sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Coisas que leio...

Altar-mor da Igreja Paroquial de Nª Sª do Carmo - Beirã 
Foto José Coelho

É muito conhecida a máxima de que os exemplos e as atitudes é que valem porque discursos e palavras leva-os o vento. Podemos dizer frases bonitas, argumentar com propriedade, porém, a forma como vivemos e aquilo que fazemos é que determina o que somos e o que temos dentro dos nossos corações.

O mundo anda carente de amor, de respeito, de empatia, de se reparar no outro, de se perceber que somos parte de um todo. A vida corre também fora de nós e estende-se muito além da nossa zona de conforto. Temos que cuidar do que acontece dentro de nós, dos nossos sentimentos, porém, caso só nos preocupemos com o nosso eu, estaremos a negligenciar o nosso papel social, a nossa capacidade de nos relacionarmos e de fazermos uma diferença positiva nas vidas alheias.

É interessante notar que as pessoas procuram diferentes formas de se comunicarem com Deus para se sentirem bem. (…) Mesmo assim, apesar de toda essa gente que frequenta igrejas, cultos, terreiros, ainda assistimos a cenas de total falta de compaixão em relação ao próximo. Nem mesmo as crianças e os idosos têm sido poupados a atitudes violentas ultimamente.

E ao lado dessa violência explícita, há ainda a violência velada, implícita, indireta, mas também extremamente prejudicial. Um simples olhar, o desprezo, o silêncio diante do mal, várias atitudes que implicam violência e maldade. Muitas pessoas, inclusive, conseguem ser muito melhores na rua do que em casa. Encarnam uma figura bondosa na sociedade mas transformam os seus lares em verdadeiros infernos, sendo cruéis com seus familiares das mais variadas formas.

Como se vê, muitas pessoas se contradizem diariamente, fingindo o que não são. E tentam expiar as suas culpas em locais religiosos, fazendo caridade como obrigação na tentativa de receberem o perdão, porque, na verdade, têm plena consciência do mal que espalham. Porém de nada adianta rezar, se continuam a praticar os mesmos erros. A religião está dentro de cada um e só existe na prática. Porque a religião não se discute, pratica-se.

Marcel Camargo 
in A nossa religião é aquilo que fazemos quando o sermão acaba
(Adaptado)

sábado, 22 de fevereiro de 2020

O "falar" de todos nós...


Sócha do Miradouro da Beirã - Foto José Coelho

A propósito de uma "moda" que “a malta” do meu tempo cantava ao desafio com as moças nos trabalhos do campo, propus ao grupo de que faço agora também parte umas “saias à moda antiga", deliberadamente escritas na pronúncia característica da nossa região. Não são só os usos e costumes, não é só a paisagem que tem características muito próprias. Também a fala é património nosso e parte integrante do todo. Como tal, entendo que deve ser preservada e defendida, sem motivo de escândalo ou complexos de inferioridade.

Contudo, ao apresentar aquela velhinha cantiga, logo duas ou três vozes se levantaram para afirmar que “a gente nã fala assim”. Ai fala, fala, reafirmei convicto. Poucas serão as pessoas que pronunciam o “não” correctamente, e, em vez disso, dizem simplesmente “nã”. E também o “eu” é pronunciado “ê”. Um “vais” é reduzido a “vás”, o “nem” dizemos “nim” um “dizem que” resume-se a  “diz que”, e muitas, muitíssimas mais palavras são reduzidas em parte das suas sílabas. É o nosso falar. Não há qualquer motivo para dele ter vergonha ou gerar censura. Cada povoação, até num só concelho, tem o seu sotaque próprio.

Nós, os da parte norte de Marvão, falamos assim:

- V’zinha atão há corse de carnaval est'ane?
- Diz’que sim. Mas ê cá nã poss’ir. Nim "domingue" nim terça. 
- Tu, vás?
- Ê cá tenhe tençõns d´ir, se'Dês qu'sér…


Já na Escusa, do mesmo concelho mas da parte sul, nasalam-se mais algumas sílabas:

- Abalaste munto çôde?
- Nasçô-me o sol ô Talaiã…

Mas não somos só os Marvanejos que temos um falar muito nosso. Com os concelhos nossos vizinhos sucede o mesmo. O meu Pai, nascido e criado no Bom Jesus em Castelo de Vide, trouxe consigo para Marvão onde casou e viveu a maior parte da sua vida, aquele seu falar característico que pronuncia o “a” em vez do “e” que origina chamar-se por aqui aos Castelovidenses “os da terra do bonáque”. Para ele nunca fui o seu Zé, mas sim o seu Zá.

 - Zá! Oh Zá… Chega lá aqui, filhe…

Tomara eu continuar a ouvi-lo ainda hoje!

Também por Nisa onde trabalhei e convivi com aquela gente boa de todas as suas freguesias, conheci um encantador e genuíno modo de falar que começa logo pela exclamação “dé” a anteceder qualquer conversa.

E não resisto a transcrever uma quadra popular Nisorra que por lá aprendi e acho absolutamente fabulosa:

Os olhos daquela àquela
Os olhos daquela ali
Ou tu le tens amezéde
Ou ela tará ta ti

É o falar de cada terra, de cada um de nós. Tão nosso como tudo o que de mais genuíno existe por cá. E sinto o dever de defendê-lo como defendo as outras coisas todas, porque entendo que únicas e a merecer divulgação não são apenas as paisagens. Os usos e costumes, entre os quais o nosso falar, completam o património de que devemos orgulhar-nos e urge defender...


José Coelho
22.02.2020

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Dá que pensar...

Imagem do Google

"Ao longo do ano 2019, tivemos no concelho de Marvão 76 óbitos (77,64%) e 17 nascimentos (22,36%).

(Informação publicada na folha semanal Nº 10 do Mês de Fevereiro 2020, das Paróquias de Marvão) 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Inferno verde (1)

Em Belize, no coração do Maiombe - 1972


É algo complicado para mim apesar de passadas já quatro décadas, recordar o que foram dois anos no coração da mata do Maiombe longe de tudo quanto era civilização. Dizem os livros que é a única floresta que em extensão e densidade se compara à Amazónia sendo por isso o segundo pulmão do mundo. É? Não sei. Mas se os livros o dizem… Contudo, nunca me preocupei em confirmá-lo pois a única coisa com que me preocupei e empenhei com todas as minhas forças depois de lá sair, foi tentar esquecer que aquilo existe.

Por uma questão de justiça antes de prosseguir é meu dever afirmar que Angola é linda. Um sonho de terra. Conheci as cidades de Luanda e Cabinda, depois as vilas do Caxito, Ambriz e Ambrizete. Independentemente da guerra e das suas vicissitudes, África é um continente maravilhoso. O próprio Maiombe no exotismo da sua diversificada e luxuriante vegetação, tem recantos de sonho. A sua fauna é também muito rica. Abundam as enormes jiboias e muitas outras cobras mais pequenas mais ou menos venenosas mas todas elas vistosas, elefantes, pacaças, gorilas e uma infinidade de raças de outros macacos também de diversos tamanhos, o mais pequeno dos quais é o saguí, além de milhares de outros bichos e aves exóticas. E, nos diversos rios que por ele serpenteiam, abundam ainda os crocodilos.

Também os indígenas locais não são como os caricaturam muitas vezes. São boa gente. Conversávamos muito com eles pelas sanzalas principalmente com os mais idosos que eram iguais aos anciãos das nossas terras, conselheiros sábios, prudentes e experientes. As mulheres meigas e afáveis como as nossas, as crianças irrequietas e curiosas, também. Ali, nós é que éramos os estranhos, os estrangeiros na sua terra apesar de na instrução militar nos terem feito a lavagem ao cérebro, para nos convencerem a vermos em cada um deles um “turra”, um inimigo perigoso. Nos cenários de guerra há, sempre houve e sempre haverá, infiltrados. Obviamente. Porque tentar conhecer as fraquezas do inimigo é uma das regras do jogo, estrategicamente utilizada pelas partes em conflito. Mas lá, convivendo de perto no dia a dia com a população, percebia-se perfeitamente que a esmagadora maioria queriam apenas viver a sua vida em paz. E os habitantes daquelas sanzalas isoladas no interior da floresta eram quase sempre tão vítimas da guerra como nós.

Demasiadas vezes foram tratados pelo homem branco com uma superioridade que na realidade este nunca teve. São apenas pessoas e a diferença na cor da sua pele em nada os faz menos merecedores do respeito devido a qualquer ser humano. Deixei algumas amizades por lá, maioritariamente entre as jeitosas moças "fiotes", uma das quais a bonita Madô que foi quem cuidou das minhas roupas durante os dois anos que lá estive e não só. A amargura perene e as marcas irreparáveis que a guerra me deixou nada têm a ver com os africanos nem com a sua terra. São marcas que ficaram na alma para sempre e foram deixadas por uma vida insana desumana e injusta que se vivia em tais condições, naquele tempo e lugar. Hoje talvez até gostasse de lá voltar e poder ver como está tudo aquilo, sem o espectro da maldita guerra com o perigo a espreitar por todos os cantos.

No tropical anoitecer do dia 13 de Março de 1972 atracámos por fim ao porto de Cabinda na tal barcaça achatada (Ariete) que mais parecia uma ponte flutuante, ensonado e bastante dorido por 60 horas de viagem sentado em cima das bagagens, deficientemente alimentado pela enjoativa ração de combate e suficientemente amedrontado com as notícias pouco tranquilizadoras que nos tinham chegado ao ouvido acerca do inferno que nos esperava naquela terra de ninguém, disputada por diversas facções inimigas que tudo fariam para nos dificultarem a estadia que não iria ser nada breve.

Um homem sente medo muitas vezes, por mais que diga que não. E também chora. Por mais valente e audaz que possa ser. E todos nós, os Cavaleiros do Maiombe – cognome atribuído a todos os militares do BCAV 3871 – sentimo-lo profundamente vezes sem conta. E outras tantas vezes chorámos. De desespero. De raiva. De frustração e de impotência por nada conseguirmos fazer que pudesse impedir ou evitar tantas mortes e tantos estropiados naquelas malditas emboscadas e rebentamentos de minas ou outras armadilhas semeadas por tudo quanto era chão e tantos danos causavam por mais cautela que todos tivessem nas deslocações pela mata.

A imagem que melhor recordo daquele anoitecer da nossa chegada a Cabinda – em África não há crepúsculo como cá, anoitece ou amanhece quase de repente – é a imagem fantasmagórica das altas chamarelas dos poços de petróleo no meio do mar da Cabinda Gulf Oil que salpicavam de lume toda a costa numa extensão a perder de vista parecendo tochas gigantes reflectidas no mar pelo negrume da noite.

À nossa espera estava uma coluna de várias viaturas conduzidas pelos felizardos “velhinhos” que íamos substituir e que não se coibiam de nos atazanar o juízo com a velha lenga-lenga de “maçaricos” ou “piu-piu pintainhos” bem como de alardearem profusamente o seu já próximo regresso a casa, vociferando como dementes: “Não se enervem maçaricos! Só já vos faltam 730 dias para voltarem para a mamã…” Era da praxe e não havia que levar a mal. Mas o cansaço, o sono, a angústia do desconhecido e o mais que anunciado perigo que nos aguardava, não nos davam ânimo para celebrar com eles aquela euforia, nem sequer para esboçar algum sorriso às suas felizes piadas, pelo que a nossa resposta era apenas uma total indiferença e uns semblantes cansados.

Escuro como breu poucos quilómetros percorridos e após se extinguirem de vez as últimas luzes da civilização da vila de Lândana, acolheu-nos o imponente Maiombe em toda a sua negra imensidão. A coluna de viaturas serpenteava atenta e vagarosamente com milhões de sons nocturnos provenientes do denso mato a soarem mais alto que o próprio ronronar dos motores dos unimogs que nos transportavam, intercalados  pelas berliets que levavam as nossas bagagens. De longe em longe atravessávamos sanzalas com pequenas casotas redondas de adobe e telhados de colmo completamente às escuras sem se vislumbrar viv’alma. Para além dos faróis das viaturas tudo o que nos rodeava era uma sinistra e pesada escuridão.

Chegámos por fim ao Belize mais de 200 km a norte de Cabinda, bem no coração da floresta. Esperavam-nos, mais uma vez loucos de euforia, os “velhinhos” que íamos render que nos receberam com mangueiradas de água à medida que as viaturas iam entrando naquele enorme recinto de grandes barracões cobertos com chapas de zinco a que pomposamente chamavam casernas, refeitório, posto de rádio, secretaria… Aquilo era, nem mais nem menos, um acampamento rasca sem um mínimo de condições onde centenas de homens já tinham vivido nos anos transactos e onde nós passaríamos a viver nos dois anos seguintes.

Essa noite – a primeira das tais 730 – foi mesmo para esquecer.

Exaustos porque sem dormir há quase 3 dias, tivemos que suportar, perante a passividade indiferente dos oficiais e sargentos responsáveis por aquela turba de insurrectos, que eles passassem a noite a apedrejar os telhados de zinco das casernas onde nos tinham enfiado, provocando, como é óbvio, um alarido ensurdecedor. E gritavam, riam, ululavam como os índios dos filmes de cowbois tratando-nos como se em vez de sermos os bem-vindos camaradas sucessores que iam pôr fim ao seu longo desterro, fôssemos os turras que lhes haviam tirado o sossego durante a sua estadia naquele fim de mundo.

Dir-se-ia que tínhamos aportado a uma colónia de loucos completamente descontrolados a quem ninguém teve o bom senso de mandar parar aqueles excessos insuportáveis.

Ainda assim, o cansaço era tão grande que adormeci vestido e calçado sobre o beliche, ao som do estrépido das pedradas a caírem consecutivamente no telhado de zinco da caserna e dos autênticos uivos dos camaradas “velhinhos” cuja justificação ou desculpa era somente a de estarem “cacimbados” pelas agruras da guerra e isolamento quase total naquela imensidão de selva…

Continua…

Nota explicativa

Este relato apesar de várias tentativas para o abreviar manteve-se ainda assim demasiado extenso. Para não se tornar tão cansativo e enfadonho decidi fraccioná-lo em 4 textos todos com o mesmo título, referenciando apenas cada um deles com a sequência numérica 1-2-3-4 que os diferenciará entre si.

José Coelho in Histórias do Cota