita que pouco mudou com o passar dos séculos, até mesmo dos milénios como provam os inúmeros vestígios arqueológicos existentes por toda a parte, é sem dúvida o meu paraíso na terra. Aqui encontrei sempre a paz e a tranquilidade que necessitava, por maiores que tivessem sido os meus problemas e desassossegos. Trago hoje no peito uma dor nova e que não é física mas que incomoda tanto ou mais que aquelas que passam com analgésicos. É a dor de ver esta minha amada terra a ficar sem ninguém. Tudo aquilo que fez parte da minha vida até aos 60 anos está a desaparecer em passo de corrida. E sei que é absolutamente irreversível. Há dias comentei tristemente com a minha companheira: - Já nem chocalhos de gado se ouvem ao longe, Maria... Só o silêncio nos vai rodeando já!

Aposto que se os nossos antepassados cá voltassem, não iam gostar de ver tudo isto assim votado a um completo e total abandono. Não vem longe o tempo em que muitas destas ruas, casas e quintais serão invadidos pelo mato e pelas silvas e se irão transformar em montões de ruínas como está já a Herdade do Pereiro, o Ramal de Cáceres e muitos caminhos de acesso a muitas propriedades. Não vem longe o tempo em que estes pequenos povoados da raia se irão juntar aos vestígios arqueológicos milenares para fazerem parte do seu conjunto. Como é possível que em duas ou três décadas se tenha destruído o que se construiu ao longo de quase um século e meio? A História o dirá. E julgará. Ou talvez não...

São estas coisas todas e muitas outras mais que me acodem ao espírito quando arranjo um tempo para ficar assim a sós comigo.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Bom fim de semana. Ou boas férias, se for o caso...


Piscinas de Castelo de Vide- Foto by Pedro Coelho


Vive o Dia de Hoje!


Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro. 

Vergílio Ferreira 

Coisas que leio...


Foto by José Coelho

Pai


Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

José Luís Peixoto, in 'Morreste-me' 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A amizade é difícil de se encontrar. Mas existe...



Não vou dizer o seu nome. É um velho e querido amigo-quase-irmão. Conhecemo-nos em Agosto de 1985. Já foi, por isso e como usa dizer-se por estas bandas, há um bom par de anos. Eu tinha acabado de ser promovido e colocado por motivo da promoção, no mesmo local onde já ele trabalhava. A nossa profissão era a mesma, só as responsabilidades de um e de outro eram um bocadinho diferentes. Mas o objectivo profissional era o mesmo. Formei com ele e com os outros 35 camaradas uma excelente equipa de trabalho onde a motivação e coesão que consegui incutir-lhes deram azo a muitos sucessos profissionais na área sob a nossa alçada.

Mal "aterrei" na nova colocação e por ser o mais maçarico na categoria profissional, nem tive tempo de aquecer o lugar porque fui imediatamente nomeado pela hierarquia de comando para marchar em reforço eventual às praias algarvias acompanhado por mais duas dezenas e meia de subordinados dos postos das redondezas que me competia chefiar naquela missão. Entre eles e por mera casualidade, marchou comigo também o velho e querido amigo que hoje quero enaltecer. Alvor, (que ainda não tinha forças de segurança permanentes) era o nosso destino. Lá chegámos por volta do meio dia depois de uma cansativa viagem nos velhinhos land-rover com aquelas abafadas coberturas de lona e plástico, duros como pedras, nos primeiros dias daquele Agosto. 

A receber-nos, o presidente da Junta de Freguesia para nos indicar uma escola primária mesmo no centro da vila onde iríamos ficar instalados para ali "montarmos" o primeiro posto policial eventual de Alvor. Fomos pois os pioneiros, a primeiríssima força de segurança a assentar arraiais naquela emblemática vila piscatória, entretanto já promovida a cidade. Eu não conhecia nenhum dos elementos que levava sob o meu controlo. Era muito novo, quer na idade, quer no desempenho das funções de chefia. Porém, a vontade de assumir sem hesitar todo e qualquer desafio que surgisse naquilo que eram as minhas novas responsabilidades, deu-me o ânimo e a força mais que suficientes para de imediato meter mãos à obra. E não tive qualquer dificuldade porque a excelente "equipa" que me coadjuvava, sendo cada um de seu lado, "funcionava" harmoniosamente como se fôssemos um só. Não sei se por ter sido a minha primeira missão como "chefe" de equipa, sei que ficou gravada no meu íntimo como uma das melhores recordações da minha vida profissional.

E foi em Alvor, muito longe do nosso ambiente habitual e das nossas famílias que tive a sorte e o privilégio de iniciar esta amizade que dura até hoje, com a pessoa mais íntegra, mais leal, mais frontal, mais sensível e mais honesta que conheci em toda a minha vida. Nos poucos momentos disponíveis entre o corre corre de um lado para o outro numa vila a abarrotar de turistas e de problemas para resolver, talvez também por sermos camaradas do mesmo posto, começámos espontaneamente a falar das nossas vidas um com o outro. Eu, porque queria saber coisas sobre a terra, as gentes e os camaradas que iriam ser o meu dia a dia quando regressássemos a casa. Ele, porque talvez se sentisse um pouco sozinho no meio de camaradas que não conhecia de lado nenhum e com quem não tinha qualquer confiança. 

Fosse pelo que fosse, estabeleceu-se entre nós uma saudável empatia, se não mesmo uma já sincera amizade. Dali até eu ficar a saber de onde ele era, que tinha uma filha linda que adorava e muitas outras confidências suas, foi um pequeno passo. Obviamente também eu retribui com as minhas confidências familiares e quando regressámos às nossas normais funções, a confiança e a amizade mútuas foram-se consolidando de tal modo que ao fim de pouco tempo as nossas esposas e filhos se tornaram também bons amigos passando a ser normais os convívios familiares ora em nossa casa, ora em casa deles. Mas o mais gratificante para mim foi o facto de nunca este incomparável amigo se ter tentado aproveitar da situação em seu benefício. Muito pelo contrário. Se alguém pecou por excesso de confiança, fui eu. 

Não o fiz por mal, mas sei que o fiz.

Por exemplo naquele dia em que lhe sugeri que fosse fazer uma guarda de honra no lugar do camarada a quem calhava o serviço por ordem de escala e que queria ir a Lisboa ver o Sporting e por isso me pediu se não haveria alguém que pudesse trocar. E eu, irrefletidamente, zás: 
- Podias ir tu (...) no lugar do (...) depois quando te calhar a ti, vai ele no teu lugar!
Sério e íntegro até à medula, olhou-me surpreendido e com a frontalidade que todos lhe conheciam respondeu decididamente:
- Não acho que deva ir eu. O camarada (...) não está doente e não é justo que eu vá fazer um serviço duro que lhe pertence a ele, para ele ir à bola!
A lógica do argumento deixou-me embaraçado e não pude evitar dar-lhe razão. Mas fiquei ligeiramente melindrado com a recusa como se o proveito ou o prejuízo fossem meus. Com tempo e reflexão percebi que o erro tinha sido meu. E ainda hoje agradeço aquela frontalidade sem medo, muito própria do homem possuidor de um grande carácter e integridade moral que ele sempre foi, é e há-de ser até ao fim dos seus dias. 

Prova daquilo que acabei de afirmar foi a atitude deste amigo invulgarmente leal na tarde do dia em que eu fui promovido ao posto seguinte. Eu já não era sequer "chefe" dele há muito tempo porque já comandava outra repartição há mais de um ano por ter pedido transferência para mais perto da terra natal e da restante família. No decorrer desse ano em que já não trabalhávamos juntos fui nomeado para o curso de promoção ao posto seguinte e rumei a Mafra onde o frequentei e concluí com sucesso. Dali a alguns meses veio a respectiva promoção, numa tarde em que houvera instrução de tiro na carreira de tiro e as tropas se reuniam em redor dos jipes para o regresso cada um ao seu posto. Os rádios dos jipes ficam permanentemente ligados. Eis que se ouve no sitrep da tarde: "promovido ao posto de (...) o... (eu) contando a antiguidade desde (...) etc, etc... 
Subitamente do meio do ajuntamento ouviu-se uma voz cobarde a exclamar: - De toda a merda se fazem... (a minha nova patente).

Ainda a bacorada daquele cobardolas fazia eco na carreira de tiro e já o meu leal amigo estava na frente dele, para, indignado, lhe dizer cara a cara: - Na minha frente não voltas a insultar essa pessoa sem ela aqui estar para se poder defender! 
O cobardolas, por sinal mais graduado que o meu leal amigo, retorquiu meio engasgado:
- Isso! Defende o teu padrinho...
E o meu amigo respondeu-lhe no mesmo tom indignado e frontal:
- Não, não é meu padrinho mas é meu amigo como eu sou amigo dele. E não é de homem o que tu disseste nas costas dele. Ficas já avisado que ele vai saber porque sou eu que lho vou contar...

Mas não me contou. 
Nunca me falou em tal coisa.
Ainda hoje não sabe que eu sei.

Quem me contou a história foi um dos subordinados que eu comandava na altura nas minhas novas funções e tinha sido nomeado também para ir fazer tiro naquela tarde. Assistiu a tudo e ficou francamente admirado quer com a atitude honesta do meu leal amigo que não se intimidou com a patente do outro e lhe meteu o dedo no nariz, quer com a indiscutível amizade para comigo assim provada passado mais de um ano sem eu ser já o seu chefe. 

Não digo o seu nome. Não por que ele não mereça ser anunciado, mas por que o respeito infinitamente, como ele sempre me respeitou a mim. Hoje vejo-o, com muita preocupação minha, cheio de problemas de saúde. Repartia de boa vontade metade da minha saúde com ele se pudesse e se não fosse também contaminado de diabetes ou de insuficiência respiratória crónica. Se calhar estamos mas é os dois a ficar velhotes! No sábado tive a honra e o privilégio de estar presente no casamento da filha que ele adora e o adora também a ele, tal como ele me deu a honra e o privilégio de festejar comigo o casamento dos meus dois filhos.

O tempo passou. A amizade ficou. Intocável. Rara. Não existem no mundo muitas pessoas assim. Infelizmente. Obrigado meu querido e leal amigo por tudo aquilo que me ensinaste e deste. Se hoje sou uma pessoa melhor, aprendi também contigo a sê-lo.