quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Feliz 2022

Foto Maria Coelho

Cada fim de ano é tempo de celebração, mas também de reflexão, de análise e de recomeço. Para trás fica o ano que acaba. Dele, guardemos apenas o que foi bom. Tentemos, ainda que seja algo difícil, esquecer tudo o que nele tenha sido menos bom.
Do sofrimento que possa ter-nos causado, guardemos apenas a certeza que conseguimos sobreviver-lhe. Dos erros que porventura possamos ter cometido, guardemos os ensinamentos que deles colhemos. E das inevitáveis dificuldades, guardemos somente a lembrança daquele momento em que conseguimos superá-las.
Sintamos gratidão por mais um ano de vida, e, apesar de tudo o que tenha acontecido, o importante mesmo é que chegámos até aqui, que nos tornámos mais experientes, mais fortes e mais sábios.
Agora é tempo de enchermos o coração de otimismo, de esperança e de sonhos, assim como é também tempo de recomeçar e renovar os nossos projetos de vida para o novo ano que está a chegar.
Saibamos viver e aproveitar cada dia, cada hora, cada minuto.
A toda a minha Família e Amizades, assim como a quem não seja nem uma coisa nem outra, desejo um Feliz e Próspero Ano de 2022. Cuidem-se, mimem-se, façam tudo o que estiver ao vosso alcance para serem felizes. E Boas Festas.
José Coelho
30.12.2021

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Feliz Natal 2021, Família & Amizades

Três mini-presépios, dois dos quais elaborados pela dona da Toca
O Menino Jesus (oferecido pelo Padre Luís) que desde 2005 
nos faz companhia todos os natais na nossa sala de estar
Árvore de Natal de última hora a pedido da neta Francisca
A "carrada" de mimos que os filhotes Caçulas nos trouxeram
Dia 8 de Dezembro de cada ano, a Toca veste sempre os trajes de Natal
À espera que a pandemia permita que nos reunamos com filhos e netas
Esta obra de arte foi bordada à mão pela irmã mais velha da dona da Toca
Fotos Pedro Coelho e José Coelho
 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Natal de Campo Maior

Coisas (inspiradoras) que leio


Compreendi que viver é ser livre. Que ter amigos é necessário. Que lutar é manter-se vivo. Que para ser feliz, basta querer.
Aprendi que o tempo cura. Que a mágoa passa e que a decepção não mata. Que hoje é o reflexo do ontem. Compreendi que podemos chorar sem derramar lágrimas. Que um amigo verdadeiro permanece. Que a dor fortalece. E que vencer engrandece.
Aprendi que sonhar não é fantasiar. Que para sorrir tem que se fazer alguém sorrir. Que a beleza não está naquilo que vemos, mas naquilo que sentimos. E que o maior valor está na conquista.
Compreendi que as palavras têm força. Que fazer é mais útil que falar. Que o olhar não mente. Que viver é aprender com os erros. Aprendi ainda que tudo depende da nossa vontade e que o melhor é sermos nós mesmos. Que o segredo da vida é... Viver.
Outra coisa que aprendi, é que devemos viver, "apesar de". Que "apesar de" devemos seguir em frente. Que "apesar de" devemos amar. E que, muitas vezes, o próprio "apesar de" é que nos empurra para a frente. Foram precisamente os "apesar de" que me deram a força vencedora da minha própria vida.
Clarice Lispector.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Imagens do Natal na Toca dos Coelhos

- Algumas destas fotos foram feitas por mim, outras pelo filho Pedro Coelho, na nossa casa em natais passados mas já também no presente ano. A fotomontagem é da autoria do meu camarada da guerra e excelente amigo Furriel Fernando Pereira o qual não voltei a ver desde que regressámos a casa em junho de 1974 e a quem, eu e a minha esposa agradecemos a amizade, bem como esta e muitas outras gentilezas suas. Bem haja. Deixo também os nossos votos de Boas Festas a todos os Cavaleiros do Maiombe, onde quer que se encontrem, extensivos aos seus familiares.

Maria e José Coelho

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Boas Festas...

... a toda a minha Família, particularmente a que está longe. A todas as minhas amigas e amigos de perto e de longe, mas também para quem não for nem uma coisa nem outra. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

"Conto" de Natal do meu "mestre" preferido


— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.”

“De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções são que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!

Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal, o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.”

Miguel Torga

sábado, 11 de dezembro de 2021

Bom fim de semana


Mesmo só, quando ao pé do fogo da lareira
Ponho-me a recordar o que fui e o que sou,
A minha sombra - a eterna companheira
Que em dias bons e maus sempre me acompanhou,
Fica perto de mim de tal maneira
Que não parece sombra. E' alguém que ali ficou.
Somos dois. Cada qual mais triste e mais calado.
Anda lá fora o luar garoando no jardim...
Tenho pena da sombra imóvel a meu lado
Possuída da expressão de um silêncio sem fim.
E recordo em voz alta o meu tempo passado
E a sombra chega mais para perto de mim.
Ah! Quem me dera ter um bem que se pareça,
Que lembre vagamente outro que longe vai:
As mãos da minha Mãe sobre a minha cabeça,
O consolo de amigo e a fala do meu Pai.
E antes que a noite passe e a alma se me enterneça,
Abro a janela e espio a lua que se esvai...
Qual! E' inútil. Por mais que esta lembrança esqueça,
Uma lágrima cresce em meus olhos e cai...
Deus há de permitir que eu adormeça
Com as mãos da minha Mãe sobre a minha cabeça,
Ouvindo a fala comovida de meu pai.
Olegário Mariano (Poema)
José Coelho (Vídeo)
11.12.2021

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

A criança que fui chora na estrada

Julho 1974

 

I

A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou

A vinda tem a regressão errada.

Já não sei de onde vim nem onde estou.

De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem

Amanhã não veremos. Hora a hora

Nosso diverso e sucessivo alguém

Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem

Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.

Ah, que horrorosa semelhança têm!

São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.

E a multidão engrossa, alheia a ver-me,

Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,

E, inúmero, prolixo, vou descendo

Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço

O que sinto que sou? Quem quero ser

Mora, distante, onde meu ser esqueço,

Parte, remoto, para me não ter.


Fernando Pessoa

22.09.1933

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Bom fim de semana

Foto José Coelho - 03.12.2021

"Já não tenho paciência para algumas coisas, não porque me tenha tornado arrogante mas simplesmente porque cheguei a um ponto da minha vida em que não aceito perder mais tempo com aquilo que me desagrada ou fere. Perdi a vontade de agradar a quem não agrado, de amar a quem não me ama, de sorrir para quem quer retirar-me o sorriso. Deixei também de ter qualquer consideração por quem não merece a minha."

Meryl Streep

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Oito dias fora e a Toca arrefeceu

Video José Coelho 29.11.2021

 

Contos (antigos) de Natal


Era uma vez um pobre sapateiro que vivia numa cabana, na encruzilhada de um caminho, perto de um pequeno e humilde povoado. Como era um homem bom e queria ajudar os viajantes que à noite por ali passavam, deixava na janela da sua casa, uma vela acesa todas as noites, de modo a guiá-los.

E apesar da doença e da fome, nunca deixou de acender a sua vela.

Veio então uma grande guerra e todos os jovens partiram, deixando o povoado ainda mais pobre e triste. As pessoas, ao verem a persistência daquele pobre sapateiro que continuava a viver a sua vida cheio de esperança e bondade, decidiram imitá-lo, e, naquela noite, que era véspera de Natal, acederam todos uma vela em suas casas, iluminando todo o povoado.

À meia-noite, os sinos da igreja começaram a tocar, anunciando a boa notícia: a guerra tinha acabado e os jovens regressavam às suas casas!
Todos gritaram:
- É milagre! É o milagre das velas!

A partir daquele dia, acender uma vela tornou-se tradição em todos os povos daquele país, na véspera de Natal.
Namasté

sábado, 20 de novembro de 2021

Coisas que gosto de reler

Casas com varandas de traço tradicional alentejano  
Foto José Coelho

Coisas de alentejanos


Fazer da cal o bilhete de identidade. Comer o primeiro u de Augusto. Às Marias chamar Bias. Petiscar ao fim do dia. Acreditar em Deus e no Partido Comunista. São coisas de alentejanos.

Explicar Deus como “alguém que manda” nisto. Casar pela Igreja. Baptizar os filhos. Ser indiferente à missa. Não faltar à procissão. Desprezar a confissão. Cantar ao Menino pelos Reis. Chamar magana à morte. Dizer dos familiares que lhe morreram: “o meu pai que Deus tem” ou “a minha Joaquina que Deus tem”. Tirar o chapéu diante do cemitério. Temer as trovoadas como os gauleses do Astérix. Benzer o pão antes de entrar no forno. Não derramar azeite. São coisas de alentejanos.

Estar apaixonado quando está triste. “Andar atrás de” quando está apaixonado. Chamar boda ao casamento e ao copo d’água função. Anteceder os nomes dos filhos do pronome possessivo meu ou minha: o meu João, a minha Ana. Da mulher dizer apenas “a minha”, ignorando-lhe o nome. Não ter trambelho para os trabalhos domésticos. Enforcar-se quando se vê viúvo. São coisas de alentejanos.

Ver cair a geada. Chamar charoco ao frio e busaranho ao vento gelado. Dizer que está aspereza quando há temporal. Ao Sol chamar “o astro”, como se fosse o único no céu. Ao calor chamar calma. Viver com o Suão. Chamar às planuras descampados. Cerros aos outeiros. À floresta arvoredo.
Olhar o horizonte e saber ter vagar. Dizer: estou à espera de me ir embora. Declarar com solenidade: devagar que tenho pressa. Abalar no comboio da Cuba. A Lisboa chamar aldeia grande. Ter parentes na Brandoa. São coisas de alentejanos.

Estar de roda do lume. Sentar no chão para conversar. Parar no largo ao olhinho do sol. Ter sempre a navalhinha petisqueira no bolso das calças. Condutar o pão, o vinho e a vida. Beber só em companhia. Cantar quando os outros também cantam. À seca chamar desgraça. Querer a barragem de Alqueva. São coisas de alentejanos.
Porque sim!


Pedro Ferro, in Público, 9 de Outubro de 1995

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Várzea das Amendoeiras - Ano 1960

Adelina Coelho - Luz Coelho - Zé Manel Coelho

Na ribeira que secou

Bebia o gado que eu tinha;

Quando chegava à noitinha,

A voz das águas chamava,

E o rebanho que pastava

Deixava os tojos e vinha.

 

Eu próprio molhava as mágoas

Na pureza da nascente;

Metia as mãos docemente

Na limpidez da frescura,

E as caricias da corrente

Davam-me paz e ternura.

 

O gado, farto, bebia;

E eu deixava-me correr

Naquele suave prazer

Que me levava consigo...

Eu não tinha que fazer,

E o gado tinha pescigo.

 

A noite, então, vinha mansa

Cobrir a lã das ovelhas;

Era um telhado de telhas

Furadas ou embutidas

De luzes muito vermelhas

Por todo o céu repartidas.

 

E aquela viva irmandade

Do rebanho e do zagal

Era ali tão natural

Que apagava dos sentidos

A saudade do curral

Feita de sono e balidos.

 

Mas a ribeira secou.

Não sei que praga lhe deu

Que no leito onde correu

Há pedras e maldição...

E o meu rebanho morreu

De sede e de mansidão.

 

Coimbra, 20 de Maio de 1943

Miguel Torga

domingo, 7 de novembro de 2021

Prece

Por do sol no Penedo Monteiro - Castelo de Vide
Foto José Coelho

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és Tu também. Onde nada está Tu habitas e onde tudo está – (o Teu templo) – eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um Pai.

Que a minha vida seja digna da tua presença. Que o meu corpo seja digno da terra, tua cama. Que a minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Hoje seria o teu dia, Pai. Nunca (te) esquecerei

António Maria Coelho  
05/11/1910 - 23/01/1994

Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

 

José Luís Peixoto, in 'Morreste-me'

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Dia de Finados 2021

"Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar. Estamos só de passagem. O nosso objetivo é observar, aprender, crescer e amar. E depois vamos para casa."

Provérbio Aborígene

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

"Aqueles que amamos nunca morrem...

... apenas partem antes de nós"
 

Calor e conforto

Lareira da Toca dos Coelhos
Vídeo José Coelho

 

Coisas que leio e releio

Pão do Porto da Espada - Marvão

Não é alentejano quem quer

   

Palavra mágica que começa no Além e termina no Tejo, o rio da portugalidade. O rio que divide e une Portugal e que à semelhança do Homem Português, fugiu de Espanha à procura do mar.

   

O Alentejo molda o carácter de um homem. A solidão e a quietude da planície dão-lhe a espiritualidade, a tranquilidade e a paciência do monge; as amplitudes térmicas e a agressividade da charneca dão-lhe a resistência física, a rusticidade, a coragem e o temperamento do guerreiro. Não é alentejano quem quer. Ser alentejano não é um dote, é um dom. Não se nasce alentejano, é-se alentejano.

    Portugal nasceu no Norte mas foi no Alentejo que se fez Homem. Guimarães é o berço da Nacionalidade, Évora é o berço do Império Português. Não foi por acaso que D. João II se teve de refugiar em Évora para descobrir a Índia. No meio das montanhas e das serras um homem tem as vistas curtas; só no coração do Alentejo, um homem consegue ver ao longe.

    Mas foi preciso Bartolomeu Dias regressar ao reino depois de dobrar o Cabo das Tormentas, sem conseguir chegar à Índia para D. João II perceber que só o costado de um alentejano conseguia suportar com o peso de um empreendimento daquele vulto. Aquilo que para o homem comum fica muito longe, para um alentejano fica já ali. Para um alentejano não há longe, nem distância porque só um alentejano percebe intuitivamente que a vida não é uma corrida de velocidade, mas uma corrida de resistência onde a tartaruga leva sempre a melhor sobre a lebre.

    Foi, por esta razão, que D. Manuel decidiu entregar a chefia da armada decisiva a Vasco da Gama. Mais de dois anos no mar... E, quando regressou, ao perguntar-lhe se a Índia era longe, Vasco da Gama respondeu: «Não, é já ali.». O fim do mundo, afinal, ficava ao virar da esquina.

    Para um alentejano, o caminho faz-se caminhando e só é longe o sítio onde não se chega sem parar de andar. E Vasco da Gama limitou-se a continuar a andar onde Bartolomeu Dias tinha parado. O problema de Portugal é precisamente este: muitos Bartolomeu Dias e poucos Vasco da Gama. Demasiada gente que não consegue terminar o que começa, que desiste quando a glória está perto e o mais difícil já foi feito. Ou seja, muitos portugueses e poucos alentejanos.

    D. Nuno Álvares Pereira, aliás, já tinha percebido isso. Caso contrário, não teria partido tão confiante para Aljubarrota. D. Nuno sabia bem que uma batalha não se decide pela quantidade mas pela qualidade dos combatentes. É certo que o Rei de Castela contava com um poderoso exército composto por espanhóis e portugueses, mas o Mestre de Avis tinha a vantagem de contar com meia dúzia de alentejanos. Não se estranha, assim, a resposta de D. Nuno aos seus irmãos, quando o tentaram convencer a mudar de campo com o argumento da desproporção numérica: «Vocês são muitos? O que é que isso interessa se os alentejanos estão do nosso lado?»

    Mas os alentejanos não servem só as grandes causas, nem servem só para as grandes guerras. Não há como um alentejano para desfrutar plenamente dos mais simples prazeres da vida. Por isso, se diz que Deus fez a mulher para ser a companheira do homem. Mas, depois, teve de fazer os alentejanos para que as mulheres também tivessem algum prazer. Na cama e na mesa, um alentejano nunca tem pressa. Daí a resposta de Eva a Adão quando este, intrigado, lhe perguntou o que é que o alentejano tinha que ele não tinha: «Tem tempo e tu tens pressa.» Quem anda sempre a correr, não chega a lado nenhum. E muito menos ao coração de uma mulher. Andar a correr é um problema que os alentejanos, graças a Deus, não têm. Até porque os alentejanos e o Alentejo foram feitos ao sétimo dia, precisamente o dia que Deus tirou para descansar.

    E até nas anedotas, os alentejanos revelam a sua superioridade humana e intelectual. Os brancos contam anedotas dos pretos, os brasileiros dos portugueses, os franceses dos argelinos... só os alentejanos contam e inventam anedotas sobre si próprios. E divertem-se imenso ao mesmo tempo que servem de espelho a quem as ouve.

    Mas para que uma pessoa se ria de si própria não basta ser ridícula porque ridículos todos somos. É necessário ter sentido de humor. Só que isso é um extra só disponível nos seres humanos topo de gama.

    Não se confunda, no entanto, sentido de humor com alarvice. O sentido de humor é um dom da inteligência; a alarvice é o tique da gente bronca e mesquinha. Enquanto o alarve se diverte com as desgraças alheias, quem tem sentido de humor ri-se de si próprio. Não há maior honra do que ser objeto de uma boa gargalhada. O sentido de humor humaniza as pessoas, enquanto a alarvice diminui-as. Se Hitler e Estaline se rissem de si próprios, nunca teriam sido as bestas que foram.

    E as anedotas alentejanas são autênticas pérolas de humor: curtas, incisivas, inteligentes e desconcertantes, revelando um sentido de observação, um sentido crítico e um poder de síntese notáveis.

    Não resisto a contar a minha anedota preferida. Num dia em que chovia muito, o revisor do comboio entrou numa carruagem onde só havia um passageiro. Por sinal, um alentejano que estava todo molhado, em virtude de estar sentado num lugar junto a uma janela aberta. «Ó amigo, porque é que não fecha a janela?», perguntou-lhe o revisor.

    «Isso queria eu, mas a janela está estragada.», respondeu o alentejano. «Então porque é que não troca de lugar?» «Eu trocar, trocava... Mas com quem?»

    Como bom alentejano que me prezo de ser, deixei o melhor para o fim. O Alentejo, como todos sabemos, é o único sítio do mundo onde não é castigo uma pessoa ficar a pão e água. Água é aquilo por que qualquer alentejano anseia. E o pão... Mas há melhor iguaria do que o pão alentejano? O pão alentejano come-se com tudo e com nada. É aperitivo, refeição e sobremesa. E é o único pão do mundo que não tem pressa de ser comido. É tão bom no primeiro dia como no dia seguinte ou no fim da semana. Só quem come o pão alentejano está habilitado para entender o mistério da fé. Comê-lo faz-nos subir ao Céu!

    É por tudo isto que, sempre que passeio pela charneca numa noite quente de verão ou sinto no rosto o frio cortante das manhãs de Inverno, dou graças a Deus por ser alentejano. Que maior bênção poderia um homem almejar?

Vou mas éi comer a açorda que tenho mais que fazer.

 

João Mário Caldeira - Professor de História