terça-feira, 30 de agosto de 2022

Do alto do meu reino



Esta foto parece desfocada, mas não está. Caía a tarde e a ténue neblina que pairava por todo o vale anunciava a aproximação da noite. Venho muitas vezes a este lugar, o ponto mais elevado da aldeia e meu bairro, para rever a paisagem encantadora que conheço desde que comecei a caminhar pelo meu pé. Bem sei que sou suspeito ao gabá-la porque nasci debaixo de um dos telhados mais próximos desta varanda natural de onde fiz a foto e que considero ser o miradouro panorâmico mais deslumbrante da aldeia.
Quando nasci quase todas as casas destas ruas "do lado de cá da linha" estavam já lá. Talvez com aspeto mais humilde, caiadas apenas de cal branca e com os alisares destacados a ocre amarelo, azul ou cinzento, as portas e janelas manualmente feitas por carpinteiros em vez das atuais pinturas com tinta industrial, ou das portas e janelas em alumínio. O lavadouro público era também a céu aberto todo rodeado por enormes lages e canchos sobre as quais as lavadeiras estendiam as roupas para corarem ao sol, mas que, entretanto, foram sendo cobertos pelo progresso que calcetou também os acessos e criou os atuais muretes em socalco com os modernos estendais de betão armado.
A maior diferença, no entanto, é que naquele tempo as lavadeiras se acotovelavam umas às outras para conseguirem lugar onde coubessem no tanque para lavarem as enormes alguidaradas de roupa que traziam à cabeça, enquanto hoje se contam pelos dedos de uma só mão as lavadeiras que durante a semana inteira dele fazem uso. E não é só pela concorrência feroz das máquinas de lavar. É muito pior que isso. É, infelizmente, porque já não vai havendo quem precise de lavar, pois as casas sucedem-se aos pares, às três e quatro seguidas sem morar já lá alguém.
O que resta de alguma vida e bulício nesta terra e mesmo assim não muito, é, "na parte de baixo da linha", entre o novo bairro da entrada principal da aldeia e a unidade de cuidados continuados, nascida da transformação em hospital do antigo prédio moradia dos funcionários da alfândega. Quem passa a linha férrea para o lado de cá onde eu (ainda) moro, depara-se com... quase ninguém. Meia dúzia de casas habitadas em cada rua e ruas haverá que nem isso. Sossego. Ausência de quase tudo. Portas e janelas fechadas e mudas. É verdade que, por enquanto, não ainda são visíveis sinais de desleixo ou abandono, muito pelo contrário, com exceção da Rua Vivas onde alguns telhados já começaram a desabar, mas ninguém parece importar-se muito com isso.
É verdade que não mora ninguém na sua maior parte e muitas delas são só casas de veraneio ou de férias dos seus donos, mas é verdade também que os mesmos cuidam primorosamente delas e dá gosto vê-las assim arranjadinhas, apesar de vazias quase todo o ano. Jamais na minha vida imaginei que iria assistir a isto. Imaginei isso sim, sonhei durante a maior parte da minha vida, envelhecer e morrer neste lugar que amo, sim, mas a ouvir o bulício normal de gaiatos a correrem e a brincarem pelas ruas ou no recreio da escola aqui tão próxima, a cumprimentar os vizinhos de quem fomos sempre quase família, a ouvir o apito dos comboios desde que assomavam ao alto da Atalaia vindos da Torre das Vargens, ou dos barreirões do Matinho, quando vinham de Valência.
Já perdi a maior parte dos meus entes queridos. Avós, pai e mãe, uma irmã, tios maternos e paternos. Mas essa é a lei natural da vida e embora doa eu consigo entendê-la. Todos nós, quando vimos ao mundo, temos como herança irrevogável num futuro próximo ou longínquo, a certeza de que um dia iremos deixar de lhe pertencer. Só ninguém sabe quando, onde ou como. Por isso, embora me tenha causado sofrimento cada uma dessas perdas, acabei por aceitá-las como naturais e previsíveis. Porém, por mais voltas que dê ao miolo, não consigo entender este fim estranho da minha aldeia, deste meu mundo encantado onde fui tão, mas tão feliz.
Porque quando nasci, a aldeia já cá estava. Pequenina, modesta, mas viva e dinâmica. E, ao mesmo tempo que eu, também ela foi crescendo, evoluindo e modernizando-se. Era um pequeno mundo onde um bom punhado de gente vivia em paz e minimamente feliz. Uma comunidade heterogénea composta por funcionários do estado, agentes da autoridade, ferroviários, despachantes e muitos trabalhadores do campo. Apesar da especificidade de cada função, conviviam todos em pacífica harmonia. Aqui havia de tudo um pouco. Artes e ofícios, comércio e coletividades. De tal modo assim era que "nuestros hermanos" vinham diariamente nos comboios de ida e volta entre Valência de Alcântara e a Beirã ou vice-versa, para fazerem as suas compras e dinamizarem ainda mais quer o comércio local, quer também o intercâmbio cultural entre os dois povos irmãos.
Muitas famílias se formaram por estas bandas com nubentes dos dois lados da fronteira. A minha sogra era de S. Pedro de Alcântara, o meu sogro dos Barretos. A família do meu avô materno é, na sua maior parte, toda espanhola até aos dias de hoje. Uma das minhas cunhadas e irmã da minha mulher cresceu, casou e vive em Espanha onde já se naturalizou. E como nós, dezenas de famílias. Quase todos os Beiranenses falam e entendem o castelhano, assim como em Valência e nos "pueblos" das redondezas falam e entendem o português. Foi sempre um mundo muito nosso e pacífico apesar de todos os condicionalismos de cada época. Curiosamente até os contrabandistas e os guardas fiscais conviviam paredes meias, cada um tentando ludibriar o outro, porque um não existiria sem o outro.
Entretanto, no sossego que tomou conta dos meus dias, venho de quando em vez sentar-me aqui ao cimo da minha aldeia para encher a alma da paisagem que me é tão querida e da qual nunca me canso, com a percetível convicção de estar cada dia mais próximo aquele em que deixarei de poder vê-la. E fico assim, horas a fio a pensar, a recordar, a deixar-me invadir pela nostalgia que com ela traz de volta muito do que vivi neste sagrado chão, este mesmo chão que o "progresso" da integração europeia foi desertificando. Para sempre, não me resta qualquer dúvida, apesar da lufada de "pessoas de fora" que vêm para cá agora passar as suas férias ou fins de semana nas nóveis casas de acolhimento para turistas.
Até que um dia as pessoas se fartem, ou isso deixe de estar na moda.

José Coelho
Texto e foto

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Mai nada!


 "As palavras que saem da minha boca e a intenção com que as digo, são da minha inteira responsabilidade. A forma como as outras pessoas as ouvem ou as interpretam, é da inteira responsabilidade delas."

RO
- 28.08.2021

domingo, 28 de agosto de 2022

Gostei




Amizades tóxicas


Quanto mais velhos vamos sendo, menos aguentamos, menos toleramos, menos aturamos. Conviver com os diversos tipos de pessoas nem sempre é tarefa fácil porque quando muitas delas chegam à nossa vida já trazem uma bagagem enorme de manias, de preconceitos e atitudes ruins que ninguém é obrigado a aceitar, se bem que toda a gente seja boa pessoa até a conhecermos melhor.

A amizade não funciona como o casamento ou o namoro onde cada pessoa pede permissão a outra para entrar na sua vida. Convive-se com essa pessoa até que um dia percebemos que ela é para nós o pontinho doce no meio do amargo da vida e nem percebemos quando ou como isso aconteceu. A amizade acontece simplesmente e é a única relação não sanguínea que resiste ao tempo ou à distância, sem esforço nem sacrifício. Um amigo é amigo porque quer, não porque assim nasceu ou porque se sinta obrigado a sê-lo.

Por isso anote bem estas palavras: não perca o seu tempo com amizades que intoxicam. Não gaste a sua saúde mental com pessoas levianas. Não encha a sua cabeça já cheia, com o que deve servir justamente para o ajudar a esvaziá-la. Não permita nunca que uma amizade se transforme num fardo na sua vida. 

Amizade que maltrata, não é amizade. Amigo diz o que tem a dizer, mas sem nunca perder a educação, o respeito e a delicadeza. Amigo não possui maldade ou má-fé. Se as possui, então não é, nem nunca foi seu amigo.

A amizade não rebaixa nem fere o outro. Se um amigo é capaz de ser rude e cruel consigo, é porque, desde o início, já vinha com prazo de validade. Não mantenha nada fora de prazo na sua vida. Depois de um tempo, começa a cheirar mal. E quanto mais você se prender a ela, mais imunda e fétida essa relação se tornará. Periodicamente deite fora esse lixo para não se tornar num acumulador de rancores gratuitos alheios.

Um amigo que é agressivo connosco não serve para as nossas conversas, para as nossas saídas, para as nossas tristezas, para as nossas alegrias. Não serve para a nossa vida. Por mais que já tenham vivido momentos incríveis juntos, aquela pessoa não pensou nesses bons momentos antes de nos ferir. A balança da vida que pesa para nós na hora de desfazer essa amizade, não pesou para aquela pessoa antes de conscientemente nos destratar. A amizade é unilateral, não pode acontecer só com um.

Não existe segunda oportunidade para a amizade. Se uma pessoa não soube ser amiga na primeira oportunidade, não será na segunda, na terceira ou na vigésima nona. Não existem motivos aceitáveis ou desculpáveis para uma amizade azedar. O único motivo é falta de capacidade de uma pessoa para o sentimento da amizade. Livre-se dela. Livre-se, e ganhe mais de si mesmo. Ganhe mais dos outros e de quem está de fora à espera de uma oportunidade para entrar na sua vida.

Uma pessoa disposta a estimar-nos não vai odiar-nos. Nem um pouquinho. Nem por um instantinho.

Marina Barbieri
 

sábado, 27 de agosto de 2022

"Visitas de médico"


O sorriso é a manifestação dos lábios, quando os olhos encontram o que o coração procura. Não há nada que me alegre mais do uma visitinha das minhas netas. Há dias foi a Mariana, de surpresa, quase à meia-noite. Hoje foi a Francisca que até trouxe um amiguito dos seus e almoçaram connosco! Estas "visitas de médico" sabem a pouco e deixam-me assim com este "smile" d'orelha a orelha! Obrigado, meus amores e voltem sempre (que vos deixarem).

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Segredos do sol poente



Aproxima-se, a passos largos, aquela que é a minha estação do ano preferida. O outono. Se calhar pela melancolia que lhe está normalmente associada, e porque eu sou também, por natureza, um pouco melancólico. Faltam ainda duas ou três semanas para o termos por cá, mas os dias já estão a encurtar a passos largos, as folhas nos ramos dos choupos do ribeiro, dos ulmeiros, dos plátanos, das figueiras e das muitas outras árvores de folha caduca que se avistam do alto do meu quintal até onde o céu e a terra se tocam na linha do horizonte, começam já também aqui e ali a tingirem-se dos vários tons dourados que anunciam o final do seu ciclo de vida. Até as inúmeras parras da nossa latada se lembraram de começar a cair ainda antes de as uvas serem vindimadas, por certo de tão queimadas que ficaram pelo calor de mais um inclemente verão.

Esta tarde, como faço quase todos os dias depois de regar as plantas, sentei-me na varanda do quintal a desfrutar o momento em que o sol se despedia dos cumes graníticos orlados de copas de sobro, carvalho e azinho, além para os lados da Herdade dos Pombais, os mesmos que amanhã serão os primeiros a darem-lhe as boas-vindas logo que ele se eleve para iluminar o novo dia. A traseira e a frontaria da nossa casa foram, pelo seu fundador e arquiteto, o meu saudoso pai, orientadas para nascente e para poente, de modo que uma é banhada pelo astro-rei assim que ele nasce, e a outra despede-se dele ao fim do dia quando o mesmo desaparece no azimute delimitado entre a serra da Senhora da Penha e a várzea do Vale do Cano. Não foi por acaso. Nada era por acaso nos planos daqueles queridos mestres. As empenas ficaram assim viradas aos outros dois pontos cardeais, para suportarem, uma a gélida e invernosa nortada, e a outra, as copiosas chuvadas de sul.

É o por do sol - já o disse inúmeras vezes - o meu momento de eleição de cada dia. Fico enlevado no encanto destas paisagens que me viram nascer e que considero tão únicas quanto irrepetíveis. Estranhamente, a natureza parece parar por completo nos instantes que antecedem o ocaso. E isso acontece mesmo todos os dias. São só uns breves instantes, mas é deveras surpreendente. Hoje a minha companheira sentada ao meu lado na varanda e admirada com tal silêncio, comentou:

- Que sossego Zé! Nem os pássaros se ouvem!

- É verdade! Respondi. E continuei:

- Até o cãozarrão ali em baixo que parece estar sempre zangado com o mundo inteiro porque ladra todo o dia e toda a noite, se calou! 

- Que estranho, não?  Perguntou, antes de se remeter também ao silêncio.

A luz do sol tomara, entretanto, um brilho amarelo-pálido. Os canchos e o montado lá ao longe pareciam iluminados por uma luz artificial semelhante à dos holofotes que iluminam à noite as muralhas de Marvão. E lentamente foi-se extinguindo, até desaparecer por completo. No momento seguinte a barra cinzento-escura da noite começou a aproximar-se e a envolver os mesmos calhaus e montado que minutos antes tinham estado iluminados. Sinceramente, acredito que este deve ser o momento em que Deus desce à terra cada dia e que por isso toda a natureza e criação ficam no mais respeitoso silêncio.

Nesses momentos de tão completa harmonia invade-me uma paz de espírito difícil de explicar. É uma tranquilidade íntima tão doce que instintivamente fecho os olhos e dou graças por ter nascido, por ainda estar vivo e pela minha vida inteira. Pelos pais e avós maravilhosos que tive, pelas irmãs, filhos, netas, esposa, família em geral e amigos que ainda tenho, a reforma que suporta o pão nosso de cada dia, a casa que me acolhe, a saúde, ainda que mais frágil do que quando era novo, enfim, o infinito rol de dádivas com que fui e continuo a ser agraciado pelo Criador, cada dia do meu já longo viver. É instintivamente natural sentir-me grato nesses momentos especiais em que tudo à minha volta permanece na mais absoluta quietude.

Nunca repararam nisso? Então experimentem. Subam a um monte, ou escolham outro local qualquer, sossegado. Quase me atrevo a apostar que irão surpreender-se com a quietude e o silêncio que de súbito parece rodear tudo em redor. São só uns breves instantes. Apenas o tempo que o sol demora entre tocar a linha do horizonte e desaparecer por completo atrás dela. É tão sublime que quase nem nos atrevemos a respirar para que o "barulho" da nossa respiração não perturbe a paz que nos envolve. 

A Vida, a Natureza e o Mundo, são maravilhosos. Às vezes nós é que não olhamos, ou olhamos, mas não vemos. Eu acredito que são obras do Criador. Mas respeito quem não acredita. Cada um sabe de si.

Tenham um excelente final de verão.

José Coelho
Texto e Foto

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Amar e/ou querer

Lírio silvestre "estrela de belém" - Foto José Coelho
 

- Amo-te, disse o Pequeno Príncipe.

- Eu também te quero, disse a rosa.

- Não é a mesma coisa, respondeu o Pequeno Príncipe.

Querer é tomar posse de algo, de alguém. É olhar nos outros aquilo que pode suprir as nossas necessidades pessoais de carinho, de companheirismo.

Querer é desejar o que não é nosso, é possuir ou desejar algo que nos preencha porque naquele momento nos falta algo.

Amor é desejar o melhor para o outro, mesmo que ele tenha aspirações diferentes das nossas.

Amor é permitir que a outra pessoa seja feliz, mesmo que o caminho dela seja diferente do nosso. É um sentimento altruísta que vem de um dom de si mesmo, é dar-se inteiramente do seu coração.

Quando amamos, damos sem pedir nada em troca, pelo simples e puro prazer de dar. Mas também é certo que este dom, este dom de si mesmo, completamente altruísta, só é dado quando alguém sabe. Só podemos amar o que sabemos, porque amar é jogar no vazio, confiar na vida e na alma. A alma não é comprada nem vendida. E saber é saber tudo sobre você, as suas alegrias, a sua paz, mas também sobre as suas decepções, as suas lutas, os seus erros. Porque o amor transcende argumentos, lutas e erros, o amor não é apenas para os momentos de alegria.

O amor é a confiança absoluta de que, aconteça o que acontecer, estarás sempre lá. Não porque deves algo, não por possessão egoísta, mas por estares lá, em companhia silenciosa.

Amar é saber que o tempo não vai mudar nada, nem as suas tempestades, nem os seus invernos.

Amar é dar a alguém um lugar no coração para ficar como pai, como mãe, como filho, ou como amigo, e saber que no coração dele também existe um lugar para mim.

Dar amor não esgota o amor, mas aumenta-o.

A forma de dar amor é abrir o coração e deixar-se amar.

- Eu entendi, disse a rosa.

- Não procure entender o amor, viva-o!  Disse o Pequeno Príncipe.

 

Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 21 de agosto de 2022

Queridas lembranças


Um velho pessegueiro já semi-bravio pela idade, plantado há décadas à beira de um caminho nos arredores da minha Beirã e ao qual eu, menino ainda, surripiava muitas vezes alguns pêssegos às escondidas do dono.
Continua lá assim, indiferente ao abandono e ao passar dos anos, a dar frutos abundantemente.
Colhi dois ou três para me certificar se seriam ainda saborosos como eram dantes.
Não, não eram. São agora meio azedos e nada suculentos. A sua pele àspera e a acidez do sumo deixam a boca encortiçada.
Ainda assim, os olhos marejaram-se-me involuntariamente de lágrimas não pelo amargor dos inocentes frutos porque já são meio bravos, mas porque a saudade que me avassalou naquele momento foi tão intensa que doeu...
Texto e foto

Porque a vida continua


Seis anos depois, voltámos a reunir-nos. Só já os três porque a primogénita partiu inesperada e recentemente. Mas a vida tem de continuar e aqui estivemos reunidos no dia19 de Agosto a celebrar o 18º aniversário do Gustavo, neto mais velho da mana Luz, depois no dia 20 no 3º aniversário do Lorenzo, primeiro neto da mana Joaquina e no dia 25 vai ser o aniversário do sobrinho Luís, filho mais novo da mana Luz, antes de eles regressarem a Inglaterra para mais uma temporada sem nos podermos reunir. Mas o amor fraterno é inesgotável, passe o tempo que passar, estejamos juntos ou distantes. Até mesmo os que partiram para a eternidade permanecem na nossa memória e são sempre falados nestas celebrações em Família porque estão sempre nos nossos corações.

Foto Maria Coelho
19.08.2022

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Bom fim de semana, pessoal

Imagem da net

Não se morre assim de qualquer maneira


 

A semana passada deixei de comer chouriços. E presunto. E fiambre. E mortadela! Esta semana deixei de comer queijo. “Afeta a mesma molécula das drogas duras” dizia um estudo. Eu não quero ter nada a ver com isso, gosto muito de queijo, mas não quero ter nada a ver com drogas, muito menos ser visto como um agarrado ao queijo. Acabou-se com o queijo cá em casa. Também já tinha acabado com o pão, por isso...

O mês passado deixei de beber vinho branco. Um estudo dizia que fazia mal a não sei quê. Se calhar era cancro também. Passei a beber só tinto que, dizia um estudo, ser ideal para uma série de coisas. Esta semana voltei a beber branco porque, entretanto, saiu um estudo a dizer que afinal o branco até tem propriedades que fazem bem e muito tinto é que não. Comecei a reduzir no tinto, mas, também acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Cortei nas azeitonas também porque um estudo dizia que têm demasiada gordura, são muito insaturadas, ou lá o que é, mas não parece nada bom.

Andava praticamente a peixe até perceber que os portugueses comem peixe a mais e são, por isso, prejudiciais ao ambiente. Eu sei que não moro no continente, mas como sou português, e ainda contam todos para o estudo, sei lá, os que estão e os que não estão, e como eu não quero ser acusado de inimigo do ambiente, ando a cortar no peixe também. Especialmente no atum que está cheio de chumbo e o bacalhau também por causa daquele estudo que saiu sobre a quantidade de sal mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Esta semana saiu um estudo a dizer que afinal o vinho em geral faz mal. Fiquei devastado. Há dois meses foram as couves roxas. Vi até um especialista na televisão dizer que não devíamos comer nada cuja cor seja roxa; “é sinal que não é para comer”, dizia. Arroz também quase não como porque engorda, quanto mais esfregado pior, e saiu um estudo a dizer que implica com uma função qualquer mais ou menos delicada. Não é a reprodutora porque acho que essa é com a soja. Dá hormonas femininas aos homens, e consequentes mamas, o raio da soja (!) e prejudica as funções todas. Não, soja nem pensar!

Leite também já há muito que me livrei dele. Foi, salvo erro, desde que saiu um estudo a dizer que o nosso corpo não está preparado para leites. Por isso, leite não. Sumos de frutas também dispenso enquanto não resolverem o problema levantado no estudo que apontava para... não sei muito bem para quê, mas apontava e não era nada excitante mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Carne vermelha, claro, também não. Ataca o coração, diz o estudo. Galinha nem sonhar porque umas estão cheias de gripe e as outras encharcadas de antibióticos. Além de que carne de galinha a mais, como dizia outro estudo, impacta com o desenvolvimento dental, o que até parecia óbvio, mas ninguém percebia, pois as galinhas não desenvolvem dentes. Cortei a galinha há muito tempo. Porco? Só a brincar. É óbvio que não há cá porco. Não chegassem as salsichas e afins ainda veio este outro estudo, ou ainda não leu? Pois então, diz que o excesso de carne de porco pode provocar uma diminuição de massa cinzenta e o aumento dos ciclos atópicos do mastoideu singular. Ninguém quer passar por isso! Você quer? Eu não, mas, também, acho que compreende, não quero morrer assim de qualquer maneira. Esqueça-se a carne de porco, pelo amor da santa!

Ah!... Já me esquecia do glúten! Glúten, também não. É que nem pensar! Durante muitos anos nem sabia que existia, mas desde que me apercebi da existência de semelhante coisa arredei tudo o que tivesse glúten. Deixa-me pouca escolha mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Ovos! Claro que também não como ovos. Primeiro porque não sou nenhum ovíparo e depois por causa das quantidades de coisas que aquele estudo que saiu a semana passada dizia. É um rol senhores, um rol de colesterol! Vão ver e admirem-se! Os ovos! Quem diria os ovos... Enfim, é a vida: ovos nem vê-los! Como a manteiga: é só gordura! Desde que acabei com o pão e com o queijo, a manteiga também, por assim dizer, deixou de fazer falta. Ainda a usava para fritar ovos mas agora também não se pode comer ovos... Pois, a manteiga, dizia o estudo, é só gordura animal e animais não devem comer a gordura uns dos outros. Pareceu-me um bom fundamento e acabei com a manteiga.

Ia fazer uma salada. Sem muito azeite, claro, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira, sem sal, naturalmente e vinagre só do orgânico, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira...

É quando recebo um email com o título “Novo Estudo Aconselha a Ingestão Moderada de Saladas e Hortaliças”.

Enchi um copo de água, filtrada, naturalmente, de garrafa de vidro e sorvi um golo ávido. Espero que não me faça mal.

 

Autor desconhecido que deduzo seja um Ilhéu a quem dou os parabéns e saúdo, pela magnífica ironia que soube dar a este texto!

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

terça-feira, 16 de agosto de 2022

A gastronomia (também) é cultura

Foto José Coelho - 16.08.2019

Chama-se butelo, é um produto da Galiza, mas também de Trás-os-Montes. Talvez porque as duas províncias fazem fronteira uma com a outra. Foi o meu almoço em Oimbra - Ourense faz hoje precisamente três anos, primeira e última vez que o comi. 

É, sem dúvida, uma delícia. 

Trata-se de bucho de porco enchido com pedaços de carne agarrada ao osso - entrecosto e outras - que depois do tempero no alguidar vai ao fumeiro a curar juntamente com os outros enchidos da matança. 

Na Galiza é acompanhado com batatas, cozidas no caldo onde cozeu o butelo. Em Trás-os-Montes é acompanhado com casulas, ou seja, feijão seco com a casca, um legume que os meus pais também sempre secavam no verão para comermos no inverno, após demolhado de um dia para o outro para amaciar e fazer uma sopa divinal. 

Na minha terra chamamos-lhe "bajas secas", em Trás-os-Montes "casulas". Quer numa, quer na outra região, são já um produto difícil de encontrar porque não vai havendo hortas nem gente que saiba as voltas que o feijão com casca tem de levar, para ficar em condições de se armazenar por vários meses sem se deteriorar.

Coisas boas e saberes que tendem a desaparecer na voragem do tempo. E é pena, porque a gastronomia de cada região também é, toda ela, parte integrante da sua cultura, do seu povo. 

Seja em que país for.

José Coelho
16.08.2022

Porque sim


O bouquet de flores naturais da "noiva", na celebração das Bodas de Rubi - 45 anos - há um ano atrás, continua a ornamentar um dos móveis da sala de jantar da Toca dos Coelhos, um ano depois!
Foto José Coelho
14.08.2022

O Rex e a mãe-javali




Era lindo o Rex. Em casa dos meus pais, como já por aqui afirmei, sempre houve bicharada. Cães, cabras, gatos, galinhas, patos e até pintassilgos numa gaiola, coisa que eu sinceramente não achava graça nenhuma porquanto entendo que os pássaros, tal como nós, foram criados para viverem felizes em liberdade.

Muitas vezes algumas pessoas chegadas apercebendo-se da apetência da passarada para fazerem os seus ninhos nas árvores e latadas do meu quintal – na primavera passada, por exemplo, tínhamos um ninho de pintassilgo na roseira-que-trepa, outro no abrunheiro, mais um de verdelhão na latada ao lado da casa e finalmente outro de carriça na trepadeira da varanda – pediam-me para lhes “apanhar” um pintassilgo ou um verdelhão, o que sempre recusei, costumando perguntar-lhes meio a rir e meio a sério:  - Também gostavas que te metessem numa gaiola?

Mas hoje quero contar-vos uma divertida história do nosso Rex. Era um cãozarrão enorme, todo negro com um pelo brilhante como verniz, nascido do cruzamento do cão labrador pisteiro do destacamento da GNR de Almada, com a cadela pastor alemão do então comandante daquela sub-unidade, o capitão Ochôa, posteriormente colocado em Nisa onde eu prestava também serviço.

A Lai, assim se chamava a cadela mãe do Rex, vinha prenha e deu à luz, algum tempo depois, uma bela ninhada de cachorros. Saíram todos da raça da mãe pastor alemão, à exceção do Rex que nasceu assim negro como uma amora madura, da raça do pai. Enquanto os outros cachorros espetavam as orelhas, o Rex tinha-as caídas. Por isso ninguém o quis, apesar de, para mim, ser de todos o mais bonito.

Como a mais ninguém interessou fiquei eu com ele para o oferecer ao meu filho Pedro que tinha na altura 9 anos – e porque o Manel já tinha a gata siamesa Princesa que lhe tinham oferecido no seu aniversário – o qual não só ficou encantado com o seu novo amigo, como lhe dedicou uma amizade sem paralelo, digna de se ver. De tal modo que, ainda hoje, mais de duas décadas depois de já não estar connosco, o Rex é recordado com frequência como um velho e querido amigo que deixou muitas saudades.

Mimado e bem tratado como o são sempre todos os animais na nossa casa, o pequeno cachorro fez-se um gigante. Enorme, dócil e lindo. E valente. Nada lhe metia medo. Corria para o mato todo arrufado assim que sentia qualquer mexida, fosse um saca-rabos, uma raposa, ou mesmo uma corpulenta vaca ou um burro. Ali não havia hesitações! Às vezes arreliava-me bastante com ele porque desatava a correr desatinado atrás de qualquer bicharoco e tanto fazia chamar por ele, como ficar calado. Muitas vezes o perdi de vista e tive que depois andar de cancho em cancho já zangado à sua procura, até que lá me aparecia o gajo com um palmo de língua de fora, esbaforido pela correria!

Até que um dia…

Tínhamos vindo morar definitivamente para a nossa Toca dos Coelhos na Beirã. Todas as tardes, assim que eu chegava de Portalegre saíamos os dois a dar grandes passeios por aí, subindo e descendo canchos a desbravar matagais até às barreiras do rio Sever, coisa que o cão não só adorava como também necessitava para desentorpecer, para dar umas valentes corridas e fazer o exercício indispensável ao seu bem-estar físico.

E foi numa dessas tardes que eu me ri até às lágrimas com o que aconteceu. Caminhávamos os dois pela “carreteira” de terra batida da Tapada dos Carvalhos de Roque quando o Rex pressentiu algo a mexer entre as giestas.

Nem pensou duas vezes.

Atirou-se de cabeça para meio do mato num furioso ladrar, capaz de comer o que quer que fosse que tivesse provocado aquela agitação, para o afugentar e perseguir como tanto o regalava! Porém, se muito depressa o perdi de vista, mais depressa o vi voltar pelo mesmo caminho aflito e a ganir apavorado à frente de uma furibunda mãe-javali que, aos sopros e grunhidos o perseguia sem medo. Atrás dela vinha uma dúzia de bacorinhos-javalis recentemente paridos, motivo pelo qual, com toda a certeza, a zelosa marrã-mamã não achara piada nenhuma à evidente ameaça que aquele cãozarrão representava para os seus meninos. Sem hesitar um segundo, contra-atacou.

E o Rex, ó abre...

Fujam da frente que atrás vem gente!

Patas para que vos quero!

Nunca tinha visto nada assim.

A mãe-javali quando encarou comigo, tacitamente recuou. Deu meia-volta com os bácoros atrás e desapareceu de novo no mato. Mas o Rex, de rabo entre as pernas, o tal matulão valentão, atiradiço e destemido, naquela tarde não mais se atreveu a descolar o focinho dos meus calcanhares, enquanto durou o resto do passeio. 

E eu continuei a rir a bom rir durante o resto da tarde, rio-me ainda algumas vezes, muitos anos depois, cada vez que passo por aquele sítio e me lembro da hilariante cena.

Bons tempos. E Boas recordações.

José Coelho in Histórias do Cota

Foto: O Rex e o Pedro em 1992

Nota Explicativa:

* Em nossa casa os animais nunca viveram presos à corrente porque eu não gosto e porque temos um quintal enorme onde eles sempre puderam circular à sua vontade dia e noite. Nesta foto o Rex estava preso, porque decorriam as obras de remodelação da cozinha-fumeiro e acessos no quintal, tendo o portão que dá para a rua de manter-se aberto para os trabalhadores entrarem e saírem com os materiais de construção, das oito da manhã às cinco da tarde.

domingo, 14 de agosto de 2022

Bodas de Alabastro


 
Cumprimos hoje 46 anos de matrimónio. Somados a mais 5 de namoro, já ultrapassamos os 50 juntos. Não foi um percurso nada fácil, mas valeu a pena. Este ano não houve festa porque a inesperada perda da minha irmã mais velha merece este meu respeitoso luto e sobriedade. Foi nesses princípios que fui educado e é a cumpri-los que me sinto bem. Ainda assim, com as nossas duas netinhas por companhia, foi um dia minimamente feliz e tranquilo. A quem, Família e Amizades, nos fez chegar as suas felicitações e carinho, um enorme bem hajam.

Selfie Maria Coelho
Parque João José da Luz - Castelo de Vide 

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Alentejo - Comeres e saberes


Gaspacho 

Açorda

Batatas de salada

O gaspacho e a açorda são irmãos, mas um é confecionado com água fresca e a outra com água a ferver. O gaspacho leva pão cortado em cubos, alho e poejo pisados com sal, vinagre e legumes frescos da horta - tomate, pimento verde, cebola e pepino, além do azeite. Normalmente acompanha-se com azeitonas de salmoura curtidas no pote de barro. Já a sua irmã açorda tem por temperos o azeite, um ramo de poejos ou de coentros pisados com alho e sal, pão cortado em cubos e água a ferver onde se escalfa sempre um ovo por cada comensal para a tornar mais nutritiva.

As "batatas de salada" são apenas primas-irmãs das outras duas iguarias porque em vez de pão cortado em cubos são feitas com batatas cozidas inteiras com a pele em água e sal que depois de cozidas serão peladas e cortadas às rodelas, adicionando-se-lhes tomate, pimento e cebola em pedacinhos, mais umas folhas de alface finamente migadas. Em parceria com o gaspacho é comida de verão e têm em comum a adição de vinagre para além do azeite e a água fresca que dantes se ia buscar às fontes, noras ou poços existentes um pouco por toda a parte, mas que hoje vamos comodamente buscar ao frigorífico. Há até quem goste de juntar alguns cubos de gelo. Eu não gosto de o fazer porque a água gelada em demasia faz coalhar o azeite e fica desagradável.

Foram estas três humildes comidas inventadas pelos camponeses do Alentejo que pouco mais tinham por onde escolher, mas tinham de sobreviver. Com o possível. Pão, água, ervas aromáticas, um toque de azeite e vinagre. Estou ainda convicto que a principal finalidade do gaspacho e das batatas de salada para além de saciarem a fome, seria também a de refrescarem os corpos suados, ajudando na sua agradável frescura a combater a canícula que se fazia sentir no meio das searas onde se ceifava o pão, pelas tapadas onde o mato era limpo à força de braços com enxadões na preparação das terras para as sementeiras do outono seguinte, ou pelos prados onde se gadanhava feno para encher os palheiros com as forragens dos gados para o inverno. Não havia máquinas para coisa nenhuma e as mil e uma tarefas agrícolas eram feitas por ganhões ou jornaleiros a par das mulheres sachadeiras, ceifeiras e mondadeiras, por conta dos senhores das terras. 

Em Espanha, aqui mesmo ao lado, todos os ingredientes do gaspacho são depois triturados e fica apenas uma caldeta meio espessa que pode até beber-se a copo. Mas no Alentejo fica tudo inteiro e sólido para abastecer o estômago porque para os alentejanos é um almoço e não um refresco gourmet. Por seu lado a açorda é uma comida muito mais aconchegante para os frios do inverno, pese embora seja atualmente servida também no verão nas festas e romarias porque parece ter virado moda aquilo que foi criado pela mais absoluta necessidade de sobrevivência dos nossos antepassados. 

Cá em casa esses "comeres" são sempre confecionados e servidos com a devoção e o respeito que lhes é devido. Talvez com mais devoção e respeito do que um arroz de marisco ou um belo bife do lombo. Porque eu não esqueci, não esqueço nem vou nunca querer esquecer a minha humilde origem. Pelo contrário. Ela é... O meu mais valioso e respeitado património.

José Coelho
(Texto e fotos)

É tão fácil ser feliz

Selfie Francisca Coelho - Férias 2022

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Não há volta a dar...

Em 2002, quando me sentia quase invencível

Sou, sempre fui, profundamente arreigado aos afetos. Afeiçoado à família, aos amigos, vizinhos e conterrâneos, sejam eles de freguesia, de concelho, de distrito, de província ou de nação. Afeiçoado à minha aldeia como se ela fosse o único lugar no mundo, afeiçoado também aos animais, às aves, ao vento, à chuva e ao sol, à infinita natureza e a todo o seu misterioso esplendor. Afeiçoado ao mundo que me rodeia com muito raras exceções. O berço humilde em que nasci e a família honrada à qual tive a sorte de pertencer moldaram-me assim, razão pela qual dou graças quase todas as noites antes de adormecer.

Sim, escrevi quase todas as noites e não todas as noites. Porque há algumas em que não me sinto motivado a agradecer por razão de qualquer coisa que me terá deixado amuado. Por exemplo se estou triste ou desiludido, cansado ou doente, irritado ou indignado. E quando isso acontece costumo amuar como uma criança – que acho nunca deixarei de ser – porque sim, e porque, ao não entender os porquês de algumas coisas, não sou obrigado a concordar com elas. Tenham as mesmas sucedido por suposto desígnio do Criador ou por outro qualquer.

Desde que me conheço tenho seguido e procurado cumprir os preceitos e comportamentos que me foram ensinados. Incansavelmente. Por isso me sinto também no direito de não aceitar ou contestar aquilo que não consigo perceber. Há muito que me esforço por compreender as respostas e sinais de tudo o que me rodeia. E também a ausência deles. Poderia descrever um cento dessas manifestações na primeira pessoa, mas seguramente muitos de vós não as iríeis entender como eu as entendi e provavelmente iríeis entender outra coisa qualquer ditada pelo vosso raciocínio. O que para mim, à luz das minhas crenças, pode ter sido um sinal, para vocês pode ser visto apenas como mera coincidência ou casualidade. 

E há que respeitar todas as opiniões.

Sei, tenho plena consciência, de ser a mais imperfeita das criaturas. Mas sei também com toda a certeza que dentro das minhas humanas limitações e inúmeras imperfeições sempre tentei – e acho que conseguido – pautar cada dia da minha vida pelo caminho do bem, da honestidade, da lisura de carácter, do não fazer a ninguém aquilo que não quero que me façam a mim, conforme a formação que me foi ensinada desde tenra idade.

Daí que me desiluda e fique revoltado algumas vezes quando vejo ou sou alvo de injustiças de toda a ordem, faltas de honestidade ou de carácter, de sujos e inexplicáveis esquemas que têm como objetivo único prejudicar, denegrir, enxovalhar ou tirar proveitos indevidos. E é nessas ocasiões que não percebo e questiono zangado:   

- Porquê? 

- Se eu não o faço essas porcarias a ninguém, porque m'as fazem a mim? 

É verdade que frequentemente todos somos postos à prova e temos que ter a capacidade de aceitar seja o que for, mesmo aquilo que nos fere e magoa. Porém, uma coisa é termos que irremediavelmente aceitar aquilo que vem, outra coisa muito diferente é sermos capazes de o entender.

E as perguntas surgem do nosso íntimo aos milhões:

- Porque há tantas coisas ruins neste mundo que se diz que Deus criou? Doenças incuráveis, guerras, atentados, refugiados, fome, sofrimento humano indescritível onde os mais atingidos são sempre os mais frágeis tais como, entre muitos outros, as mulheres, os velhos e as inocentes crianças?

- Porque há milhões de ricos a nadarem na abundância em contraste com outros tantos milhões de infelizes que nada têm, nem sequer o que comer?

- Porque existe tanta corrupção, cobardia, oportunismo, deslealdade e ganância humana?

 - Porque... 

- Porque... 

- Porque... (ad infinitum)

Sofro com o declínio irreversível da minha terra porque nunca imaginei vê-la morrer primeiro que eu, sofro com este ensurdecedor e sepulcral silêncio que se foi instalando por quase todas as ruas, por cada casa vazia, mercê das políticas seguidas – e de progresso – de todos os governos das últimas décadas. Não posso fazer pela Beirã muito mais do que já fiz desde o dia em que, para começar, decidi comprar a casa dos meus pais para a ela regressar e definitivamente viver. 

E não só. 

Mas isso também são outros quinhentos. 

Infelizmente as pessoas têm a memória curta. 

Percebo hoje que tomei a decisão mais errada de toda a minha vida. Muitos Beiranenses, tal como eu, tiveram de procurar outros destinos em busca do sustento para si e para os seus. Mas naturalmente por lá foram também ficando e não mais voltaram. Cá deixaram os seus mais idosos e à medida que eles se foram finando as suas casas foram ficando desabitadas. Nem sequer a interesseira "moda" de agora se transformarem algumas delas em Alojamentos Locais, por outras palavras "mini-hotéis" turísticos que a Covid 19 impulsionou, irá trazer o desenvolvimento que definitivamente se perdeu. Tal como todas as outras modas, também esta vai ter prazo curto. 

É só uma questão de tempo. 

As pragas ruins são normalmente irreversíveis. E não há cura científica para esta variante de cancro que se chama "desertificação" e se propaga por toda a Freguesia da Beirã, prossegue por todo o Concelho de Marvão, continua por todo o Distrito de Portalegre, segue depois pelo Alto e Baixo Alentejo e contamina todo o interior de Portugal de Bragança a Vila Real de Santo António perante a mortífera indiferença dos sucessivos governos que só se preocupam com o bem-estar de quem habita as grandes metrópoles eleitorais.

Porque é lá que se ganham votos.

Cancro. Disse bem. E maligno. Incurável como aquele que levou o querido Amigo e Pároco Luís Ribeiro, uma perda tão inesperada para mim e para todos os seus paroquianos que passados alguns anos ainda não a consegui digerir nem aceitar. Com ele se foi também a Paróquia de Nossa Senhora do Carmo que desde então tem vindo a extinguir-se lentamente. Por isso e por muito mais, tudo aquilo que planeei noutro tempo para a minha reforma e velhice, a qual imaginava muito tranquila e feliz nesta aldeia linda, ficou sem efeito. Vivo hoje um dia de cada vez sem acreditar já em nada, sem esperar também muito mais do que aquilo que me rodeia e entristece. Até mesmo a vigorosa fé que sempre foi a minha principal fonte de força, já perdi. 

E aos poucos vou desistindo, deixando cair os braços. 

Não há volta a dar.


José Coelho

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Não é Alentejano quem quer

A minha açorda d'alho alentejana - Foto José Coelho

Palavra mágica que começa no Além e termina no Tejo, o rio da portugalidade. O rio que divide e une Portugal e que à semelhança do Homem Português, fugiu de Espanha à procura do mar.

   

O Alentejo molda o carácter de um homem. A solidão e a quietude da planície dão-lhe a espiritualidade, a tranquilidade e a paciência do monge; as amplitudes térmicas e a agressividade da charneca dão-lhe a resistência física, a rusticidade, a coragem e o temperamento do guerreiro. Não é alentejano quem quer. Ser alentejano não é um dote, é um dom. Não se nasce alentejano, é-se alentejano.

    Portugal nasceu no Norte mas foi no Alentejo que se fez Homem. Guimarães é o berço da Nacionalidade, Évora é o berço do Império Português. Não foi por acaso que D. João II se teve de refugiar em Évora para descobrir a Índia. No meio das montanhas e das serras um homem tem as vistas curtas; só no coração do Alentejo, um homem consegue ver ao longe.

    Mas foi preciso Bartolomeu Dias regressar ao reino depois de dobrar o Cabo das Tormentas, sem conseguir chegar à Índia para D. João II perceber que só o costado de um alentejano conseguia suportar com o peso de um empreendimento daquele vulto. Aquilo que para o homem comum fica muito longe, para um alentejano fica já ali. Para um alentejano não há longe, nem distância porque só um alentejano percebe intuitivamente que a vida não é uma corrida de velocidade, mas uma corrida de resistência onde a tartaruga leva sempre a melhor sobre a lebre.

    Foi, por esta razão, que D. Manuel decidiu entregar a chefia da armada decisiva a Vasco da Gama. Mais de dois anos no mar... E, quando regressou, ao perguntar-lhe se a Índia era longe, Vasco da Gama respondeu: «Não, é já ali.». O fim do mundo, afinal, ficava ao virar da esquina.

    Para um alentejano, o caminho faz-se caminhando e só é longe o sítio onde não se chega sem parar de andar. E Vasco da Gama limitou-se a continuar a andar onde Bartolomeu Dias tinha parado. O problema de Portugal é precisamente este: muitos Bartolomeu Dias e poucos Vasco da Gama. Demasiada gente que não consegue terminar o que começa, que desiste quando a glória está perto e o mais difícil já foi feito. Ou seja, muitos portugueses e poucos alentejanos.

    D. Nuno Álvares Pereira, aliás, já tinha percebido isso. Caso contrário, não teria partido tão confiante para Aljubarrota. D. Nuno sabia bem que uma batalha não se decide pela quantidade mas pela qualidade dos combatentes. É certo que o Rei de Castela contava com um poderoso exército composto por espanhóis e portugueses, mas o Mestre de Avis tinha a vantagem de contar com meia-dúzia de alentejanos. Não se estranha, assim, a resposta de D. Nuno aos seus irmãos, quando o tentaram convencer a mudar de campo com o argumento da desproporção numérica: «Vocês são muitos? O que é que isso interessa se os alentejanos estão do nosso lado?»

    Mas os alentejanos não servem só as grandes causas, nem servem só para as grandes guerras. Não há como um alentejano para desfrutar plenamente dos mais simples prazeres da vida. Por isso, se diz que Deus fez a mulher para ser a companheira do homem. Mas, depois, teve de fazer os alentejanos para que as mulheres também tivessem algum prazer. Na cama e na mesa, um alentejano nunca tem pressa. Daí a resposta de Eva a Adão quando este, intrigado, lhe perguntou o que é que o alentejano tinha que ele não tinha: «Tem tempo e tu tens pressa.» Quem anda sempre a correr, não chega a lado nenhum. E muito menos ao coração de uma mulher. Andar a correr é um problema que os alentejanos, graças a Deus, não têm. Até porque os alentejanos e o Alentejo foram feitos ao sétimo dia, precisamente o dia que Deus tirou para descansar.

    E até nas anedotas, os alentejanos revelam a sua superioridade humana e intelectual. Os brancos contam anedotas dos pretos, os brasileiros dos portugueses, os franceses dos argelinos... só os alentejanos contam e inventam anedotas sobre si próprios. E divertem-se imenso ao mesmo tempo que servem de espelho a quem as ouve.

    Mas para que uma pessoa se ria de si própria não basta ser ridícula porque ridículos todos somos. É necessário ter sentido de humor. Só que isso é um extra só disponível nos seres humanos topo de gama.

    Não se confunda, no entanto, sentido de humor com alarvice. O sentido de humor é um dom da inteligência; a alarvice é o tique da gente bronca e mesquinha. Enquanto o alarve se diverte com as desgraças alheias, quem tem sentido de humor ri-se de si próprio. Não há maior honra do que ser objeto de uma boa gargalhada. O sentido de humor humaniza as pessoas, enquanto a alarvice diminui-as. Se Hitler e Estaline se rissem de si próprios, nunca teriam sido as bestas que foram.

    E as anedotas alentejanas são autênticas pérolas de humor: curtas, incisivas, inteligentes e desconcertantes, revelando um sentido de observação, um sentido crítico e um poder de síntese notáveis.

    Não resisto a contar a minha anedota preferida. Num dia em que chovia muito, o revisor do comboio entrou numa carruagem onde só havia um passageiro. Por sinal, um alentejano que estava todo molhado, em virtude de estar sentado num lugar junto a uma janela aberta. «Ó amigo, porque é que não fecha a janela?», perguntou-lhe o revisor.

    «Isso queria eu, mas a janela está estragada.», respondeu o alentejano. «Então porque é que não troca de lugar?» «Eu trocar, trocava... Mas com quem?»

    Como bom alentejano que me prezo de ser, deixei o melhor para o fim. O Alentejo, como todos sabemos, é o único sítio do mundo onde não é castigo uma pessoa ficar a pão e água. Água é aquilo por que qualquer alentejano anseia. E o pão... Mas há melhor iguaria do que o pão alentejano? O pão alentejano come-se com tudo e com nada. É aperitivo, refeição e sobremesa. E é o único pão do mundo que não tem pressa de ser comido. É tão bom no primeiro dia como no dia seguinte ou no fim da semana. Só quem come o pão alentejano está habilitado para entender o mistério da fé. Comê-lo faz-nos subir ao Céu!

    É por tudo isto que, sempre que passeio pela charneca numa noite quente de verão ou sinto no rosto o frio cortante das manhãs de Inverno, dou graças a Deus por ser alentejano. Que maior bênção poderia um homem almejar?

Vou mas éi comer a açorda que tenho mais que fazer.

João Mário Caldeira - Professor de História