domingo, 25 de junho de 2017

E acabou-se a história...



Epílogo


As Historias do Cota mais não são do que o fiel relato da minha vida à medida daquilo que a memória conseguiu reter de bom ou de mau. Eu contava essas “estórias” como entretenimento em família, às vezes entre amigos e em nossa casa, até que um dia o filho Pedro atirou, em modo de sugestão:

- Porque não passas tudo isso a escrito, pai?

Dei por mim a pensar:

- E porque não? Seria uma boa forma de os filhos (agora também as netas) ficarem com um registo autêntico e perpétuo das suas origens e raízes!

Assim começou esta aventura sem quaisquer pretensões de me armar em escritor porque sei e reconheço a humildade das minhas habilitações literárias, bem como o insuficiente conhecimento dos meandros gramaticais a usar na correcta redacção de um texto. Fiz por isso o melhor que consegui e sabia. Não inventei nada. Tudo o que ficou registado é a verdade, só a verdade e apenas a verdade. Nunca foi minha intenção melindrar, ofender ou por qualquer forma difamar fosse quem fosse, mas, se alguém achar que consegue desmentir seja o que for daquilo que aqui ficou escrito, faça o favor de se identificar e vamos aos factos.

Muitas outras “estórias” ficaram por contar porque seria impossível relatar o dia a dia de uma luta que já dura há sessenta e cinco solstícios de primaveras, verões, outonos e invernos. A minha vida quer a profissional quer a pessoal não terminaram obviamente no natal do meu último relato, pubicado há dias. Seguiram-se mais alguns anos de muito e dedicado trabalho em prol das gentes do concelho de Nisa confiadas à responsabilidade do efectivo do posto que comandei até finais de outubro de 1992, cujo elenco, no seu todo, era protagonista de uma tão excepcional qualidade e competência profissionais que nunca mais na minha vida os esquecerei.

Em Outubro de 1992 inopinadamente surgiu a possibilidade de voltar a Castelo de Vide e não resisti ao apelo. Aceitei o desafio sem imaginar que nem a esposa nem os filhos queriam já deixar Nisa. Provavelmente fui um tanto ou quanto egoísta porque não os consultei sequer. Também não deu tempo. Estava como sempre dentro do jipe a rondar os campos nas cercanias do Pé da Serra quando fui contactado via radio para me ser oficialmente informada a iminente transferência de Nisa para Castelo de Vide. E tinha que ser sim, ou não. Claro que a resposta compulsiva e imediata foi um rotundo SIM.

Precisava voltar àquele lugar onde como soldado mais novo do posto tinha sido insultado, difamado e judiado tantas vezes. Não para me vingar de ninguém que eu não sou de vinganças. Queria tão só e apenas fazer as pazes com aquele meu doloroso passado. E fiz mesmo. Completamente. Só não tive tempo de aquecer muito o lugar na terra do meu pai como comandante de posto, porque, entretanto, no mês de abril seguinte – 1993 – surgiu a nomeação para ir para a Escola Prática de Infantaria em Mafra frequentar o curso de promoção ao posto seguinte, findo o qual  fui colocado por motivo dessa mesma promoção em Portalegre a chefiar a secretaria da Companhia de Comando e Serviços na subunidade de Instrução ali existente. Dali transitei mais tarde para a chefia da Secretaria Geral do Comando e foi nesta subunidade que terminei, dez anos mais tarde, o meu percurso profissional com a passagem à reforma.

As Histórias do Cota ficam então por aqui. Mas prometo que vou continuar este meu vício da escrita com muitos e variados assuntos, quiçá, quem sabe, mais uma ou outra “estória” de vida que de repente me lembre e considere valer a pena passar a escrito. Obrigado a quem se dá ao trabalho de ler o que escrevo, obrigado também pelos incentivos que me chegam das mais variadas formas.

A vocês Manel e Pedro Coelho(s), compete agora continuarem, se assim o entenderem, mas com as vossas estórias porque também as têm, e para que as vossas filhas e minhas net@s saibam de onde vieram os seus apelidos paternos...

Disse.

Um beijinho do vosso pai

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Coisas que leio...

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Confissão de um criminoso que quer ser expropriado


Nunca lá fui. Não sei onde fica. Não faço ideia se tem eucaliptos. Nasci e cresci na cidade, nem sequer sei reconhecer um eucalipto. Desconheço quem são os meus vizinhos naquele terreno, ou se existem. Fiquei com esse património quando uma morte na família implicou um sorteio de lotes pelos herdeiros, tornando-me coproprietário de um “prédio rural” perto da aldeia onde parte da família morava, antes de virem todos para Lisboa. Salvo meia dúzia de vezes em que passei lá férias em criança, a minha ligação a essa aldeia da Beira Interior é quase nula. Agora demora-se quatro horas a chegar lá, antigamente era um dia inteiro. O terreno tem um valor patrimonial de 54 euros. Quando abro o Portal das Finanças, lá está ele, mas nunca me foi solicitado o pagamento de IMI ou de qualquer outra taxa, imposto ou o que quer que seja. E está assim há mais de uma década. Ocasionalmente, em conversa com o outro coproprietário da família, ocorre-nos vendê-lo ou fazer uma doação, mas não temos facilidade de contactos na zona. E acima de tudo sou um agente económico vagamente racional: respondo a incentivos. Antecipo que, para me desligar de um terreno que vale 54 euros, terei de gastar centenas de euros em deslocações, estadias e burocracias, perder tempo que escasseia. O único incentivo que tenho é o de manter tudo como está. Sou culpado de inércia e um criminoso em potência. Desde que tenho o terreno ainda não houve fogos de grande dimensão perto da aldeia, mas nada impede que isso aconteça. Se esse dia vier, e ali morrerem bombeiros ou famílias inteiras como em Pedrógão Grande, não saberei sequer se foi o meu terreno de meio hectar a causar tamanho sofrimento. Infelizmente não sou caso único. A minha situação é paradigmática do abandono a que grande parte do país rural está hoje votado, que explica como tragédias como a dos últimos dias tenham tanto campo fértil para deflagrarem. O fim do êxodo rural não se decreta, mas onde há uma falha o Estado tem de atuar. Não sendo um dos múltiplos especialistas instantâneos em incêndios, o que retenho das intervenções de quem percebe de facto da matéria leva-me a concluir que a solução tem de passar por uma ação mais assertiva dos poderes públicos. Seria uma reforma polémica, num país conservador em termos de propriedade. Os técnicos usam termos como emparcelamento ou gestão florestal. Em termos simples, significa que, no limite, o Estado tem de expropriar terrenos abandonados, sem proprietário conhecido, ou mesmo aqueles em que o dono se recuse ou não tenha condições para fazer a limpeza ou alterar a tipologia das plantações. A propriedade privada não é um valor absoluto quando está em causa o interesse público. Por favor expropriem o meu terreno, antes que seja tarde demais.

João Madeira in Jornal Economico 

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

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Natal “de patrulha”
(porque sim)


Não sei ao certo o ano em que começou a ser dada aos militares da guarda dispensa de 50% do efectivo dos postos no Natal, enquanto os outros 50% eram dispensados no Ano Novo. Foi meados de 80 sendo comandante geral da Guarda o General Tomé Pinto, que foi, quanto a mim, o primeiro general-comandante a adoptar uma política de proximidade aos efectivos no terreno e se dignava sair do seu gabinete para visitar regularmente os postos no Portugal profundo, conhecer os militares, dialogar com eles num á-vontade espectacular, desmistificando enfim a ideia reinante de que os comandantes da instituição eram inacessíveis e a maioria dos guardas só conhecia pelas fotos afixadas nos quartéis do dispositivo ou pelas notícias nos meios de comunicação social.

Tal dispensa foi a melhor coisa que aconteceu aos militares da guarda num período de muitas décadas porquanto era de todo impensável programar uma consoada ou um fim de ano em família por causa da escala do serviço, que, pelo menos por estas bandas, só era afixada na véspera e sem qualquer facilitismo por parte dos (tais) "mandantes" de posto que nessas datas ainda se deleitavam mais em fazer render a sua autoridade e o pessoal tinha que esperar para saber cada um o seu serviço só à última hora. Uns valentões, aqueles velhos generais de província. Felizmente que ao ser concedida tal   dispensa, foram simultaneamente divulgadas por escrito as instruções para a sua aplicação, para evitar que pudesse continuar a haver a tal manipulação em benefício dos afilhados e prejuízo dos que não eram.

Nesses termos, logo no início de Dezembro era dado ao efectivo de cada posto a hipótese de escolha, porque, obviamente, havia os que queriam o Natal e havia os que preferiam o Ano Novo. Se o pessoal se entendia entre si eram feitas as listas das dispensas com os 50% de cada período e enviadas ao escalão superior para registo. Se o pessoal não se entendia, era feito um sorteio isento e fidedigno e ponto final. Calhava a quem calhava e não havia mais espiga.

Foi por essa época que começaram também as operações Natal Seguro que tinham inicio a 22 de Dezembro e se prolongavam até 8 de Janeiro, programadas a nível nacional para fiscalização dos itinerários principais de cada região. Essa nova missão obrigava a manter patrulhas na estrada quase em permanência. Eu tinha o costume de, na noite de Natal em particular, escalar o serviço por forma a que as patrulhas regressassem no máximo até às vinte horas, interrompendo as actividades operacionais o tempo necessário para que o pessoal que não estava de serviço interno pudesse ir consoar com a família. Até porque, a partir do anoitecer, em qualquer vila ou aldeia do interior, as ruas, estradas e caminhos ficam, por norma, completamente vazios de gente nessa noite pois todo o comercio incluindo cafés encerram às dezanove.

Foi num Natal que o senhor oficial comandante da Secção de Nisa entendeu que deveria estar toda a noite e sem qualquer interrupção algum pessoal de patrulha na rua. O quero-posso-e-mando que sempre existiu e há-de existir, principalmente em pessoas que se julgam todo-poderosas só porque ostentam galões dourados sobre os ombros.

Em vão tentei explicar o quanto era desnecessário e inútil tal determinação na medida em que não iria haver ninguém nas ruas nem a circular nas estradas. Consegui com isso que me respondesse que quem mandava era ele e ponto final. Ainda sugeri, tendo em conta a escassez de pessoal por estar no posto apenas 50% do efectivo, que ele nos desse também uma mãozinha vindo connosco. Não obtive qualquer resposta.

Assim foi determinado e assim se cumpriu. Mas à minha maneira. Porque, ainda que sem necessidade de atirar com isso à cara de ninguém, eu também ali mandava alguma coisa. Em vez de consoar em casa com a minha mulher e com os meus filhos, convidei as mulheres e os filhos dos militares de serviço no posto e foram elas que lá prepararam a nossa ceia de Natal com tudo a preceito.

Escalei as patrulhas para regressarem ao posto até às 20 horas e como sempre se fazia nessa noite mandei os guardas para suas casas consoar com as famílias. De “patrulha” e seguindo as instruções que me tinham sido ordenadas fiquei apenas eu e o meu motorista, que, "por acaso", era até um militar que ficara sozinho em Nisa por ter enviado a família para a terra natal onde ele iria ter no Ano Novo.

Circulámos inutilmente pelas ruas de Nisa, Monte Claro, Arez, Velada, Arneiro, Pé da Serra e subúrbios vazios de qualquer movimento naquela gélida noite até que do posto nos chamaram via rádio porque a ceia de consoada estava pronta. Deixámos a viatura à porta do quartel como se fazia sempre no decorrer das patrulhas e fomos saborear o bacalhau com couves na companhia dos plantões e das nossas mulheres e filhos. Foi uma consoada diferente, “em serviço” na sala de convívio do posto. Ceámos em paz e confraternizámos um pouco mas não descurámos o facto de estarmos “de patrulha”. Por isso quando me pareceu que eram horas de continuar deixámos as famílias reunidas à volta da lareira do posto e voltámos ao giro.

Esperei propositadamente pela meia-noite nas cercanias da residência do oficial comandante e assim que ouvi a primeira das doze badaladas fui tocar a campainha da sua porta. No momento seguinte apareceu ele acompanhado por uma baforada de ar quentinho e confortável mal a porta abriu.

Olhou-me intrigado e perguntou:

- Tu por aqui?

- Sim, meu comandante. Venho desejar-lhe um feliz Natal e mostrar-lhe que, conforme “mandou”, cá andamos nós a patrulhar as ruas e estradas desertas.

Algo comprometido, atirou:

- Mas eu não te mandei ir a ti…

- Pois não, respondi. Mas tendo em conta tudo o que me foi ensinado, “nós, os comandantes", temos o indissociável dever de dar exemplo aos subordinados! E é por isso que cá ando. Se me dá licença, uma vez que já lhe desejei um bom Natal, continuação de boa noite para si e boas festas também para sua excelentíssima família…

No dia seguinte não o vi porque era dia de Natal e ele não foi ao gabinete. Porém, quando nos vimos depois daquela visita natalicia à meia noite que eu deliberadamente lhe fui fazer, olhou-me fixamente e murmurou:

- Coelho! Tu és mesmo torto…

Nem lhe dei troco!

Para quê?


José Coelho in Histórias do Cota

sábado, 17 de junho de 2017

Um ano depois...


    16 de Junho de 2016
    Hospital Lusíadas Lisboa
    Ressecção endoscópica da próstata para me ser retirado um adenoma.
    Internado as 11 da manhã, por estas horas estava a dormir já sedado.
    A cirurgia marcada para as 18 horas teve que ser alterada para as 22 por motivo de força maior....
    O cirurgião dr Varregoso foi acudir a uma situação de emergência derivada de um acidente de viação grave.
    Para me manterem calmo e alheado das horas, sedaram-me.
    Acordei quando a equipa de enfermagem foi buscar-me ao quaro para me levar ao bloco operatório.
    Um enfermeiro jovem e sorridente deu-me as boas-vindas ao bloco apresentando-se como enfermeiro chefe assistente, dizendo o nome que já esqueci.
    Toda a equipa assistente do dr Varregoso era disciplinada, eficiente e muitissimo simpatica.
    A seguir veio a cardiologista que me ligou ao electrocardiografo.
    Depois a anestesista.
    - Isto não vai doer nada...
    Tudo gente simpatica e bem disposta.
    Nem parecia o bloco operatório de um dos mais conceituados hospitais particulares do país...
    Completamente grogue dei porém conta que a doutora anestesista esteve sempre à cabeceira da mesa de operações do lado direito a falar para mim.
    Não recordo nada do que me disse e a sua voz parecia vir do fundo de um túnel.
    A doutora cardiologista também esteve sempre à cabeceira da mesa mas do lado esquerdo a controlar o bip bip do aparelho a que eu estava ligado ...
    - Preciso de outro balde, ouvi alguém pedir, daqueles que estavam a assistir o cirurgião, a meio da mesa de operações.
    - O doutor está já quase a terminar, disse-me a doutora cardiologista..
    - Já? Demorou tão pouco... Respondi atabalhoadamente
    Demorou duas horas! Já é meia noite, respondeu a doutora.
    Sem qualquer percepção do passar do tempo dei por mim já operado no recobro e cheio de frio.
    Depois fui levado para o quarto todo entubado nas vias urinarias.
    Credo...
    Como cabem tantos tubos?
    Foi duro
    Mas já passou
    Um ano
    A gente nunca mais esquece
    A gente nunca mais fica como era
    Ainda assim, há que dar graças
    Podia ter sido pior

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

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O primo do doutor juiz


É da maior justiça referir que o meu desempenho como comandante do posto de Nisa, naquele já distante intervalo temporal entre Agosto de 1985 e Outubro de 1992, não teria tido o êxito que teve se não fosse, como já aqui referi, a preciosa colaboração do pessoal da Polícia Judiciária da Delegação de Tomar que prontamente “acudiam” aos meus pedidos de ajuda nas mais diversas situações quando tínhamos imensos indícios deixados pelos ladrões mas não tínhamos depois os meios técnicos e científicos para os analisar e com eles conseguir posteriormente incriminar os culpados para os apresentar em tribunal.

Por outro lado e tão importante como a colaboração da PJ era também a dos altos responsáveis pela administração da justiça na comarca, fossem eles os meritíssimos juízes, ou os excelentíssimos delegados do procurador da República junto daquele tribunal que normalmente aplicavam a Lei de uma forma particularmente eficaz.

Muitos desses ilustríssimos magistrados cujos nomes não posso por razões óbvias referir, faziam o favor de me dispensarem a sua estima e consideração que eu fazia por merecer actuando sempre com dignidade em todas as situações e no uso do melhor que sabia, de forma legítima e isenta, esforçando-me por não exceder nunca as minhas competências no cumprimento dos preceitos previstos e prescritos na Lei.

Nem sempre consegui em boa verdade. Cometi alguns erros, porém nunca deliberados e muito menos por excesso de zelo ou má fé. Exemplo disso, uma peripécia que vos vou contar hoje, não porque considere que agi da forma mais correcta, mas porque, humano que sou, me faltou mesmo a paciência e a serenidade que qualquer agente da autoridade nunca deveria perder.

Havia em Arêz um indivíduo ruinzinho, muito conflituoso e agressivo com quase toda a gente. Era meio corcunda. Não sei se por ter aquela deformidade física, era de facto mau como só ele mesmo e não se dava com quase ninguém. Criava conflitos com toda a vizinhança por tudo e por nada e se algumas vezes as patrulhas tinham que intervir era certo e sabido que tinha que haver sempre chatices porque ele não se coibia de responder mal e agressivamente fosse a quem fosse.

Tinha este indivíduo uma meia dúzia de vacas de raça turina que explorava como modo de vida, pastoreando-as por ali e vendendo depois o leite que lhe rendia algum dinheiro como é natural. Até aqui tudo bem, era uma forma de subsistência como outra qualquer. O grande e principal problema porém era que ele não tinha terrenos nem pastos suficientes para pastorear as vacas o ano inteiro e invadia as propriedades dos vizinhos a torto e a direito indiferente aos protestos deles, maltratando-os e ameaçando-os verbalmente sempre que estes reclamavam e tendo mesmo chegado a agredir fisicamente alguns mais idosos com quem ele se atrevia melhor.

Foi a sua apetência de transgredir os preceitos de boa vizinhança e por achar seus, os pastos dos outros, que me levou ao confronto com ele. Após a enésima queixa de mais um vizinho, mandei, pela enésima vez também, a patrulha de intervenção ir avisá-lo que não podia invadir aquele terreno com as vacas. Como já se previa, o indivíduo para além de receber a patrulha com a maior insolência como era seu uso e costume, retrucou que “aquilo não eram terrenos da guarda nem do Estado e quer por isso nós não tínhamos nada com isso...”

Em acto contínuo a patrulha contactou-me via rádio a dar conta da situação mas como não achei que aquela manifestação de pura ruindade pudesse conformar um crime de desobediência passível de detenção assim à priori, ordenei-lhes pela mesma via que o notificassem oficialmente e por escrito para comparecer no dia seguinte a determinada hora no posto para eu tentar de uma vez por todas elucidar o indivíduo que tinha que respeitar a lei e a ordem como qualquer outro cidadão. Mais lhes dei ainda indicações que o avisassem, para que ficasse ciente, que a sua não comparência depois de devidamente notificado, implicaria outras medidas legais mais gravosas.

O “gajo” era bruto de facto mas de parvo não tinha nada e no dia seguinte à hora que lhe tinha sido indicada lá estava o corcundinha a deitar fumo pelas ventas à minha frente e no meu gabinete. Nem me deu tempo de lhe explicar nada. Começou logo por me “avisar” que era primo direito do doutor juiz – um dos tais de quem eu era bastante amigo por sinal – e que me pusesse a pau que ele (corcunda) “tirava-me a farda”. Depois, nos mesmos modos irados, fez-me notar, como se isso não fosse visível, que era deficiente e que por isso tinha mais direitos do que as pessoas perfeitas porque essas podiam “fazer pela vida” melhor do que ele. 

Ia continuar a sua verborreia verbal mas teve azar porque eu tinha já perdido a paciência e dei-lhe um berro:

- CALE-SE…

O meu tom de voz não augurava já nada de pacífico.

Mas, velhaco como as cobras, o indivíduo não se intimidou. Qual quê! Cresceu para mim, encostou quase o seu nariz ao meu. E provocantemente, perguntou-me num tom zombeteiro:

- Quer bater-me?

- Quer?

- Vá! Bata-me…  

- Ande lá, bata-me…

Záááás… Nem é tarde, nem é cedo!

Afifei-lhe um bofetão de mão aberta  com tanta genica que o infeliz balançou e ia caindo desamparado para cima da outra secretária onde estava um dos Cabos a dactilografar ofícios.

Em seguida respondi-lhe, no mesmo tom que ele utilizara:

- Não, por acaso não queria bater-lhe. Isso não estava nos meus planos. Mas como insistiu tanto não pude deixar de lhe fazer a vontade… Ou o senhor cuida que por ser deficiente físico pode fazer e dizer tudo quanto lhe dá na gana e que nós somos todos obrigados a ter muita pena do coitadinho do corcundinha? Como vê, comigo pia fininho e sairam-lhe as contas furadas...

O energúmeno empalideceu primeiro, depois ficou vermelho e a seguir ameaçou:

- Vou agora mesmo fazer queixa de si ao meu primo juiz que ele já lhe faz a cama… Você está lixado!

E saiu porta fora de estantilhão dirigindo-se mesmo para o tribunal de Nisa. Não fiquei minimamente preocupado. Não devia ter-lhe batido, é certo. Não foi um comportamento correcto da minha parte, também é verdade, mas não consegui conter-me. No entanto conhecia suficientemente bem o senhor doutor juiz e ele conhecia-me também a mim de igual modo. Não era meu hábito negar fosse que episódio fosse. E se ele me tivesse chamado ter-lhe-ia dito toda a verdade sem omitir nada e sem qualquer hesitação.

Porém, tal não foi necessário, muito pelo contrário.

Passada mais de uma hora o corcundinha compareceu de novo no posto muito mais calminho, rabinho entre as pernas como costuma dizer-se, mandado pelo seu primo juiz, o qual, ao contrário do que ele esperava, lhe terá respondido:

- Se o sargento Coelho te deu uma bofetada é porque de certeza tu já merecias duas, pois eu conheço muito bem o homem. Vai lá e pede-lhe desculpa, escuta o que ele tem para te dizer que deve ser para teu bem, antes que tenhas problemas maiores e mais sérios…

Não tenho qualquer dúvida. Se não fosse a excelente colaboração entre a instituição que eu servia e todas as outras instituições públicas de Nisa, que, antes de eu ali chegar, era pura e simplesmente inexistente, todo o meu trabalho e empenho, bem como o de todos os militares que comigo se empenhavam dia e noite, nunca teria alcançado tais resultados. E o desfecho deste episódio revela a confiança absoluta que existia entre nós, neste caso concreto, entre o tribunal e a guarda.

Para terminar por hoje só mais uma atitude normalíssima deste extraordinário magistrado, quando certa vez lhe apresentei um indivíduo que tinha detido em flagrante delito a roubar, e que ele, após os trâmites legais cumpridos, de imediato o mandou conduzir ao Estabelecimento Prisional de Castelo Branco como medida cautelar. Mais tarde comentou comigo: - Sargento Coelho este já foi lá para dentro. E enquanto o advogado o tira ou não tira de lá, passam umas semanitas sem ele andar aí fora a roubar mais…

Outros tempos... Que bons e velhos tempos esses! E que falta fazia que se fizesse sempre assim.


José Coelho in Histórias do Cota

Coisas que publico noutros sítios...

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    Há dias assim. 
    Especiais. 
    Por ser dia santo de Corpo de Deus? 
    Talvez... 
    Eu acredito n'Ele desde que me conheço....

    Mas vamos aos factos: 
    Logo pela manhã a oferta mais-que-divina de um delicioso concerto do tal rouxinol que veio pousar no nosso limoeiro, encantado talvez pelo brilhante verde dos novos rebentos que o compõem agora, depois da severa poda que levou.
    Foi uma visita invulgar aqui pelo cimo dos canchos onde eu moro porque "esses artistas" gostam mais de actuar na frescura do arvoredo e silvados das margens do ribeiro da Cavalinha ou da fonte da Murta onde é comum ouvir os seus melodiosos trinados.
    Ouvir tão conceituado tenor enquanto se degusta uma torrada de pão caseiro com manteiga dos Açores e uma caneca de aromático café acabado de fazer, é quase viver no paraíso.
Foto by José Coelho
    Mas não terminou ali o nosso singular dia de Corpus Christi...

    Caía a tarde quando o telefone tocou.
    Do outro lado, a mana mais velha da dona da casa, recomenda-lhe que passe por lá, quando puder:
    - Irei, logo que baixe mais este calor... Respondeu-lhe
    Quase 40º hoje. 
    Começou o braseiro alto alentejano!

    E lá foi a mana mais nova, conforme o combinado.
    - É para te dar uma cesta de alperces e um alguidar de ovos...
    Em dias destes a gente quase consegue esquecer o abandono que nos rodeia e sentir-se abençoado por ainda cá viver.
    Obrigado a quem providenciou, fosse quem fosse!
    Disse.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

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Esta “nôte” ninguém “drome”


Um flagelo que atormentava as populações dos povoados mais afastados de Nisa era o roubo frequente dos fios de cobre das linhas telefónicas que cruzavam o interior das matas para levarem as comunicações aos seus habitantes. Rara era a semana em que não desapareciam misteriosamente algumas centenas de metros dessas linhas deixando incomunicáveis as aldeias e causando toda a uma série de transtornos para além de nos deixar a nós, autoridades locais, num embaraço que muito me confrangia. Cada vez que aquilo acontecia sentia como se fosse algo de minha propriedade que havia sido vandalizado.

Passei por isso mesmo a nomear mais patrulhas nocturnas em substituição das diárias, algumas noites até mais do que uma e onde me incluía obviamente também, tal era a vontade de deitar a mão ao/s salteador/es. Andámos nisso mais de três meses e nada de resultados. Na verdade conseguimos apenas que a frequência desses roubos diminuísse um pouco, mas, daqui que dali e quando menos esperávamos, zás… Mais um! Apenas uma particularidade. A de os roubos passarem a acontecer e as aldeias ficarem de repente sem comunicações já ao amanhecer quando as patrulhas recolhiam depois de noites inteiras de vigilância.

Deduzi facilmente que o gatuno ou gatunos seriam de Nisa e vigiavam a saída das patrulhas, coisa assaz muito fácil, dada a localização do posto bem no centro da vila nesse tempo, assim como a saída do pessoal, cavalos e viaturas que era visível de qualquer ângulo da extensa Praça da República adjacente. Não seria nada complicado para quem quisesse fazer tal controlo conseguir levá-lo a cabo tranquilamente e sem ser visto. Tive que adoptar assim outra estratégia recusando resignar-me àquele estado de coisas e mais empenhado que nunca em capturar, se possível em flagrante delito, o, ou os energúmenos.

Pedi, muito em segredo, a dois ou três militares se queriam colaborar no meu plano que consistia em eles não entrarem sequer no posto e não se fardarem. Aguardariam a minha chegada trajando à civil em locais pré-combinados nos seus carros particulares. Pedi, porque eles não eram obrigados a ceder os seus veículos, mas eles aceitaram sem qualquer reserva. Assim, eu saía do posto à civil como quem vai passear e ia ter às proximidades onde estava já o outro militar no seu carro à minha espera para circularmos depois toda a noite pelas zonas onde se situavam as linhas telefónicas mais sensíveis sem levantar suspeitas, enquanto os jipes continuavam a sair e a circular com as patrulhas do costume e a maior naturalidade.

Não foi preciso muito tempo nem perder muitas noites. Certa madrugada ao transitarmos na estrada que vai para Tolosa quase à saída de Nisa vimos um indivíduo em absoluto silêncio a rolar um rolo de fio de cobre como se fosse um daqueles arcos de ferro com que nós brincávamos quando éramos gaiatos. Conheci imediatamente o indivíduo. Nada mais nada menos que um velho cadastrado por uma panóplia de furtos domésticos, roubos de cabritos, borregos, frutas e legumes das hortas, mas não só. Como não conheceu o carro nem imaginava que fôssemos nós, não tomou quaisquer precauções.

Parámos por isso mesmo ao lado dele e eu saí de imediato identificando-me e dando-lhe ordem para parar. Quando me reconheceu o indivíduo nem tugiu nem mugiu na mais absoluta surpresa. Só passados uns instantes sibilou entre dentes:

- Se viesses no jipe não me tinhas apanhado, não…

Verificados os pressupostos de crime em flagrante delito dei-lhe voz de detenção e constituí-o arguido segundo as normas legais em vigor e a seguir chamei pelo rádio a patrulha que circulava por outras bandas para vir recolher o rolo de cobre e o arguido e transportar tudo para o posto.

Foi fácil conseguir depois a confissão de todas as tropelias daquele meliante que tantas dores de cabeça nos vinha causando há uma série de meses sem contar com o transtorno de as populações afectadas ficarem depois vários dias incomunicáveis enquanto a PT não restabelecia as linhas vandalizadas.

E foi mais fácil ainda porque ao ver-se encarcerado o arguido se dispôs a contar tudo na condição de eu o deixar depois ir para casa passar o resto da noite, comprometendo-se ele a comparecer no tribunal à hora que eu indicasse. Não lhe disse logo que depois de lhe ter dado voz de prisão só o juiz o podia já libertar porque não me convinha afugentar a sua aparente cooperação. Por isso, disse-lhe apenas:

- Primeiro o senhor fala e eu escrevo. Depois resolvemos o resto.

E assim fiquei a saber que era mesmo ele que roubava as linhas telefónicas. Aquele rolo com que eu o apanhei em flagrante era o produto do seu último assalto que ele cortara, enrolara e escondera para o ir buscar naquela madrugada.

- Mas se você não viesse naquele carro preto, nunca me ganfava… Frisou de novo com veemência.

Contou-me que possuía um par de garras dentadas daquelas que os eletricistas aplicam nos pés para subir aos postes, cortava duas ou três linhas entre 3 ou 4 postes, fazia aqueles rolos que escondia nas proximidades e levava-os para casa  mais tarde para os cortar em bocados de 40 cm que acondicionava numa mala de viagem. Ia depois no expresso a Lisboa vendê-lo a determinado sucateiro na zona de Sacavém, ao preço de trezentos escudos o quilo.

Como a mala de viagem levava cerca de 40 Kg, rendia-lhe doze contos. E como fazia essa viagem duas vezes por semana, tinha um ordenado maior que o do presidente da câmara! E gabou-se, orgulhoso:

- Como é que você acha que eu governo a minha casa?

A máquina de escrever até deitava fumo. Ele ia falando, falando, e eu dactilografando, inquirindo mais e mais coisas, numa afabilidade tal que parecia que tínhamos andado juntos à escola. Criei propositadamente um clima de admiração pelos seus gloriosos feitos e dotes de esperteza. De tal modo o indivíduo se envaideceu que até confessou onde tinha mais cobre escondido. E que em casa havia mais, já pronto a emalar.

A patrulha do jipe passou por isso o resto da noite a acarretar cobre dos esconderijos para o posto afim de ser entregue no tribunal no dia seguinte junto com o detido. Era já quase dia quando tudo ficou pronto. Só depois disse ao indivíduo que não o poderia libertar porque uma vez constituído arguido só mesmo o senhor doutor juiz determinaria o procedimento seguinte.

Furioso começou aos pontapés na porta da cela, ameaçando aos berros:

- Se eu não for “dromir” a casa aqui "tamém" ninguém “dróme”!

E vá de pontapear a porta da cela fazendo um estrondo ensurdecedor.

Habituado ao comportamento imprevisível destes energúmenos disse ao plantão que abrisse a porta do cárcere para ordenar ao detido que tirasse dos pés as botas que tinha calçadas.

Não queria!
Mas tirou. 
Que remédio.

Enfrentei o seu olhar furibundo e sem pestanejar retorqui-lhe antes de me retirar:

- Agora já pode dar pontapés na porta com toda a sua força. E se achar que ainda não faz barulho suficiente, bata-lhe também com a cabeça!

Vai lá vai…

Nem mais um pontapé se ouviu.

O gajo aquietou-se e não chateou mais ninguém até ser presente no tribunal juntamente com duas carradas de jipe repletas de rolos de fio de cobre roubado …


José Coelho in Histórias do Cota

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem retirada do Google


Trabalhem malandros …
(para isso vos pagam)


Nos primeiros dois anos da minha nova função decidi conhecer palmo a palmo toda a área cuja ordem e tranquilidade públicas estavam confiadas à responsabilidade do “meu” posto para poder coordenar melhor o policiamento e vigilância de tão grande extensão territorial.

Foram precisas muitas horas a calcorrear de jipe e a pé as povoações e os seus acessos para perceber a intrincada teia de estradas e caminhos rurais pelas encostas e pinhais da serra de S. Simão a norte e nascente, depois pelas densas matas de eucaliptos a sul e poente de Nisa.

Apesar de todo o meu empenho as queixas dos mais diversos furtos sucediam-se diariamente no posto, com prevalência para o desaparecimento dos gados que enxameiam por toda a área daquele concelho eminentemente produtor do leite que dá origem ao "Queijo de Nisa DOP" cuja fama há muito cruzou fronteiras.

Vi-me por isso na necessidade de, muito em segredo como convinha e para não espantar os ladrões antes de os conseguirmos apanhar, pedir ajuda à Polícia Judiciária de Tomar que tal como nós tinha também a seu cargo a àrea de Nisa para investigação de crimes da sua exclusiva competência.

Assim começámos um trabalho conjunto cada um na sua esfera de competências comando e chefia mas orientado todo ele para um só objectivo. Travar a onda de roubos e apanhar os ladrões. Levou meses. Muitas vezes as equipas da PJ foram recebidas na minha casa sem ninguém imaginar sequer quem seriam aqueles senhores. E muitas merendas a minha esposa preparou para eles petiscarem depois de calcorrearem horas a fio os agrestes caminhos de acesso aos currais na procura de pistas junto dos pastores ou mesmo no próprio terreno.

Em consequência dessa estreita colaboração que apenas era do meu conhecimento e do senhor oficial comandante da Secção como não podia deixar de ser, estabeleceu-se pouco a pouco uma amizade institucional entre mim e as equipas daquele brilhante e eficaz organismo. De tal modo que mais tarde resultou mesmo na sua extensão aos familiares de alguns deles, como foi o caso da esposa e filhos de um dos subinspectores que passaram a visitar-nos e que nós visitávamos também, amizade que se mantém até hoje.

Só muitas semanas mais tarde quando por fim se conseguiu referenciar o bando de ladrões e recuperar algum do gado roubado é que o efectivo do posto percebeu quem eram aquelas equipas de gente estranha que frequentavam a minha casa, porque houve muitas diligências a ser realizadas já no posto, como por exemplo a audição de alguns suspeitos, a recolha de impressões digitais dos mesmos, enfim, toda a panóplia de inquirições e démarches necessárias à instrução do processo-crime entretanto aberto.

Na sua maioria os roubos eram levados a cabo por um bando de ladrões devidamente chefiados por um Ali Bábá das bandas de Belmonte, que, organizadamente, vinham durante o dia marcar o terreno uns, para durante a noite efectuarem os assaltos, outros. Transportavam imediatamente os gados roubados para o interior da Beira Baixa de onde os encaminhavam a seguir para alguns matadouros mais a norte numa acção perfeitamente concertada e certinha que seria impossível descobrir se não tivéssemos a excelente e competentíssima PJ neste país de xicos-espertos onde só não consegue enriquecer e singrar na vida quem trabalha honestamente.

Foram meses de muito trabalho e secretismo. Foram também meses de cenas caricatas e divertidas que aconteciam e nos ajudavam a descontrair, esquecendo um pouco as frustrações imensas que qualquer investigação criminal inesperadamente proporciona, quando, por exemplo, nos parece que estamos mesmo quase, quase, a atingir um alvo, e, de repente, verificamos que todas as pistas que vínhamos a seguir eram falsas.

A investigação criminal que sempre me fascinou e proporcionou saborosos êxitos no combate ao crime, também muitas vezes teve o efeito devastador de me fazer chegar à conclusão que todo o meu trabalho e esforço tinham sido inúteis. Ainda assim, sem dúvida que valeu sempre a pena. Hoje temos os NICs. Se eu voltasse para o serviço gostaria de ser um desses elementos. Porque é fascinante o seu trabalho de pesquisa e investigação. Que o diga o meu caçula que enveredou por esse caminho.

Uma situação caricata que vivemos, foi quando, depois de muito trabalho de investigação, se conseguiu localizar e recuperar uma dúzia de cabras com os seus cabritos que tinham sido roubadas a um casal de idosos no Monte do Pardo.

Quisémos eu e o subinspector da PJ estar presentes no momento da descarga do gado e respectiva devolução aos donos. Por um lado por nos sentirmos realizados com tal resultado, por outro lado para transmitirmos também alguma confiança às populações que andavam inquietas e com receios permanentes de verem uma noite qualquer desaparecer também o seu gado.

A nossa presença naquele acto simbólico queria no fundo incutir algum sossego e mostrar que estávamos no terreno e perto deles a tentar cumprir o nosso dever. Assim que as cabras lhe foram entregues e verificado que nenhuma faltava, veio o dono, de boné na mão, muito reconhecido, agradecer por terem conseguido recuperar as suas cabrinhas e chibos. Porém, muito dona do seu nariz e muito mal-encarada, a mulher do pastor sentenciou inclemente:

- Ora essa! Qual obrigado, qual quê? Só fizeram a sua obrigação! É para isto que o estado lhes paga!

E abalou a resmungar tocando as cabras, deixando atónito o seu homem, mais ainda do que a nós. Envergonhado pediu desculpa, agradeceu de novo e lá foi também atrás da mulher mais do seu rebanho. 

E nós ficávamos a vê-los ir rindo a bandeiras despregadas e a assimilar o veredicto da despachada velhota.

- Toma lá que já almoçaste! Retorquiu, olhando para mim bastante divertido, o amigo Manel, o subinspector…


José Coelho in Histórias do Cota

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem copiada do Google


Ovelhas voadoras


Foi em 1985/1986 mais ano menos ano que teve início a atribuição de subsídios para os gados dos agricultores portugueses. Por cada cabeça manifestada recebiam anualmente determinada quantia, tal como acontece desde então até hoje, pese embora actualmente já seja tudo de tal maneira controlado que quando morre uma rês manifestada é um pincel de todo o tamanho para qualquer agricultor que tem que justificar mais que justificada a falta do animal no dia do controlo sanitário.

Porém no início foi um autêntico regabofe pois o controlo era  pouco eficaz e susceptível de ser facilmente viciado.

Chegavam ao meu conhecimento em jeito de rumores públicos os relatos mais recambolescos que nunca consegui confirmar. Estratagemas tais que, por exemplo, não havendo ainda a obrigatoriedade do uso dos brincos com os respectivos números de registo nos animais, o controlo era essencialmente feito apenas por contagem das cabeças de gado declaradas. Conferiam os técnicos somente se o número de cabeças presente no curral condizia com o número declarado para efeitos da atribuição do subsídio.

Havia - dizia-se - muitas reses que, sendo sempre as mesmas, eram contadas cinco ou seis vezes, porque eram emprestadas de vizinho para vizinho. Muitos deles tinham apenas 40 cabeças mas declararem 70 ou 80. Havia então que pedir emprestadas as que eram necessárias no dia da fiscalização para a contagem bater certo. E assim os dados eram viciados e completamente falsos. Constavam por exemplo 5000 ovinos num concelho onde na realidade só havia 3000.

Para cúmulo da facilidade as visitas dos técnicos para a conferência das existências declaradas por cada ganadeiro eram sempre previamente avisadas com dias de antecedência, com o único propósito de os proprietários manterem os gados nos currais no dia e hora marcados, mas que dava azo a todas essas falcatruas para as quais sempre tivemos, enquanto povo português e infelizmente, a maior apetência e leviandade.

O que hoje vos vou contar foi um episódio em que fui interveniente directo. E que tem tudo a ver com essa situação.

Certa manhã ainda mal tinha posto os pés no meu gabinete e já o plantão me estava a informar que estava ali um senhor que vinha denunciar um avultado roubo de que havia sido vítima essa noite.

Alguém tinha ido à cabana onde pernoitava o seu rebanho e lhe tinha roubado nada mais, nada menos do que trinta ovelhas!

- Ó diabo! Trinta ovelhas? Tiveram que as levar num camião! Pensei eu.

Um cabrito aqui, um borrego ali, até mesmo um bezerro acolá, de vez em quando já acontecia por aqueles arredores tendo em conta que em todo o concelho de Nisa desde Vila Velha de Ródão, Arneiro, Pé da Serra, Monte Claro, Amieira e Arez, até quase à Comenda, tudo era cabanas de gado bovino, caprino e ovino. Esses pequenos delitos na maior parte das vezes eram feitos para consumo de casa de quem gostava de ter nas arcas congeladoras carnes de boa qualidade mas não as queria comprar.

Mas, ó diacho...

Trinta ovelhas era quase o rebanho inteiro e isso exigia um grande transporte para as carregar e levar! Teria que ter havido um chavascal imenso para agarrar uma a uma e um trabalhão que inevitavelmente teria que ter deixado muitos vestígios no local.

Sem pensar duas vezes meti-me no jipe com o motorista e o queixoso atrás de nós e lá fomos de imediato ao local do crime.

Lá chegados, para enorme surpresa minha, não havia qualquer rasto visível. Nem de rodados de veículo, nem pegadas de calçado, nem qualquer vestígio de luta com as ovelhas que decerto não se deixariam agarrar de mão beijada e sem correrias mesmo durante a noite. Nem sequer a fechadura da cabana tinha sido forçada.

Deduzi imediatamente que o queixoso não estava a falar verdade. Até pela sua falta de à vontade, pelas respostas evasivas, enfim, por todo o seu ar meio atarantado.

E comentei:

- Ó senhor João as suas ovelhas não devem ter sido roubadas, não senhor. Devem é ter levantado voo, porque, como vê, aqui não há sinais de nada. Ninguém aqui chegou, nem de camioneta nem a pé, senão teriam deixado rastos. Por isso com certeza foi a voar que as suas badanas fugiram…

- Pois! Respondeu ele.

E manifestamente mais preocupado com as consequências do que com o “roubo” das ovelhas, desabafou ingenuamente:

- O pior é que vem cá hoje a fiscalização contá-las para o "subsílio". E agora faltam trinta! O senhor sargento tem que me passar um papel “in conforme” mas roubaram esta noite!

- Bingo! Pensei eu: 
- Cá está a explicação!

Voltámos para o posto os três. 

Com a maior diplomacia que fui capaz, disse-lhe que era óbvio ele não estava a falar verdade e que aquilo podia ser complicado porque estava a causar falso alarme social e a cometer uma série de infracções graves. Por isso o melhor era pensar bem no que estava a fazer pois para poder receber uma dúzia de contos de reis indevidos estava a denunciar um crime inexistente que até um cego via que não tinha acontecido e lhe podia dar sérias chatices.

O homem pensou, ponderou melhor e a seguir disse-me que sim senhor, era mentira. Não lhe tinham roubado nada. Ele é que tinha declarado 30 ovelhas a mais. Nunca pensou que eu ia lá "précurar" o rasto dos ladrões e que a única coisa que queria era o papel da queixa para poder mostrar aos fiscais “in conforme” tinha ido ao posto denunciar a falta do gado.

Entretanto e porque a situação fora formalmente apresentada e tinha já sido devidamente registada pelo plantão em livro próprio do posto, assim como também já fora mencionada no Sitrep diário, não podia a Guarda fazer outra coisa senão enviar o auto de denúncia para o magistrado do ministério público do tribunal de Nisa com a descrição dos factos. Consequentemente, após instrução do processo promovida por aquela entidade judicial, o referido senhor, entre outros incómodos, perdeu o direito ao subsídio por falsas declarações.

Daí em diante quem tinha gado para declarar começou a ter mais cuidado na sua contagem para receber apenas o montante devido, pois aquela xico-espertice do ti João começou a passar de boca em boca e em pouco tempo ficou conhecida de toda a gente, ainda mais por ter originado a perda também do subsídio das 50 ovelhas que de facto lá estavam.

Como diz o povo:

Quando vires as barbas do teu vizinho a arder, mete as tuas de molho…


José Coelho in Histórias do Cota