quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Bom dia!


No meu chão, entre as minhas árvores, na paz e tranquilidade dos meus dias!

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Amanhã fico triste. Hoje não.

Foto Pedro Coelho

Tenho setenta anos. Tinha apenas seis quando comecei a servir na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Beirã, como acólito. Estávamos em 1958 e era pároco o Reverendo Joaquim Caetano, já falecido. Foi ele que me escolheu para ser um dos seus acólitos nesse ano, mal comecei a frequentar a escola e a catequese. Ensinou-me princípios e transmitiu-me valores tais que a ele devo também muito do que sou, quer na minha formação como pessoa, quer no carácter e integridade. Por tudo isso guardo por ele ainda hoje uma amizade, um respeito e uma consideração sem limites.

Mas voltemos um bocadinho atrás no tempo. Contava a minha falecida mãe que desde mui tenra idade eu desatava a correr rua abaixo mal ouvia tocar os sinos: 

- Zéi, mas aonde é que tu vais a correr? 

E que eu, eufórico, lhe respondia: 

- Vou à micha, mãe!  Vou à micha… 

Tinha que ser algo assim. Há de facto coisas inexplicáveis. Tudo indica que o meu fascínio pelo divino e pela Senhora do Carmo, começou logo na inocência da mais tenra idade.

Veio depois passados mais dois ou três anos o convite para acólito do padre Caetano que me tratava como a um filho. E porque a minha mãe não tinha posses para me comprar roupas finas para o ir acolitar, era ele quem comprava tecidos e mandava fazer as roupas domingueiras às costureiras que naquele tempo abundavam na aldeia. Calções e calças de terylene, camisas de popelina, casacas e blusões quentinhos. E comprava-me também sapatos na fábrica Ebro de Santo António das Areias, a única que por aqui existia nesse tempo, pois só alguns anos mais tarde foi construída a Celtex.

Não haverá já por cá muita gente que se recorde destas coisas e as que houver se calhar não vão ler estas minhas memórias porque ou serão já muito velhinhas ou provavelmente nem saberão ler nem escrever. Quem me conhece minimamente sabe, com toda a certeza, que não faço uso de mentiras, que sou frontal e digo sempre o que tenho a dizer cara a cara seja o que for e a quem for, além de que não faço também prática do detestável costume de andar a dar palmadinhas nas costas das pessoas fingindo amizade, para a seguir, quando se vão embora, ficar a cortar-lhes na casaca, como tanta gente faz e me tem feito a mim. 

É certo, porém, aquele velho ditado que diz: "Cada um só pode dar aquilo que tem". E cá continuo no meu tranquilo dia a dia completamente indiferente a todas essas ignomínias e falsidades. Por isso o que digo e escrevo é, por norma, a verdade, apenas a verdade e só a verdade. Sempre que tiver que dizer, seja o que for, mostro a cara, levanto a voz, falo sem medo e sem má-fé, dizendo tudo quanto tiver que ser dito. É assim que as coisas devem funcionar numa sociedade minimamente decente e bem formada. 

Pese embora a minha saúde ultimamente não tenha ajudado muito, tenho continuado a colaborar em tudo o que posso e sei como tenho feito desde que vim morar definitivamente para a Beirã em 1 de Novembro de 1992 e imediatamente me "alistei", com a minha esposa, quer no coro paroquial, quer como leitor e salmista até 1999. No ano 2000, 2001 e 2002, por indisponibilidade do então Conselho Económico Paroquial, foi-me solicitado pelos Revºs Párocos Tarcísio e Luís Ribeiro que tomasse temporariamente ao meu cuidado as contas da Paróquia até à nomeação oficial que só foi efetivada em 2003, a partir de quando integrei o Conselho Económico Paroquial oficialmente nomeado por Sua Eminência o Bispo da Diocese para tais funções e por mandatos sucessivos, até ao dia de hoje.

Tenho guardados em suporte informático e também em papel, todos os processos que justificam escrupulosamente cada cêntimo de receita, cada cêntimo de despesa, semanais, mensais e anuais, desde 2000. A contabilidade da igreja, das obras de restauro e conservação realizadas, dos donativos, da instalação do relógio e automatização dos sinos, da colocação das luzes LED, das despesas com vencimentos dos sacerdotes e todas as outras. Ao pormenor, limpinhas e fáceis de entender. Tudo pronto a entregar a quem de direito. E mais. Este cargo no CEP da Paróquia da Beirã, está, como sempre esteve, disponível todos os dias e a todas as horas, ao completo dispor de quem me escolheu e nomeou, prontíssimo a entregar a quem se oferecer para me substituir. É só chegar-se à frente quem o quiser e seja muito bem-vindo.

Sei que sempre cumpri as minhas obrigações com lealdade, dedicação, esforço e empenho. Sei também que nunca cobrei um cêntimo sequer por nada do que fiz. Ofereço, desde o já longínquo ano 2000, gratuitamente, os meus serviços e tempo, o meu computador, tinteiros e resmas de papel da impressora, o combustível do automóvel nas deslocações ao banco, às reuniões a Portalegre, a São Tiago, a Mem Soares, a Nisa, a Castelo de Vide, a Marvão e a muitas outras localidades onde os párocos me solicitaram que fosse. Sozinho, ou quando muito, acompanhado apenas e só pela minha esposa, a qual, por sua vez, cuida ainda também gratuitamente do asseio e arrumação da igreja e dos altares em conjunto com outras duas senhoras, para além de passar horas a conferir, a separar e a acondicionar as moedas dos ofertórios e das caixas que posteriormente eu vou depositar no banco e na conta da paróquia que está sempre em dia.

Paguei ainda do meu bolso o curso para ministro extraordinário da comunhão e para ministro da celebração da palavra na ausência do presbítero - MECDAP - o curso para aprofundamento da fé - CAF - que teve a duração de três anos letivos no Seminário de Portalegre, de muitas outras formações em Mem Soares, em Alcains, Abrantes e Proença-a-Nova. Deslocações, alimentação, combustíveis e pagamento individual de cada curso ou formação. Com que intenção? Única e exclusivamente formar-me minimamente para melhor conseguir colaborar em tudo o que me era proposto pelos párocos no serviço à comunidade paroquial a que pertenço e que, muitas vezes, em vez de reconhecer a minha disponibilidade, a criticaram e botaram abaixo. 

É mais que verdade que "na sua terra ninguém é profeta". Muitas vezes me senti triste e desmotivado por tudo isso. Muitas vezes também me apeteceu mandar tudo às malvas, ir-me até embora de cá. Mas a sempre reiterada confiança e sincera amizade dos párocos Tarcísio e Luís Ribeiro, aliada à minha fé e à forte convicção de missão e de serviço à comunidade a que pertenço, conseguiram superar sempre a vontade de desistir. 

Até quando? 

Neste preciso momento estou quase completamente desmotivado e afastado da Paróquia. Há mais de um ano que fico por casa limitando-me a fazer a contabilidade escrita mensal em conformidade com os registos semanais feitos pelas senhoras do CEP, após o que, em ato contínuo, vou depositar os valores na conta bancária da Paróquia, como sempre fiz. Entretanto e como escrevi no início, comecei nestas "andanças" com seis anos de idade. Estávamos, portanto, no Outono de 1958. Estamos no Outono de 2022. Passaram sessenta e quatro anos e continuo cá. Hoje só já não desato a correr pela rua abaixo quando ouço repicar o sino da igreja que ainda continua a ser o mesmo, mas as minhas pernas é que já não conseguem agora correr como corriam então. 

Hoje sinto-me triste. Provavelmente a melhor forma de ilustrar o meu estado de espírito talvez seja reescrever aquele poema encontrado na parede de um dos dormitórios para crianças no campo de extermínio nazi de Auschwitz:

“Amanhã fico triste… Amanhã!
Hoje não… Hoje fico alegre!
E todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo:
Amanhã fico triste, hoje não…”

Desculpem a seca, mas quando começo a escrever, perco-me no tempo.

José Coelho

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Coisas que escrevi



Foto Maria Coelho

Desde muito pequenininha, logo no início de 2012 quando chegou ao nosso colinho, que entre nós se estabeleceu uma empatia mútua, um carinho indisfarçável, uma cumplicidade deliciosa. As suas primeiras gargalhadas sonoras e repetidas uma série de vezes, foram provocadas por mim, na minha casa, num serão em família, na brincadeira os dois. Teria, não sei muito bem, meia dúzia de meses, pouco mais. O pai, estupefacto com a cena e o efeito, gravou, sem nós nos darmos conta, aquele momento num vídeo que ainda hoje nos faz rir a bom rir quando o revemos. Mas essa foi apenas uma das nossas primeiras aventuras. Depois desse dia já aconteceram muitos mais momentos de pura felicidade entre os dois.

Porque foi a primeira e tão desejada netinha? Talvez, não sei. É que, entretanto, já chegou também ao nosso colo, há pouco mais de um ano, a caçulinha Mariana, que, parece-me, é mais uma grande fã do vô Zé Coelho. Avô baboso dirão vocês. Vô babão diz a família do Brasil. E não me ofende nada tal juízo. Muito pelo contrário, pois adoro literalmente as minhas duas pequeninas. E se a Francisca é uma grande compincha do vô, a Mariana, ainda que mais bébézinha, não o é menos. Vem para o meu colo sem qualquer contrariedade. Conhece-me à légua, brinda-me com aqueles lindos sorrisos que tem sempre prontos e dorme grandessíssimas sestas se me sentir perto dela a guardar-lhe o soninho.

Não posso, porém, deixar de vos contar a mais recente prova de carinho que recebi há poucos dias da pipoquinha Francisca. Estávamos no meu carro, eu, ela e a avó Manuela em Montemor, à espera que chegassem os papás de quem tínhamos ido ao encontro a meio caminho, depois de ela ter vindo passar uns dias com os vôs "tudis". Primeiro fui o lobo mau na história do capuchinho vermelho - interpretado por ela na perfeição - e despoletando as tais sonoras gargalhadas quando eu imitava a voz do lobo "É p'ra te ver beeeeemmm!" quando ela me perguntava: "Avó, tens uns olhos tããão grandes?" Depois, o cenário mudou e passei a ser um fantasma, gemendo um "búúúúúú" muito sinistro, colocando sobre a cabeça uma fralda que faz de lençol da cama da boneca que ela traz sempre consigo. Resultado, mais meia dúzia de felizes gargalhadas. Não cabia em si de contente, feliz, divertida. Os condutores e passageiros que circulavam nos seus carros pela rua em frente, olhavam admirados o reboliço e agitação dentro daquele corsa estacionado no parque. Não podiam nem imaginar que tão pequeno palco estivesse a ser cenário de tão movimentadas aventuras...

Ligamos aos papás a saber se ainda demoravam. Já estão perto. A pequenita, entretanto, faz um lanchinho, que são horas. Miminho da avó Manuela, uma belíssima fatia de bolo de cenoura  - ou não fôssemos nós Coelhos - e dois iogurtes yoco de beber com palhinha. Satisfeita, notoriamente feliz, a dado momento a pequenita agarrou-me a mão direita e... beijou-ma várias vezes com um carinho tão puro, tão inocente e tão verdadeiro que se me encheram instantaneamente os olhos de lágrimas. Fiquei tão... tão... tão... Grato, feliz, comovido. A minha mão carinhosamente beijada por um dos dois anjos com que Deus abençoou este outono da minha vida. 

Há muitos, muitos anos atrás, também eu beijava assim as mãos dos meus avós para lhes pedir "a bença". Era obrigatório naquele tempo. Ao chegar junto deles pela primeira vez nesse dia, fosse onde fosse, tínhamos de dizer-lhes:

- A sua bença, avó/ avô. 

E imediatamente eles nos apresentavam a costa da sua mão direita para ali depositarmos um reverente beijinho ao mesmo tempo que eles murmuravam com doçura:

- Deus te abençoe, meu neto.

E eu amava-os assim, como as minhas netas parecem amar-me agora a mim. Bem dizem que, nesta vida, tudo quanto damos e fazemos nos será devolvido...

José Coelho
Setembro 2015

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Canção de Outono...



Perdoa-me, folha seca, 
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo, 
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão 
se havia gente dormindo 
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles 
que não se levantarão...

Tu és folha de outono 
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...


Cecília Meireles

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Bom fim de semana


O nosso painel de azulejos foi pintado à mão por encomenda, exclusivamente para embelezar esta parede da varanda do primeiro andar da Toca dos Coelhos.

- Setembro 2022

Meu chão sagrado


A paisagem raiana voltada a nascente que se estende aos nossos olhos a partir do quintal da Toca dos Coelhos. Em primeiro plano, a Tapada da Rabela - Turismo e Reserva Natural Privada com o seu hotel encostado à margem esquerda da imagem, no meio do arvoredo. Ao centro da foto, do lado de cá da via-férrea do Ramal de Cáceres, os quintais das últimas vivendas da Rua Vivas - Beirã. Ainda ao centro da imagem, mas do lado de lá da Rua Vivas e da via-férrea, a Incubadora de Empresas de Base não Tecnológica para micro e pequenas empresas (ainda não inaugurada). Lá mais ao fundo, na margem direita do Ribeiro da Cavalinha, a Murta, por detrás da qual o sol nasce todos os dias.

- Setembro 2022 

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Finalmente, a chuva

Foto José Coelho

A chuva cai de mansinho
No vão da minha janela
Olhando devagarinho
Eu sonho através dela
Os campos matam a sede
Duma seca prolongada
Toda a natureza bebe
Dessa chuva abençoada
As árvores lavam as mágoas
Dos maus-tratos do calor
Entregam-se a estas águas
Com leves suspiros de amor
Saltitam os barranquinhos
Sua marcha vai doendo
E gritam prós seus vizinhos
Vai correndo...vai correndo...
Ao longe canta a ribeira
Num turbulento deslizar
Leva pressa na carreira
Anseia abraçar o mar
Crescem as plantas da horta
Com redobrada alegria
É a chuva que as conforta
E alimenta dia a dia
Os pássaros pousam na choça
O seu canto é refinado
Vêm banhar-se na poça
Que ficou no chão molhado
Posso fechar a janela
Esta chuva trouxe a prova
De que é graças a ela
Que a vida se renova

Autor desconhecido

domingo, 11 de setembro de 2022

Vindima 2022 - Parte II


Tarde inesperadamente dedicada ao piso das uvas da latada da casa do filhote Manel Coelho na Escusa que as vindimou e veio trazer para... mais 50 litros de excelente mosto!

- 11.09.2022

Dicas & truques



Depois de várias fotos de figos-chumbos agarrados à mãe pelo campo, hoje deixo-vos uma caixa deles que a minha marida preparou, para ficarem assim, prontinhos a comer.

Como se faz? É fácil!

Necessitamos de:
1 tenaz
1 vassourinha de lareira
1 balde
1 faca e 1 garfo de cozinha
1 caixa ou travessa.

Quando já estiver junto da figueira-chumba, escolha a olho aquelas folhas com os figos que vai querer colher, e, do lado contrário ao do vento, com a vassourinha de lareira dê-lhes uma vassourada para lhes retirar os picos maiores e mais duros. Em seguida, com a tenaz do lume, colha um a um os figos para dentro do balde, sem lhes tocar com as mãos.

Já em casa, sobre uma tábua de cozinha, use o garfo para tirar um a um os figos do balde e segurando sempre o figo espetado no garfo faça um corte no sentido vertical com a faca nas duas extremidades do fruto, sem as separar totalmente. Faça agora outro corte no sentido horizontal entre os dois cortes das extremidades de modo a ficar em H.

Finalmente, segurando sempre o fruto com o garfo, é só meter o bico da faca para abrir este corte e o figo ficar completamente descascado para poder retirá-lo já sem casca com a mão, para o colocar na caixa ou travessa pronto a comer.

Parece complicado?
Não é.
Boa sorte!

José Coelho
Imagem e texto

sábado, 10 de setembro de 2022

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Dia da Padroeira 2022

Na Eucaristia em Honra de Nossa Senhora da Estrela, Padroeira do Concelho de Marvão e integrado na Tuna Sénior de Marvão que honrosamente assumiu a responsabilidade de executar os cânticos desta solene celebração, coube-me ir ao ambão entoar a Aclamação ao Evangelho.
Imagem, cortesia de Jorge Rosado
- Em Marvão, 08.09.2022

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Viver é recordar...

Casa da Avó Amélia - Cavalinha - Foto José Coelho

Muito cedo comecei a alimentar o sonho de um dia conseguir alcançar uma vida menos sacrificada do que a dos meus pais e avós, e, se possível, não muito longe da terra nem deles, porque sinceramente nunca me senti tão bem em lado nenhum como me sinto na minha aldeia e junto dos meus.

Sou descendente de duas famílias de modesta condição económica, quer a materna Lourenço, quer a paterna Coelho. Mas ambas desfrutavam da suprema felicidade de serem abastadas em valores e princípios. De trato afável e semblante por norma feliz, aceitavam sem complexos a sua condição social com dignidade e sem invejarem ou cobiçarem a vida da outra gente.

Dos meus avós paternos pouco pude desfrutar porque viviam em Castelo de Vide de onde eram naturais. O avô Faustino Coelho era o cantoneiro da Estrada da Póvoa e Meadas e veio morar connosco nos últimos anos da sua vida. Já a avó Adelina, faleceu quando eu era ainda bebé e por isso não consegui guardar dela qualquer memória visual, a não ser em fotografias.

Os meus avós maternos, que me ajudaram a criar, viviam o seu dia a dia com uma simplicidade que ainda hoje recordo carinhosamente e com imensa saudade. Não passavam fome e a avó Amélia nunca deveu nada a ninguém, conseguindo até amealhar, das suas pequenas reformas, o pezinho-de-meia que tinha guardado para prevenir eventuais necessidades imprevisíveis.

Era uma mulher pequenina, amorosa, de trato meigo e muito carinhosa com os netos. Uma formiguinha trabalhadeira que sempre arranjava algo para fazer nas suas lides caseiras, que ia a pé, e a pé voltava, da Cavalinha ao mercado de Santo António das Areias todos os sábados, para “mercar” muitas vezes apenas algum queijo e mais dois ou três litros de milho para as suas galinhas poedeiras.

O meu avô Zé Lourenço, grande e querido amigo, não só de mim como de todos os outros netos, era quase cego – tal como aconteceu depois às suas duas filhas, a minha mãe e a minha madrinha Jacinta – por isso desde muito novo raramente deixava o seu cantinho na Cavalinha. Partiu inesperadamente aos 67 anos, vítima de uma bronquite asmática. E foi a mim que calhou, nessa triste manhã, levar à sua companheira de uma vida, a notícia do seu falecimento no hospital de Portalegre, onde se encontrava internado já há duas semanas em estado muito grave.

A partir daí todos os fins de semana passei a ir ter com a avó Amélia porque adorava a sua companhia e almoçar ou jantar com ela as paparocas deliciosas que ela cozinhava nas panelas e tachos de barro em lume de chão, para o qual eu ia sempre buscar-lhe dois ou três feixes da lenha que ela necessitava e nunca mais deixei que lá se lhe acabasse. Mais tarde já bastante velhinha e muito perto dos 90 anos, acolhi-a definitivamente em nossa casa onde a minha mãe, que também connosco morava, cuidou amorosamente dela até ao dia em que nos deixou e para ir ao encontro do meu avô.

A pequena casa onde viviam junto ao fresco ribeiro da Beirã, por detrás da caseta da passagem de nível da Cavalinha, era imaculadamente branca por dentro e por fora. Aquela varanda estava sempre impecavelmente caiada, limpa e arrumada, coberta por uma frondosa e fresca latada que dava uns deliciosos cachos moscatel brancos. Na grande janela alinhavam-se vasos com manjericos, cravos e flores de cera. E havia ainda um canteiro com flores de noiva, dálias, açucenas e um cheiroso alecrim, no ajardinado canto existente entre a casa e a cancela que dava para o Caminho da Retorta.

Aquela casinha branca era um pequeno paraíso de paz e de harmonia, habitado por duas criaturas maravilhosas com quem dava gosto conviver porque eram o exemplo perfeito da honradez, da honestidade e da perfeição humanas. Nunca tínhamos pressa de os deixar. E quando por fim tínhamos que vir embora de ao pé deles, trazíamos sempre o desejo de lá voltar o mais depressa possível.

O meu avô foi sempre um hábil artesão manual. Mesmo sem ver quase nada, fazia uns pássaros de cortiça muito bonitos, que, por meio de uma guita com um chumbo na ponta, ao balançar-se o chumbo, este fazia com que os pássaros ganhassem vida baixando alternadamente a cabeça e o rabo. 

Havia também aquela melodiosa escaravela de lata em frente da casa com uns pequenos badalos de madeira dispostos no seu eixo, que, ao rodar movida pelo vento, produzia uma música engraçada. Consoante o tamanho do badalo, ao embaterem na chapa, um após o outro, faziam mais ou menos assim: Tec-tac-toc-tec-tac-toc… Tec-tac-toc-tec-tac-toc…  Sempre que podia, passava com eles dias inteiros. Nem dava pelo passar das horas!

O meu avô era um grande companheiro e um grande contador de histórias. Da guerra civil espanhola e de muitas outras coisas que viveu e sabia. Tinha um dom tão especial para as contar que nos prendia a atenção por completo. De tal maneira que ao ouvi-lo no mais profundo silêncio, era como se estivéssemos a ver tudo aquilo que ele narrava.

Quando eu era mais pequeno ia com ele algumas vezes para as tapadas onde ele era guardador de gados. Recordo particularmente aquele dia em que, junto aos Três Pontões, sentados os dois na parede da linha férrea e ao ouvir o zumbido dos cabos telefónicos que bordejavam a linha, lhe perguntei admirado: 

- O que é que soa, avô? 

Então ele pegou na minha mão, levou-me até ao poste que sustentava as canecas dos fios telefónicos de cobre e mandou-me encostar o ouvido ao poste. 

E o tal zumbido que ao longe era discreto, ali, com o ouvido encostado ao ferro, fazia uma algazarra estranha, contínua e melodiosa, mais ou menos assim: 

- Ziiinnng-zeennng-zoonnng-ziiinnng…

- Sabes o que estás a ouvir? Perguntou-me a sorrir, divertido.

- Parece música. Respondi eu.

- Ah pois é! São meninas a cantar! Concluiu, rindo ainda mais divertido da minha cara de espanto.

É curioso como nunca mais esqueci esta história. Não teria decerto mais de 3 ou 4 anos. Ainda hoje lá estão os três pontões, a parede onde nos sentávamos e o poste de ferro a olhar o céu, mas já sem os fios. Não sei se foram retirados quando encerrou o ramal ou se terão sido roubados, mas cada vez que por lá passo basta-me cerrar os olhos por um momento para facilmente reconstituir mentalmente a cena que ali vivi há tantas décadas.

Os meus queridos avós partiram para sempre. Com eles foi, inevitavelmente, um pedacinho de mim. A casa onde eles moravam está hoje em ruínas, como a foto documenta. Mas aos olhos do meu coração a casa continua branquinha, acolhedora. E eles permanecem lá, vivos na minha memória e no meu amor que jamais os esquecerá. Consigo até vislumbrar a minha avó sentada na sua cadeirinha de bunho na empena da casa, a costurar ao solinho da tarde. E o meu avô sentado na parede a aparar a cortiça para construir os seus engraçados passarocos. As rosas de Alexandria e as perfumadas açucenas conseguem sobreviver há décadas e continuam a florir todas as primaveras por entre o emaranhado de silvas e mato que quase cobrem a casa.

Inventei ainda outra maneira de os ter mais cerca de mim. Antes que a parreira da velha latada da varanda secasse fui lá buscar um garfo que dispus no meu quintal e por sorte pegou.  Já colhi dela os tais doces cachos moscatel. E, como não tenho a habilidade do avô Zé, comprei no mercado franco em Castelo de Vide uma escaravela de lata parecida com dele e tem no meio uns arames que ao rodarem movidos pelo vento fazem um barulho parecido àquele que fazia a dele, mas muiiiito menos musical. 

Limita-se a um monótono tec-tec-tec… tec-tec-tec… 

Dá, contudo, para os "sentir" próximos de mim. 

Concretizei, entretanto, o meu sonho de menino. Consegui a duras penas alcançar a tal vida menos sacrificada do que a de todos eles. Consegui também não me afastar muito, nem deles, nem da aldeia. Mais ainda consegui vir viver definitivamente para cá porque consegui também comprar a casa onde nasci.

Todos, entretanto, foram partindo. Um após outro e já não tenho cá nenhum. Sei que um dia voltaremos a ficar juntos, mas às vezes é complicado gerir tantas perdas, tantas ausências, tanta falta dos afetos genuínos e puros que a vida me foi levando.

José Coelho in Histórias do Cota

sábado, 3 de setembro de 2022

Bom fim de semana

Anoitecer na Beirã, dia 02 de Setembro de 2022
Foto José Coelho
 

Enquanto o almoço não vem

Foto José Coelho - 02.09.2022

Para que se não perca a memória


Linda Beirã
Quem me dera a mim
Viver sempre assim
Pela tua mão
Linda Beirã
Meu primeiro amor
Perfume de flor
No meu coração
Vestida com tanta graça
Olhai quem passa
Linda Beirã
Menina mas tão airosa
Lembra uma rosa
Ainda em botão
Teu nome é como a alvorada
Da passarada pela manhã
Mal surge no horizonte
O sol beija a tua fronte
Linda aldeia da Beirã
(Marcha que remonta aos anos 50 da qual se desconhece autor/a)

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Setembro



 
O sol que secou a face da terra
E deixou sem água ribeiros e fontes
Vai dando lugar na encosta da serra
Às folhas que caem juntando-se em montes
O ar abafado incómodo e quente
É mais fresco agora, muito mais ameno
Com ele se foi a canícula ardente
Bem-vindo setembro do tempo sereno
Olho à minha volta com ar desolado
Pois tudo o que vejo está diferente
Sobreiros que secam por todo o montado
E terras bravias por falta de gente
Já não há pastores por estes canchais
Nem fontes cantantes pelos caminhos
Ó velhos sobreiros que aos pares secais
Onde irão as rolas fazer os seus ninhos
Setembro é sossego, é melancolia
Silêncio d’outono, sono de criança
Gorjeios de melros ao raiar do dia
Tempo em que no tempo se faz a mudança
É ainda o mês em que as madrugadas
Trazem a maresia ao sol das manhãs
Gotas que simulam nas ervas molhadas
Tiaras de pérolas de deusas pagãs
Sossega minh'alma que já vem chegando
O tempo em que a terra vai ser fecundada
De orvalho e chuva, de noites geando
Natureza inteira a ser saciada
Na roda que gira veloz como o vento
A vida se escoa o tempo a levou
Nunca se detém nem por um momento
Na roda girando Setembro voltou
Beirã 1 de Setembro de 2005
José Manuel Lourenço Coelho.
Poema e foto - José Coelho
Ramal de Cáceres na Passagem de Nível da Cavalinha