Gaiato ainda mas já cabo na guerra e com um ar tão feliz!
A gente muda. Muda tanto! Mas não
mudamos porque queremos. É a Vida que nos obriga a mudar. Os tombos que damos, os
abanões que levamos, as certezas que deixamos de ter, as injustiças e as deslealdades oriundas tantas vezes das origens mais insuspeitas, a perda e
ausência daqueles que amávamos, tudo isso e muito mais faz com que as nossas
convicções oscilem, abram brechas irreparáveis ou desabem de vez. E das duas
uma. Ou tudo aquilo que nos fere, nos sara, nos solidifica, torna mais forte a
nossa estrutura física e moral, nos faz ficar mais resistentes aos infortúnios, mais imunes ao
desassossego e mais seguros de nós mesmos, ou estilhaça as nossas convicções em mil pedaços
fragilizando-nos, transformando-nos em seres indiferentes, apáticos e conformados com a nova ordem das coisas em que acreditávamos, sem força anímica para resistir
ou lutar seja pelo que for.
Na minha meninice e adolescência
fui uma pessoa completamente diferente daquela que sou hoje. Até ir para a
tropa era um moço alegre e bem-disposto, sonhador e cheio de projetos. Nem a
humildade de berço nem a precaridade de habilitações literárias toldavam no meu
pensamento ou diminuíam no meu coração, a enorme esperança que depositava numa vida melhor e num futuro não muito distante que tencionava conseguir alcançar. Ansiava por esse motivo por ir à luta e batalhar pelo que queria para mim. Tinha porém plena consciência que havia um obstáculo incontornável a vencer para só então
depois conseguir definir e conquistar as minhas metas e objetivos. E esse obstáculo nada tinha a ver com as parcas habilitações literárias ou com a
humilde condição social de que era detentor.
Em finais dos anos sessenta e com
a guerra de África no seu auge, o serviço militar resolvido era meio caminho
andado para novos rumos de vida e para a realização (ou não) de muitos projetos
ou sonhos de qualquer jovem como eu em idade de incorporação nas fileiras das
forças armadas. Idade que estava quase a alcançar. Mas faltava ainda o quase. E
aí começou a minha aspiração de me autopromover a adulto o quanto antes. Tinha
17 anos acabados de completar quando o edital a convocar, para os diversos ramos
das forças armadas, exército, armada e força aérea, todos os mancebos da freguesia da Beirã que naquele
ano tinham ficado apurados nas “sortes” para estes se irem apresentar nas unidades
que a cada um era indicada, afim de iniciarem o seu serviço militar obrigatório.
Que inveja! Aquele papel timbrado com o escudo da república portuguesa exposto
na vitrina da junta de freguesia espicaçou por completo o meu espírito aventureiro
e nunca mais me deu sossego.
Sabia lá eu então, provinciano ingénuo
do profundo interior norte-alentejano de onde quase nunca tinha saído o que era
a tropa, o que era o mundo, o que era a guerra. Mas decidi que estava na hora
de começar a vencer o principal e intransponível obstáculo que se agigantava
entre mim e o futuro, como, de resto e de igual modo, se interpunha também
entre todos os mancebos da minha geração e o futuro deles. Mas cada um sabia de
si e na parte que me dizia respeito eu estava absolutamente determinado a meter
os pés à ribeira para resolver o assunto o mais depressa possível. E aquele
enorme edital tinha escrito, entre outras coisas, a hipótese de voluntariado e as
condições requeridas para se poder cumprir antecipadamente o serviço militar
também em qualquer dos ramos das forças armadas.
Assim sucedeu que, com tão só os
meus ingénuos e sonhadores 17 anos recém cumpridos dei por mim poucos dias depois
a pedir ao meu pai que me deixasse ir voluntário para a tropa. Sim, tive que
pedir, porque, naquele tempo, qualquer jovem só era dono do seu nariz a partir
dos 21 anos. Até esse dia era menor e dependente da autorização dos
progenitores para quase tudo. Depois de vencidos os protestos da ti Florinda que não compreendia nem se conformava
com a maluquice do seu querido menino querer ir já para a tropa sofrer, como se
não tivesse muito tempo para isso quando chegasse a sua vez, lá levei comigo o
meu pai – grande e inesquecível amigo sempre pronto a apoiar-me – a Marvão na “cáminete da carrêra” meter os tais
papéis que ele teve que assinar com o dedo porque não sabia escrever, a conceder
a tal autorização por virtude de eu ser menor.
Estávamos em meados de 1969.
Tardou muito pouco a convocatória acompanhada de uma guia de marcha a
mandarem-me apresentar a 22 de Dezembro desse mesmo ano para ser
submetido a inspeção médica no já extinto
Regimento de Infantaria 16 de Évora. Apurado sem qualquer problema como era
expectável, em Maio do ano seguinte frequentava a recruta no BC8 em Elvas,
seguindo-se a especialidade de transmissões no BC5 em Campolide, onde fiz um brilharete
e por tal fui promovido a cabo. Porém ainda mal havia terminado a
especialização quando fui mobilizado para integrar o BCAV3871 que se formou no RC3 em
Estremoz e passou depois por Santa Margarida até embarcarmos num Boeing
747 a caminho da guerra de Angola com destino ao Belize e às profundezas do
Maiombe no enclave de Cabinda, a floresta do povo fiote, do abacaxi doce como
açúcar, do pau-da-tesão, do pau preto para as mobílias caras, do petróleo da Cabinda
Gulf Oil, do minimosquito miruim quase
invisível à vista mas que nos picava e deixava todos cobertos de comichosas
bolhas, das jiboias e jacarés, dos gorilas e saguis, do calor sufocante e do
cacimbo pegajoso, tantos mimos incontáveis e alcançáveis apenas por uma só estrada alcatroada e recentemente
inaugurada com duzentos e muitos quilómetros desde o Miconje a norte até à
cidade de Cabinda a sul, toda ela bordejada de cima a baixo por aquela imponente segunda
maior floresta do mundo, de mato denso e impenetrável, de árvores gigante cujas copas
parecem tocar o céu, entrecortada aqui e ali por muitas e pantanosas picadas onde
os nossos unimogs e berliets se atascavam até à carroçaria, mas também profícua em imperceptíveis carreiros ou veredas por onde os guerrilheiros – nós
chamávamos-lhes turras – do MPLA, da UPA
ou da UNITA se emboscavam, se escondiam, colocavam minas e armadilhas para nos
fazerem ir pelos ares ao menor descuido ou nos esperavam emboscados no mato como se
nós fossemos meros animais para abate, tornando com isso num inferno completo todos e
cada um dos muitos dias das muitas semanas e dos muitos meses das nossas então jovens
e inexperientes vidas.
Foi sem dúvida o meu inferno na
terra. O que por lá vi, vivi e padeci, mudou para sempre a minha maneira de
ser, de estar, de ver, de encarar o mundo e a vida. Sim, escrevi e bem, “o meu
inferno na terra” porque duvido que algo pior possa acontecer-me alguma vez, desde
então e até ao final dos meus dias, por mais ruim que possa parecer. Conforta-me
também um pouco pensar que ao chegar a minha última hora irei certamente direitinho
ao céu, uma vez que já paguei todos os meus pecados cá em baixo durante aqueles
intermináveis 28 meses. O tal menino que quis armar-se em adulto antes do tempo
e que para o conseguir se vestiu de soldado, pagou elevado preço pela sua pressa de chegar ao futuro…
(Continua, um dia destes)