sexta-feira, 21 de junho de 2019

O milagre da vida...

Foto José Coelho - 20.06.2019

Na caixa de um contador da água numa casa de férias na aldeia dos Cabeçudos, deparei-me inesperadamente com esta formosura. Dois passaritos já fora das cascas, um passarito ainda dentro da casca do ovo e outro ovo inteiro de onde estava prestes a eclodir mais uma vida. Fotografei o momento único absolutamente fascinante para vos poder mostrar e retirei-me em seguida para não perturbar mais. Sejam bem-vindos, amiguitos...

Bora lá...


terça-feira, 18 de junho de 2019

Trabalhem malandros que para isso vos pagam …

A bica depois do almoço no bar do Posto - Finais dos anos 80


Nos primeiros dois anos da minha função de comandante do posto de Nisa decidi conhecer palmo a palmo toda a área cuja ordem e tranquilidade públicas estavam confiadas à responsabilidade do posto para poder coordenar melhor o policiamento e vigilância de tão grande extensão territorial.

Foram precisas muitas horas a calcorrear de jipe e a pé as povoações e os seus acessos para perceber a intrincada teia de estradas e caminhos rurais pelas encostas e pinhais da serra de S. Simão a norte e nascente, depois pelas densas matas de eucaliptos a sul e poente de Nisa.

Apesar de todo o meu empenho, as queixas dos mais diversos furtos sucediam-se diariamente no posto com prevalência para o desaparecimento dos gados que enxameiam ainda hoje por toda a área de um concelho eminentemente produtor do leite que fabrica o queijo de Nisa DOP cuja fama há muito cruzou fronteiras.

Vi-me por isso na necessidade de muito em segredo como convinha para não espantar os ladrões antes de os conseguirmos apanhar, pedir ajuda à Polícia Judiciária de Tomar que tal como nós tinha também a seu cargo a investigação da área de Nisa para os crimes da sua exclusiva competência. Assim começámos um trabalho conjunto cada um na sua esfera de comando mas orientado todo ele para um só objectivo. Travar a onda de roubos e apanhar os ladrões. 

Na sua maioria os roubos eram levados a cabo por um bando de ladrões devidamente chefiados por um Ali Bábá das bandas de Belmonte que organizadamente vinham durante o dia marcar o terreno para durante a noite efectuarem os assaltos e transportar imediatamente os gados para o interior da Beira Baixa de onde os encaminhavam para alguns matadouros mais a norte numa acção perfeitamente concertada que seria impossível descobrir se não tivéssemos a excelente e competentíssima polícia judiciária neste país de xicos-espertos onde só não consegue enriquecer e singrar na vida quem trabalha honradamente.

Foram meses de muito trabalho e secretismo. Foram também meses de cenas caricatas e divertidas que aconteciam e nos ajudavam a descontrair esquecendo um pouco as frustrações imensas que qualquer investigação criminal inesperadamente proporciona quando por exemplo nos parece que estamos mesmo quase, quase, a atingir um alvo e de repente verificamos que todas as pistas que vínhamos a seguir eram falsas. Uma dessas situações hilariantes foi quando, depois de muita investigação, se conseguiu recuperar uma dúzia de cabras e cabritos que tinham sido roubadas a um casal de idosos no Monte do Pardo.

Quisemos eu e o inspector da PJ estar presentes no momento da descarga do gado e respectiva devolução aos donos. Por um lado por nos sentirmos realizados com o resultado, por outro lado para transmitirmos alguma confiança às populações que andavam inquietas e com o permanente receio de verem uma noite qualquer desaparecer também o seu gado.

A nossa presença naquele acto era simbólica e queria no fundo incutir apenas algum sossego mas também fazer sentir que estávamos ali, no terreno e perto deles, a tentar cumprir o nosso dever. Assim que as cabras lhe foram entregues e verificado que nenhuma faltava veio o seu dono de boné na mão muito reconhecido agradecer veementemente por termos conseguido recuperar o seu querido gadinho. 

Eis senão quando muito dona do seu nariz e aparentemente zangada, a mulher do pastor não lhe pareceu bem tanto agradecimento e sentenciou alterada:

- Déééhhh! Ó hóme de Dês tu tá mazé calade, nã tés nada ca'gradecê.... Só fizérim a sua obrigaçã olha-lá-ô! É pra isso que les páguim...

Abalou a falar alto mais coisas imperceptíveis tocando as cabras deixando-nos a todos atónitos com a tão acertiva sentença. Ainda mais atónito que nós ficou o "sê hóme" que pediu desculpa e agradeceu outra vez antes de marchar atrás dela mais das suas cabrinhas.

E nós ficámos a vê-los ir, rindo a bandeiras despregadas.

- Toma que já almoçaste! Retorquiu, olhando para mim com ar divertido, o amigo Manel inspector. 

- Vai mas é trabalhar, malandro...


José Coelho
In Histórias do Cota

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Regresso a casa - Pai...

O comboio TER que me trouxe para casa

(...)

Pernoitámos em casa da tia Maria d’Alegria pelo que só rumámos à Beirã no dia seguinte no comboio expresso TER que ligava Lisboa a Madrid e saía de Santa Apolónia às oito e dez da manhã. Eu continuava ainda ansioso por abraçar o resto da família, particularmente o meu querido pai e as minhas três irmãs, assim como evidentemente a namorada que hoje é a mãe dos meus filhos, os meus avós, tios, primos, vizinhos e toda uma legião de amizades.

Desde que chegara a Lisboa estava muito piegas. As lágrimas assomavam-me aos olhos por tudo e por nada inexplicavelmente. E acho que nunca mais me curei dessa pieguice da qual não me envergonho por ser coisa que herdei do pai, o qual, muitas vezes e com a maior facilidade chorava. Bastava às vezes o simples facto de lhe darmos um beijo ou um abraço ou fazer-lhe um carinho qualquer. Fossem os filhos ou os netos. Penso que por ser uma pessoa tão bondosa comovia-se facilmente e muitas vezes sem qualquer razão aparente. Pena eu só ter herdado dele a choradeira porque em bondade nem lhe chego aos calcanhares.

O naquela época elegante comboio azul chegou por fim à estação de Castelo de Vide, a penúltima antes da Beirã. Faltava um quarto para as onze. A paisagem tão querida e tão familiar começou a desenrolar-se diante dos meus extasiados olhos. Que delícia! Que saudades eu tivera das minhas pedras, dos meus sobreiros e giestas, daquele aroma cálido e perfumado dos campos secos no início do verão, longe do húmido pegajoso e interminável verde da floresta tropical.

Parecia ainda quase um sonho mas ali estava Castelo de Vide de um lado da linha e do outro lado os canchais pontilhados de carvalhos, sobreiros, oliveiras, hortas e casas brancas isoladas, aqui e além.
Era mesmo verdade. Ia no comboio que me levava finalmente para casa, para junto de todos os entes queridos e sem aquele habitual aperto no peito causado pela expectativa de ouvir tiros ou explosões a qualquer instante. Tudo isso ficara definitivamente para trás.

Passámos a Ponte das Águas e mais além avistei o Monte da Broca com a grande e bem cuidada horta do meu pai.

Ufff…

Ainda hoje sinto um arrepio com essa recordação!

Logo a seguir o campo da bola e a passagem de nível do Penedo da Rainha. Lá vinha ele quase a correr pela estrada do Pereiro, antes da passagem de nível. O meu pai! E a porra da janela do TER que não abria! O comboio era climatizado por isso as janelas eram de vidros fixos! Fiz-lhe adeus. Ele viu-me, conheceu-me e fez-me adeus também. Depois de tanto tempo. Depois de ter temido tantas vezes não voltar a abraçá-lo.

Finalmente a estação da Beirã e uma dúzia de braços abertos correram para mim. Gritos, risos, lágrimas, soluços, beijos, longos e muito apertados abraços. Manas, tias, primos, vizinhos, amizades. Tanta gente à minha espera…

Pouco depois, especado à porta da nossa casa, ofegante ainda pela correria desde a horta, aguardava-me cego por grossas lágrimas o meu velho amigo e querido Pai.

- Até que enfim estás em casa, filho! Graças a Deus…

Ali ficámos fortemente abraçados um ao outro chorando como duas madalenas arrependidas, como se ainda temêssemos que fosse mentira.

Há, de facto, momentos que valem... Por uma vida inteira.


José Coelho 
in Histórias do Cota

domingo, 16 de junho de 2019

Regresso a casa - Mãe...

Belize - Cabinda - Angola - Natal 1973

(...)

O Boeing 747 descolou do aeroporto de Luanda numa gloriosa manhã de inícios de Junho de 1974. Para trás o estropiado Batalhão de Cavalaria 3871 - Cavaleiros do Maiombe - com quase uma Companhia a menos deixou finalmente o continente africano. Apesar da barbárie da guerra reafirmo existir por lá muito boa gente, diferente apenas na cor e nos costumes, igual em tudo o resto. Apesar também de os ideais de cada uma das partes no conflito serem opostos, a esmagadora maioria da população nada tinha a ver com ele. Pelo contrário, milhares de nativos residentes nas zonas onde se desenrolavam as frentes de guerra mais não eram também muitas vezes do que inocentes vítimas encurraladas entre nós e os guerrilheiros, dos quais nós e eles desconfiávamos, sendo por isso injusta e frequentemente tratados como espiões inimigos por ambas as partes.

É assim em todas as guerras; o cidadão anónimo é quem acaba por arcar com as piores consequências. O povo africano queria e tinha o direito de ser livre e independente para decidir o seu futuro e rumo. Nós éramos o ocupante que em nome de um colonialismo já então completamente ultrapassado e desajustado da realidade visava apenas interesses económicos geridos a partir de Lisboa a oito mil quilómetros de distância por uma política ditatorial cega incapaz de vislumbrar os sinais do tempo e do resto do mundo que não só desaprovava a sua política colonial como, por isso mesmo, apoiava e armava os movimentos independentistas. 

Durou oito longas horas o voo entre Luanda e Lisboa. Por mais estranho que pareça não se vislumbrava em rosto nenhum qualquer expressão de exuberante felicidade! Quanto muito expressões de alívio, de incredulidade por ver chegado este dia. Eram cerca das cinco da tarde quando começámos a avistar Portugal lá do alto, muito alto ainda. A Costa Vicentina primeiro, o Litoral Alentejano a seguir, e, por fim, estávamos a sobrevoar Lisboa. 

Aterrámos perto das cinco e meia da tarde. Formámos ordeiramente como nos tinha sido ordenado para as últimas instruções e recomendações. No aeroporto não havia familiares à nossa espera porque tinham sido encaminhados para o antigo Regimento de Artilharia Nº 1 em Lisboa  - RAL 1 - onde iríamos entregar o resto do fardamento e desmobilizar. Tudo isso demorou apenas mais uma hora e meia. Por fim, manifestamente comovidos todos, despedimo-nos uns dos outros para corrermos até ao exterior do quartel à procura dos entes queridos. 

E… 

Lá estava ela! A minha saudosa e querida Mãe lavada em lágrimas, ansiosa, muito mais magra do que eu alguma vez a imaginara. No seu amado rosto o mais evidente eram umas profundas olheiras, sinal mais que revelador da intranquilidade das suas noites e dos seus dias durante todo o tempo que durou a minha ausência. Caímos nos braços um do outro soluçando incapazes de conter o caudal de ternura e fome de carinho mútuos porque sempre fomos (…) particularmente amigos e cúmplices um do outro, além de que, por certo, também ambos pensámos inúmeras vezes se nos voltaríamos a ver.

Foi uma torrente caudalosa de sentimentos e emoções contidos durante 810 longos e sofridos dias a libertar-se num turbilhão impossível de conter e palavra alguma consegue descrever. Também eu vinha mudado e muito diferente. Muito mesmo. Não só com a pele mais escura queimada pelo clima quente, como também bastante magro e escanzelado, coisa que nunca fora, regressando com menos de 60 quilos dos 75 que levara. Mas, sobretudo, com uma mentalidade completamente estranha àquela que me assistia ao partir em Março de 1972.

Devo acrescentar antes de terminar por hoje que nunca mas nunca mesmo contei a ninguém as atrocidades que por lá nos aconteciam. Nem eu nem nenhum camarada o fazia. Era ponto de honra de todos e de cada um não inquietar ainda mais quem estava longe e vivia já naturalmente inquieto com a nossa ausência, além de que em nada nos poderiam valer. Na correspondência com a família e amizades apenas se referia que estava tudo bem, que aquilo era um mar de rosas. Até as fotos que enviávamos eram cuidadosamente preparadas quase sempre em traje civil como se estivéssemos numa estância turística. E se fardados nas fotos, mostrávamos com toda a certeza um semblante sereno. Truques simples que só quem ama os seus, sabe compreender... (continua na próxima narrativa).


José Coelho
In Histórias do Cota

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Home sweet home...

Foto Pedro Coelho

De mim para mim...

Crepúsculo no Vale de Ródão - Foto José Coelho

(…)

O dia a ir-se embora visto da minha varanda é um quadro repousante e digno de ser reproduzido na tela de qualquer pintor. Todos os dias, seja verão ou inverno. Neste tempo quente, o sol começa por deixar o vale onde fica a estação e mais além o ribeiro da Cavalinha. Depois vai banhando de ouro a Murta e os cumes graníticos da Anta e da Cavalinha de Cima, para despedir-se na Meirinha. Quando desaparece completamente no horizonte surge a noite vinda da Herdade dos Pombais onde parece viver escondida. No inverno dá-se precisamente o inverso. Os cumes que agora se despedem do dia dourados pelo sol poente coroam-se a partir de novembro de uma neblina clara e húmida pelo frio do anoitecer a qual vai descendo lentamente até ao vale e transmite um certo ar de mistério à paisagem. Só falta aparecer no meio dela D. Sebastião.

Esta região raiana pedregosa e inóspita que pouco mudou com o passar dos séculos ou até mesmo dos milénios como testemunham os muitos vestígios arqueológicos existentes por toda a parte, é sem dúvida o meu paraíso na terra. Aqui encontrei sempre a paz e tranquilidade necessárias por maiores que tivessem sido os meus problemas e desassossegos. Trago hoje no peito uma dor nova que não é física mas que incomoda tanto ou mais do que aquelas que passam com analgésicos. É a dor de ver esta amada terra a ficar sem ninguém. Tudo aquilo que fez parte da minha vida até aos 60 anos está a desaparecer em passo de corrida. E sei que é absolutamente irreversível. Há dias comentei tristemente com a minha companheira: - Já nem chocalhos de gado se ouvem, Maria. Só o silêncio vai inundando isto tudo!

Aposto que se os nossos antepassados cá voltassem não iam gostar de ver o lugar onde viveram e foram felizes assim votado ao abandono. Não vem longe o tempo em que muitas destas ruas casas e quintais irão ser invadidos por mato e silvas e transformar-se em montões de ruínas como está já a Herdade do Pereiro, o Ramal de Cáceres e muitos caminhos de acesso às propriedades. Não vem longe o tempo em que estes pequenos povoados da raia se irão juntar aos vestígios arqueológicos milenares para fazerem parte do seu conjunto. Como é possível que, em duas ou três décadas apenas, se tenha destruído aquilo que se construiu ao longo de mais de um século e meio? A História o dirá e julgará. Ou talvez não…

(…)

José Coelho

In Histórias do Cota

terça-feira, 11 de junho de 2019

Por do sol mágico...

Foto José Coelho

A torre alta de Marvão
escuta o murmúrio dos céus
e diz baixinho aos que estão
o que ouve dizer a Deus.

José Amaro

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Quem sai aos seus...

Um dos nossos unimog's atingidos no Belize


Em jeito de adenda ao texto que publiquei ontem quero completá-lo um pouco melhor com mais alguns dados que nunca antes mencionei.

Nessa narrativa referi o ataque dos guerrilheiros do MPLA à nossa ambulância quando esta regressava carregada de feridos numa emboscada e referi também aquele camarada – para mim herói – que por ceder o seu lugar na ambulância a outro camarada, acabou morto à queima-roupa em virtude desse seu generoso gesto. Só não referi outros camaradas que também estiveram sistematicamente cara a cara com a morte durante aqueles dois anos inteiros mas a quem nada de grave aconteceu. Entre eles, o condutor da ambulância, o camarada soldado Lopes que infelizmente já não se encontra entre nós, embora não tivesse sido vítima da guerra.

Devo esta narrativa ao seu filho João Gregório porque quero que ele saiba o quão generoso e valente foi o seu pai, muito antes de ele nascer. Tomei esta decisão ontem, quando vi um like do João Gregório cair naquela narrativa acabada de publicar.  E imediatamente pensei:
- Não imaginas tu amigo João Gregório quem esteve no meio daquele perigo tantas vezes! O teu falecido pai, a acudir aos camaradas feridos…

E decidi contar tudo. Pedi-lhe, obviamente, a devida autorização que imediatamente me concedeu.

Então aqui vai:

Para todos nós, amigo João Gregório, o teu pai era o camarada Lopes. Nome de guerra. Quem foi militar sabe que na tropa não há Zés, nem Joões. Só o apelido também denominado “nome de guerra”. Camarada capitão Serra, camarada sargento Antunes, camarada cabo Rodrigues ou camarada soldado Lopes. Nada mais. Nesse tempo a palavra camarada não conotava com politica mas com algo muito mais fraterno. Irmãos d’armas. Formámos Batalhão em Estremoz onde nos conhecemos. Eu de Marvão ele de Arronches. Eu cabo de transmissões ele soldado condutor-auto. Na guerra tocou-lhe ser nomeado condutor da ambulância.

Todas as vezes que houve que socorrer camaradas debaixo de fogo lá ia o camarada Lopes para o olho do furacão. Sem hesitar, num generoso espírito de acudir, de ajudar, de tirar daquele inferno os camaradas horrivelmente feridos, às vezes. Por isso assistiu a muitos horrores. Ajudou a salvar muitas vidas no transporte de dezenas de camaradas estropiados, alguns dos quais não resistiam ao percurso e morriam na ambulância pelo caminho. Sempre foi assim de semblante sério e fechado. E de poucas palavras. Sei isso muito bem, porque a ambulância era escoltada por outras duas viaturas de apoio com duas secções de atiradores, e sempre, mas sempre mesmo, um operador-rádio. 

Era um excelente camarada o teu pai, João Gregório.  Um verdadeiro amigo, alguém com quem se podia sempre contar. Tu sabes que eu sei o que digo porque sei também que ele falava muito de mim e da guerra onde andámos os dois.

Quis o a sorte a vida ou o destino que regressássemos a casa sãos e salvos, apesar de tudo o que por lá vivemos. E rumámos cada um à sua terra e família. Voltámos a encontrar-nos só dez anos depois em Nisa, eu já sargento para comando do posto da GNR daquela Vila, ele soldado de cavalaria do efectivo do mesmo. As voltas que a vida dá. Obviamente a amizade e cumplicidade adquiridas na guerra fizeram com que entre nós se estabelecesse uma confiança ainda mais forte. Ele tinha um filho. Tu, o ainda pequenito João Gregório. Curiosamente da mesma idade do meu filho Manuel que tinha também um mano mais novo, o Pedro.

Depressa se estabeleceu entre vocês os três essa boa amizade que prevalece desde então até hoje. Os bons amigos são para sempre. Entretanto eu ascendi na carreira em 1992 e saí de Nisa. O camarada amigo Lopes e senhor teu pai atingiu o tempo de serviço e reformou-se. Mas não chegou, por ironia ou fatalidade do destino, a desfrutar da sua merecida aposentação. Passou por tantíssimos perigos, encarou a morte tantíssimas vezes naquele inferno que foi para nós o Maiombe, para súbita e inesperadamente deixar a esposa, o filho, a restante família e os amigos, caído numa horta, o entretém onde decidiu passar os seus dias e onde foi encontrado já sem sinais de vida.

Acompanhei-o à sua última morada com tristeza e mágoa na companhia do meu filho e teu amigo Manuel. Quisemos confortar-te a ti e à senhora tua mãe com a nossa estima e solidariedade nesse negro momento de dor. A vida dá voltas inexplicáveis. Por mais que vivamos nunca seremos capazes de a entender. Que descanse em paz. No meio de todas as suas virtudes e também humanas imperfeições era um bom camarada, um bom amigo, um guerreiro corajoso que com a maior generosidade muitas vezes expôs a sua própria vida para ajudar a salvar a de outros. No fundo aquilo que tu fazes hoje também generosamente como bombeiro, João Gregório. Quem sai aos seus...

Orgulha-te muito, por tudo isso, do teu falecido pai. Sei, porque te conheço desde miúdo, que és tão boa pessoa e tão generoso como ele. Que Deus te proteja e guarde sempre. Desejo para ti tudo aquilo que desejo também para os meus filhos. Que sejam felizes. E conta sempre, mas mesmo sempre, connosco...

José Coelho
10 Jun’19

domingo, 9 de junho de 2019

Por isso mesmo...


Beirã querida
tua Estação
foi tua vida
teu coração

Abandonada
de noite e dia
vive amparada
na velha via

Silêncio em tudo
portas fechadas
relógio mudo
luzes apagadas

Bem cá do fundo
vou prometer-te
que todo o mundo
terá que ver-te

Aos teus painéis
Mestre Colaço
e aos capitéis
granito basso

A gare chique
de encantar
ninguém fique
sem admirar

Por isso estou
a publicar-te
por isso vou
fotografar-te

Beirã 02 Jun'19
José Coelho

Tarde de domingo e mais um excerto...

Com o camarada e amigo Borges, no Belize

(...)

... Aquele ataque na curva da morte que vitimou o Vitoriano foi apenas o começo. Dali em diante nunca mais houve paz para os Cavaleiros do Maiombe. O MPLA que estava a “levar nas lonas” no Leste de Angola “virou-se” em força para Cabinda. Equipado já então com os lança granadas foguete RPG2 e RPG7, armas terríveis de fácil transporte e pontaria, assim como com as espingardas Kalashnikov, contra as nossas já ultrapassadas G3 e as nossas bazucas de difícil manejo e transporte, empenhou-se em dizimar quanto pôde as unidades sediadas no enclave de Cabinda. Ao “meu” BCav3871 conseguiu de tal modo que das suas quatro companhias inicias pouco mais de 3 regressaram a casa sãs e salvas no final da comissão. Mortos em combate 18. Feridos graves evacuados 103. Total de baixas 121.

Recordo cada camarada morto ou gravemente ferido porque cada um deles era um amigo muito mais próximo de parente do que de amigo. Viver em grupo naquelas condições não só aproxima as pessoas como estabelece também laços de profunda fraternidade e solidariedade. O problema de um tornava-se no problema de todos. De tal modo assim é que ainda hoje mantenho contacto com alguns desses velhos camaradas d’armas. 

Nunca esqueci.

Recordo aquele camarada que ficou ferido nas pernas mas como os ferimentos permitiam que viesse sentado num unimog generosamente cedeu o seu lugar na ambulância a outro camarada também ferido com menor gravidade mas que iria melhor deitado numa maca na ambulância. Só que, algumas centenas de metros mais à frente já no regresso ao quartel, a coluna de socorro foi novamente alvejada depois de recolher os estropiados. E o generoso camarada ferido nas pernas que vinha no unimog, por não ter conseguido saltar da viatura a tempo, morreu sentado no banco, enquanto o outro camarada que vinha na ambulância no seu lugar nada mais sofreu. É internacionalmente convencionado nunca atacar ambulâncias na evacuação de feridos, por isso, naquela tarde, o MPLA excedeu todos os limites da compreensão humana. Aquilo não foi um acto de guerra. Foi uma selvajaria sem tamanho, das muitas que acontecem em todas as guerras e nunca são noticiadas, ficando gravadas apenas na memória de quem por elas passou.

Recordo também aquela coluna de camaradas de Sanga-Planície furiosamente atacada e da qual resultaram 3 mortos e 10 feridos quando se deslocavam para a aldeia de Kungombundo para irem inaugurar uma pequena escola que os Cavaleiros do Maiombe tinham ajudado a construir. Nessa coluna se transportava também algum mobiliário e material escolar quer para a escola quer para as crianças do fiote. Terá sido a forma que o MPLA entendeu justa para compensar o empenho “dos branco” como eles nos chamavam? 

A revolta que ficou na “malta” era insuportável.

Recordo também entre muitas outras coisas ainda a resignação daquele camarada que pisou uma mina que lhe decepou um pé. Com o estrondo do rebentamento toda a secção se atirou ao chão e ficou abrigada no mato à espera do que viesse a seguir. Por fim e como mais nada buliu, toda a gente percebeu o que tinha acontecido. Fora accionada uma mina. Ao chegarem junto do soldado Bento, o ferido, estava este já a limpar com o lenço a terra que ficara agarrada ao coto sem pé. Ao ver os camaradas, comentou com enorme sangue frio: 

- Podia ter sido pior… Um pé postiço e isto remedeia-se!

Era o tal espírito de resignação e de aceitação que lá mais atrás referi. Qualquer coisa que tivesse algum remédio seria sempre melhor do que a morte.

Foi de imediato accionado socorro via rádio e pedido um meio aéreo para evacuar o Bento do meio do mato. Foi de facto enviado um helicóptero que apareceu muito tempo depois por culpa da fraca visibilidade provocada pelo cacimbo e para desespero de todos os que ali aguardavam a sua chegada. Valeu ao ferido o impecável desempenho do camarada enfermeiro que lhe prestou os primeiros socorros, fez e aliviou sucessivamente um garrote e ministrou morfina para ele não sentir dores nem entrar em estado de choque.

Recordo finalmente o meu excelente camarada de equipa e grande amigo soldado de transmissões Borges que insistentemente me pediu para o deixar ir no meu lugar a Lândana porque tinha saudades do mar. Na vida civil ele era pescador. Da Afurada em Gaia. Mas no Maiombe o oceano mais próximo ficava na baía de Lândana, a mais de 200 km de onde nos encontrávamos. E naquele dia, pela escala de serviço, calhava-me a mim ser o operador-radio da coluna auto que iria deslocar-se àquela localidade. Perante tão insistentes pedidos e depois de a troca ter sido autorizada pelo comandante do pelotão de transmissões, o tenente Luciano Amaral Dias – hoje um eminente advogado numa das cidades da serra da Estrela – lá foi, feliz da vida e no meu lugar, o camarada pescador matar saudades do seu querido mar.

Em má hora o fez. Tão gravemente ferido ficou na viatura em que seguia com o radio quando esta capotou num aparatoso acidente que o soldado Borges teve de ser imediatamente evacuado para Luanda por via aérea e dali para Lisboa. Não mais voltou ao Maiombe e não mais nos voltámos a ver. Consegui saber, alguns anos mais tarde, que ele já não se encontrava entre nós.  Até hoje não compreendi as voltas que o destino às vezes dá. O habitual era precisamente o contrário. Sendo eu o cabo mais antigo da equipa de transmissões e chefe directo deles, era também eu quem ia muitas vezes para a mata no seu lugar. Recorrentemente e na vez de qualquer um deles, pois éramos oito. Ou porque o que estava escalado queria ir jogar futebol coisa que eu não gostava, ou  porque ia ser transmitido via radio algum relato de jogo importante, coisa a que eu também não ligava, ou por outra qualquer razão.  

Naquele dia o camarada Borges só queria mesmo matar saudades de algo que também amava. O mar. Vê-lo, ouvi-lo, tocar-lhe, sentir o seu odor salgado, quiçá imaginando que na Afurada, do outro lado do mesmo mar, o seu pai pescador, algum dos seus três filhos, a sua esposa ou a sua mãe, estariam também por lá à beira d'água com saudades.  Dele...

(...)

José Coelho in Histórias do Cota
Beirã 09 Jul'19

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A minha primeira aula de balet...


… sob a orientação da professora de dança Francisca Coelho algures no palco de uma praceta de Setúbal. Repórter de imagem o papá da neta, sempre atento a estes exclusivos em direto!!!!!

terça-feira, 4 de junho de 2019

Uma pequenina surpresa para a minha comadre de Nisa...

... que foi uma grandessíssima surpresa que os meus filhos me fizeram a mim!


(…)

Sem saber para onde me virar e como muitas vezes fiz ao longo da minha vida sempre que disso tive necessidade, procurei a ajuda do divino. Num dia e hora completamente aleatórios e sem prévia programação dirigi-me à igreja matriz para me recolher no silêncio e acolhedora paz do seu interior, em busca de alguma transcendente inspiração que me aquietasse o espírito e indicasse um caminho. Entrei precisamente quando estava a começar uma missa que envolvia actividades com crianças da catequese.

Deixei-me ficar ao fundo da igreja discretamente rodeado pela assembleia anónima a tentar passar despercebido, mas logo a minha comadre Natária, uma das mais competentes e activas colaboradoras daquela comunidade há muitos anos, reparou em mim e foi ter comigo para me dizer:

- Ainda bem que aqui estás, compadre. Queres ir fazer uma das leituras da missa?

- Sim posso fazer, respondi sem pensar duas vezes, porque também na minha paróquia-mãe sempre colaborei quando me foi solicitado.

E assim, sem nada ter sido preconcebido, estava já a ser parte interveniente naquela celebração eucarística que nem sabia estar prestes a começar quando me dirigi à igreja. Senti logo naquele convite um sinal de acolhimento do Senhor. É muito difícil traduzir por palavras esses sentimentos íntimos da nossa alma mas dir-vos-ei que, à luz da minha fé, senti assim como que um “bem-vindo a minha casa”.

Presunção e água benta cada um toma a que quer diz a sabedoria popular. Mas, sem que me ocorra melhor forma de o explicar, senti efectivamente que aquele convite para ir fazer uma das leituras mais não era que um invisível sinal de boas vindas. A igreja estava repleta de gente, porque fui eu o escolhido?

A celebração começou.

Fui fazer a leitura que me tinha sido solicitada quando chegou o momento e voltei de novo para o meu lugar ao fundo do templo. Pouco depois, durante o ofertório realizado pelas crianças, enquanto uma delas estendia o cestinho para recolher as oferendas, a outra criança oferecia a cada pessoa uma pequena tira de papel onde estava escrita uma frase de conteúdo litúrgico. E lá veio uma delas estender-me o cesto onde coloquei a minha oferta enquanto a outra me entregava “um recado” numa tirinha de papel que aceitei (e guardo até hoje) depois de ler a curta mensagem nele contida que dizia assim:



Fiquei a olhar com genuína surpresa para o minúsculo papel. E pareceu-me ser outro sinal, só que desta vez bastante mais óbvio e entendível. Involuntariamente senti um arrepio e estremeci ao mesmo tempo que me invadia um sentimento da mais profunda serenidade. Apenas consegui murmurar: “Bendito sejais Senhor”.

Quando saí da igreja pouco depois o meu coração navegava num mar de tranquilidade por me sentir abençoado pela inabalável certeza de que as minhas preces tinham sido atendidas. E aquele papelito que levava no bolso era um prenúncio de esperança que ia muito além do que alguma vez imaginara encontrar.

(…)

(Pequeno excerto das minhas Histórias do Cota)

José Coelho

sábado, 1 de junho de 2019

Moi-même...

Encontrei na net

Dela se compõe o mundo disse o poeta. Mas…

Zé do Telhado - Imagem copiada do Google


Não seria suposto – acho eu – mudanças tão radicais em tudo o que me rodeia no espaço de apenas duas ou três décadas.  Mas assim tem sido, assim é. Não há volta a dar. A vida, o tempo, os usos e costumes. Embora já não seja propriamente um jovem, não me considero ainda um velho aos sessenta e sete anos, contudo, já vi e vivi tantas coisas que às vezes parece-me andar por cá há mais de cem anos.

Até aos 35 anos conheci um mundo, daí para cá venho conhecendo outro, totalmente diferente. Na mesma terra e com algumas das mesmas pessoas, só que a terra mudou e algumas das pessoas foram-se indo. A terra mudou porque o progresso que esteve na génese do seu desenvolvimento foi o mesmo que a matou.  E as pessoas foram-se indo por ter terminado o seu tempo ou porque terem que buscar novos destinos onde pudessem continuar a ganhar o seu sustento.

É verdade que tudo muda e se transforma. E que o mundo é composto de mudança. Faz parte dos ciclos que naturalmente se sucedem na vida das pessoas e das coisas. O que me faz alguma confusão é a rapidez com que tudo acontece agora, porque, na primeira metade da minha vida, e não só, não era assim. Os meus bisavós, avós e pais, eram todos desta região. Uns do concelho de Castelo de Vide, outros do concelho de Marvão, alguns até da vizinha Espanha, todos num perímetro físico de poucos quilómetros entre si.

E todos foram sempre muito unidos, muito arreigados à família, respeitando os laços familiares até à quarta ou quinta geração – não é por acaso que por aqui somos quase todos primos uns dos outros – ciosos também dos seus usos e costumes. Praticavam entre eles e para com os outros as regras da boa educação, do bom trato e do respeito, mas também do decoro e da honradez em tudo o que falavam e faziam.  

Valia mais uma palavra sua do que qualquer certidão de notário. Foi por isso dentro desse contexto que eu fui ensinado. Os meus avós não tinham bens e nem sequer a casa onde moravam era deles. Viviam do seu trabalho mas ainda assim não deviam um centavo que fosse a ninguém. Tinham a vida que podiam ter sem se importarem se a dos outros era melhor do que a sua. Foram, indubitavelmente, apesar da sua humilde condição social, as criaturas mais perfeitas que conheci na minha vida e a quem nunca vi um mau exemplo ou ouvi um queixume.

O respeito entre os dois e para com os filhos e netos era irrepreensível. Na casa dos meus pais, idem, idem, aspas, aspas porque a tia Florinda era uma cópia da senhora sua mãe. Olá se era! Por isso, a pessoa que aprendi a ser e tudo o que depois ensinei aos meus filhos a eles devo, muito mais do que à escola que me ensinou a ler e a escrever, as duas únicas coisas que nenhum deles sabia fazer. Há valores não se vão buscar à escola porque têm que vir do berço. Talvez por isso estranhe tanto as atuais mudanças porque não encaixam, de todo, naquilo que aprendi.

Hoje sucede exatamente o inverso. Os maus exemplos vêm quase todos de cima. Do topo para a base. De quem governa ou governou. De figuras públicas com altas responsabilidades nas mais diversas áreas e funções de administração, chefia ou direção. De pessoas que deveriam ter um comportamento irrepreensível para reflexo no cidadão comum. Qual quê! Cada dia, semana ou mês, um novo escândalo. E cada um mais grave que o anterior. José Teixeira da Silva ou Zé do Telhado, em 1800 e tal, roubava aos ricos para dar aos pobres. Os Zés do Telhado modernos são exatamente o oposto. Roubam aos pobres, ao Estado, às Instituições, para centuplicarem as suas fortunas. E sem olhar a meios. Vale tudo.

A tal ponto isto chegou que já é tido como normal um pilha-galinhas que nunca teve onde cair morto ficar rico sem se perceber como. E que um primeiro, segundo ou terceiro ministro – o tal topo da hierarquia cívica – vão parar à prisão indiciados por falcatruas e desmesurada ganância.

Seria este o tipo de mudança que Camões refere no seu poema Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades?

Cada um tire a sua conclusão:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

Beirã - 01 Jun' 19
José Coelho