terça-feira, 28 de abril de 2020

Para ler, reler e reflectir...

Cuidámos de ti e do Pai também, até ao vosso último dia, Mãe.
Foto Pedro Coelho

HONRA OS TEUS VELHOS

Um facto ao qual não nos deveríamos habituar é este: que na informação sobre as vítimas da pandemia venha associada a sua idade e a indicação de que eram afetados por outras patologias. Não nos damos conta, mas com isso descemos, de forma irreversível, alguns degraus daquele precioso património comum a que chamamos civilização. Não discuto que a intenção possa ser virtuosa, pois supostamente visa serenar os outros segmentos da população. Mas certas serenidades induzidas têm de ser questionadas, sobretudo se reforçam a vulnerabilidade de quem já tem de suportar tanto. É fundamental que para as nossas sociedades seja claro que há coisas piores do que a infeção com o vírus da covid-19. Se os velhos são reduzidos a números, e a números com escassa relevância humana e social, podemos até superar airosamente a crise sanitária, mas sairemos diminuídos como comunidade. Rodarão as estações. A esta primavera suceder-se-á outra, porventura, mais risonha, distendida e ampla. Mas nunca mais respiraremos da mesma maneira.

É que não se envelhece para morrer. Penso no modo extraordinário e preciso como o livro do Génesis descreve a caminhada do patriarca Abraão. “Abraão expirou... velho e saciado de dias” (Gen 25:8). Sim, não se envelhece para morrer. 𝐄𝐧𝐯𝐞𝐥𝐡𝐞𝐜𝐞𝐦𝐨𝐬 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐧𝐨𝐬 𝐬𝐚𝐜𝐢𝐚𝐫𝐦𝐨𝐬 𝐝𝐞 𝐯𝐢𝐝𝐚 𝐞 𝐝𝐞𝐬𝐬𝐞 𝐦𝐨𝐝𝐨 𝐬𝐞𝐧𝐭𝐢𝐫 𝐪𝐮𝐞, 𝐦𝐞𝐬𝐦𝐨 𝐞𝐬𝐜𝐚𝐬𝐬𝐚 𝐨𝐮 𝐯𝐚𝐜𝐢𝐥𝐚𝐧𝐭𝐞, 𝐚 𝐯𝐢𝐝𝐚 é 𝐨 𝐦𝐢𝐥𝐚𝐠𝐫𝐞 𝐦𝐚𝐢𝐬 𝐞𝐬𝐩𝐚𝐧𝐭𝐨𝐬𝐨, 𝐦𝐚𝐢𝐬 𝐢𝐧𝐝𝐞𝐬𝐜𝐫𝐢𝐭í𝐯𝐞𝐥 𝐞 𝐩𝐫ó𝐝𝐢𝐠𝐨 𝐪𝐮𝐞 𝐧𝐨𝐬 𝐭𝐨𝐜𝐨𝐮 𝐞𝐦 𝐬𝐨𝐫𝐭𝐞. Com razão, James Hilmann escreveu: “Envelhecendo eu revelo o meu carácter, não a minha morte.” A velhice é um laboratório de vida presente e não só passada, uma escola onde se aprofunda o significado da esperança e do amor. Quando estes sentimentos, despidos já das contaminações do cálculo, distantes do enganador afã dos objetivos que lhe colocámos, revelam finalmente a sua natureza. O que é o amor em si, o que é a esperança sem mais — os velhos sabem-no melhor. E, contudo, resistimos tanto a perguntar-lhes, como se essa transmissão de sabedoria não nos fosse indispensável. Que os velhos se tenham tornado uma abandonada periferia — e os condicionamentos da pandemia podem ainda dramaticamente acentuá-lo — diz muito da crise interior que mina o nosso tempo.

𝐇á 𝐜𝐞𝐦 𝐚𝐧𝐨𝐬, 𝐧𝐨 𝐢𝐧í𝐜𝐢𝐨 𝐝𝐨𝐬 𝐚𝐧𝐨𝐬 𝟐𝟎 𝐝𝐨 𝐬é𝐜𝐮𝐥𝐨 𝐩𝐚𝐬𝐬𝐚𝐝𝐨, 𝐌𝐚𝐱 𝐖𝐞𝐛𝐞𝐫 𝐞𝐬𝐜𝐫𝐞𝐯𝐢𝐚 𝐪𝐮𝐞, 𝐝𝐢𝐟𝐞𝐫𝐞𝐧𝐭𝐞𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐝𝐚𝐬 𝐠𝐞𝐫𝐚çõ𝐞𝐬 𝐪𝐮𝐞 𝐧𝐨𝐬 𝐩𝐫𝐞𝐜𝐞𝐝𝐞𝐫𝐚𝐦, “𝐨𝐬 𝐡𝐨𝐦𝐞𝐧𝐬 𝐣á 𝐧ã𝐨 𝐦𝐨𝐫𝐫𝐞𝐦 𝐬𝐚𝐜𝐢𝐚𝐝𝐨𝐬 𝐝𝐞 𝐯𝐢𝐝𝐚, 𝐦𝐚𝐬 𝐬𝐢𝐦𝐩𝐥𝐞𝐬𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐜𝐚𝐧𝐬𝐚𝐝𝐨𝐬”. O dogmatismo com que hoje encaramos a produtividade, a eficiência e o consumo tornou-nos uma sociedade desligada de dimensões essenciais. Nela, os velhos perderam o seu papel social, pois deixámos de valorizar o depósito de conhecimento e experiência que representam, e passamos a apostar todas as nossas fichas numa ideia de progresso baseada na mudança contínua, sem freios nem memória.

Precisamos de nos reconciliar com a velhice. É um erro grosseiro representar os velhos como um peso: experimentam-no quotidianamente as famílias que sem a colaboração dos avós não saberiam como conjugar as vidas profissionais com a vida familiar; sabem-no as crianças e os jovens que nos mais velhos encontram disponível um bem que mais ninguém lhes oferece com aquela gratuidade: tempo; constatam-no todos os espaços de convivência humana que dos velhos recebem testemunhos de sabedoria, afeto e resiliência, pois eles felizmente têm olhos para aquilo que mais ninguém vê. O antiquíssimo Livro do Levítico recorda-nos este imperativo de futuro: “Ficarás de pé diante do que tem cabelos brancos; honrarás o rosto de quem é ancião” (Lev 19:32).

José Tolentino Mendonça
Expresso, 25.04.2020

sábado, 25 de abril de 2020

Tão longe de casa em 25.04.74...

Luanda - Grafanil - Cabinda - Belize - Cabinda - Caxito - Luanda 
 Angola de 07.03.1972 a 09.06.1974 

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Tudo, menos dinheiro...

Foto rara que juntou quase toda a minha família materna

O meu desporto favorito foi sempre andar a pé. Caminhar de cara ao sol nascente embora prefira as cores do poente. Desde menino. Talvez porque os meus pais nunca tiveram dinheiro para me comprar nem ao menos uma bicicleta rasca, quanto mais uma motorizada daquelas que tinham os outros rapazes da minha idade. Nesse tempo os carros eram coisa só de ricos. Ia por isso mesmo a todo o lado umas vezes caminhando e outras vezes andando. Não tinha outro remédio. Obviamente também para o trabalho, ainda que algumas vezes ele fosse a muitos quilómetros de distância.

Da Beirã para o Porto de Espada - 15 km para cada lado diariamente - aquando do "enroncamento" da estrada municipal que liga actualmente a aldeia dos Galegos ao Porto da Espada construída na segunda metade da década de 60, obra em que o meu pai foi um dos subempreiteiros a meter o rachão e a brita (uma espécie de alicerce antes levar o alcatrão) por conta do engenheiro Ventura. O mesmo aconteceu depois da Beirã para a Portagem para as margens do rio Sever onde andámos vários meses também a rasgar as fundações para implementar os alicerces daquela que é desde então a fresca e belíssima zona de lazer e enorme piscina natural, nas margens e no leito do rio.

Saíamos de casa às cinco da manhã a calcorrear velhos trilhos pela serra para podermos estar no local de trabalho às oito. Regressávamos pelo mesmo caminho para outras três horas de caminhada ao fim de cada jornada de oito duras horas de pá e picareta nas mãos. Quase nunca por estrada. Havia nesse tempo veredas e atalhos um pouco por toda a parte e o percurso fazia-se maioritariamente por "atravessos" entre canchos e castinceiras. Só não sei muito bem se isso encurtava o nosso caminho ou se ainda nos cansava mais por termos que subir e descer tanta pedra e saltar tantas paredes. De vez em quando, nos troços em que tínhamos mesmo que caminhar pelo alcatrão, lá passava na sua carroça algum conhecido que nos convidava (ou não) a subir. Era uma sorte rara, mas quando acontecia que bem nos sabia podermos descansar um pouco pernas e pés.

Assim me fiz homem atrás do meu pai com quem trabalhei quase sempre até ir voluntário para a tropa. Foi um tempo duro. Muito duro. Mas não raro sinto saudades desse tempo. Éramos tão mais felizes naquela simplicidade de vida. Não havia cansaço que conseguisse tirar-nos o riso da boca. E o meu pai já ia nos seus cinquenta avançados, dado que, quando eu nasci, já ele passava dos quarenta. Nunca mais voltaríamos a trabalhar juntos porque quando regressei da guerra o país estava de pantanas com a revolução dos cravos. E se quis arranjar algum trabalho tive mesmo que rumar às Minas da Panasqueira de onde transitei depois para a minha profissão definitiva, a GNR. Entretanto, o meu velho e querido companheiro de tantas jornadas, estava já na reforma.

- Aaahhh... Apetece-me tantas vezes dar um grito!

- Porque é que só avaliamos a felicidade depois de ela ter passado?

Habituei-me, por força das circunstâncias, a não temer distâncias, fosse para ir às festas do São Marcos a Santo António das Areias, à feira do São Lourenço a Castelo de Vide ou a algum bailarico pelas redondezas, onde, como todos os rapazes do meu tempo, sempre fui  arranjando algum namorico. Vezes houve em que a namorada morava numa aldeia ou lugar mais ermo e distante. Lá ia eu a meio da tarde nos domingos ter com elas para namorar, regressando noite dentro pelas veredas dos contrabandistas que eu conhecia tão bem. Fosse em noites enluaradas de verão ou naquelas mais escuras e tempestuosas do inverno, nunca o tempo, a distância ou os locais ermos por onde tinha de passar, me intimidaram.

Fui inquestionavelmente um rapazito e adolescente muito alegre e feliz. Nunca me senti inferiorizado por ser quase o único moço da aldeia que não tinha bicicleta nem motorizada. Percebia sem dificuldade que o orçamento da família era magro e por isso a prioridade tinha de ser a comida para a mesa, os trapinhos para vestir e os sapatos para calçar as seis alminhas que morávamos debaixo do mesmo tecto. O meu coração aceitava sem qualquer dificuldade as nossas limitações económicas. E na minha cabeça ficou sempre tudo isso muito bem resolvido. Sem queixumes, sem problemas existenciais e sem complexos de inferioridade.

Os meus amigos juntavam-se para irem petiscar e beber uns copitos nos domingos pelas tascas da aldeia e arredores, mas eu não podia ir. Preferia que as minhas irmãs tivessem o que lhes fazia falta. Já bastava, mesmo assim, às vezes ser tão pouco. Pegava por isso num livro (emprestado por alguém) e ia procurar a sombra de um sobreiro para me sentar a ler. Vem daí este meu vício da leitura e da escrita. Tenho absoluta certeza que devo esta maneira de ser à impecável integridade moral dos meus progenitores que souberam ensinar-nos a mim e às minhas irmãs o dever de sermos felizes com o que podemos ter, sem invejar o que têm os outros. Não só guardo no coração os seus ensinamentos como os pratiquei sempre, e, desde que comecei a ser pai, transmiti-os pouco a pouco também aos meus filhos mais pelo uso do exemplo do propriamente pela retórica das palavras.

Sempre nos disseram os nossos pais que tudo o que nos ensinavam haviam aprendido dos nossos avós. Todos, sem excepção, não sabendo qualquer deles ler ou escrever, alcançaram por inigualável mérito  uma “licenciatura” em integridade de carácter, um “mestrado” em valores e princípios e um “doutoramento” em humildade e honradez, concedidos pela Universidade da Vida. Já não vai por aqui havendo muitas das pessoas que como eu os conheceram bem. Mas os poucos que ainda há, sabem a razão que me assiste quando a eles me refiro. A minha família era humilde mas muito estimada e muito respeitada. Por toda a gente. É com enorme gratidão que ouço, algumas vezes ainda, pessoas amigas ou vizinhos, falarem deles com respeito e consideração. Por isso o imenso orgulho de ser um ramo de tão sadia árvore não cabe no meu peito e transborda pelos meus sentidos, principalmente quando a saudade me faz deles dizer,  ou escrever...

José Coelho
In "Uma herança que teve tudo, menos dinheiro"
(07.06.2015)

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Coisas qu'escrevi...

Por do sol no Vale de Ródão - Marvão - Foto José Coelho

(…)

“É o por do sol - já o disse inúmeras vezes - o meu momento de eleição de cada dia. Fico enlevado com as cores inimagináveis que por breves momentos iluminam as idílicas paisagens que me viram nascer e considero tão únicas como maravilhosas. Estranhamente a natureza fica em silencio absoluto nos instantes que antecedem o afundar do astro-rei na linha do horizonte. Acontece só por uns fugazes minutos mas é deveras surpreendente, mais ainda porque as suas cores são diferentes todos os dias. Hoje até a minha companheira, sentados os dois na nossa varanda, surpreendida com tamanho silêncio, comentou:

- Que sossego! Nem os passarinhos se ouvem!

- É verdade! Respondi-lhe. 

E continuei:

- Até o cão da Dona Rosa que parece andar zangado com o mundo inteiro a ladrar todo o dia e toda a noite, se calou!

- Que estranho!  Comentou, antes de se remeter também ao silêncio.

A luz do sol tomara entretanto um brilho alaranjado. Os canchos e o montado lá ao longe pareciam iluminados por luz artificial semelhante à dos holofotes que à noite iluminam as muralhas de Marvão. E, lentamente, foi-se extinguindo até desaparecer por completo detrás dos penedos da Senhora da Penha de Castelo de Vide. No momento seguinte a barra cinzento-escura da noite começou a aproximar-se e a cobrir os mesmos calhaus e o montado que minutos antes estavam iluminados. Sinceramente acredito que é este o momento de cada dia em que Deus desce à terra. Por isso toda a Sua criação guarda respeitosamente tão profundo silêncio.

E é também nesses momentos de tão completa harmonia que sou invadido por uma paz de espírito tão doce que é difícil de explicar. Tranquilidade íntima que instintivamente me faz fechar os olhos e dar graças por ter nascido, por estar vivo, pela minha vida inteira, pelos pais e avós maravilhosos que tive, pelas irmãs, filhos, netas, esposa e família em geral e amigos que ainda tenho, pela reforma do meu trabalho que alcancei, pela pensão mensal que permite o pão nosso de cada dia, a casa que nos acolhe, a saúde possível, enfim, um infinito rol de graças e de bendições com que fui e continuo a ser agraciado pelo Criador em cada dia do meu viver.

É mais natural em mim rezar a Deus e tudo agradecer nesses momentos, do que propriamente fazê-lo na igreja em monocórdico coro com a restante assembleia, se bem que, como é óbvio, respeito e pratico o melhor que sei os preceitos da Casa onde o Senhor se faz presente no Sacrário. Como todos quantos me conhecem sabem, sou-Lhe dedicado quase também desde que sou gente, embora prefira mesmo dar graças e orar intimamente a sós e no mais profundo silêncio desses breves instantes do dia que termina, quando tudo ao meu redor permanece na mais absoluta quietude.

Nunca repararam nisso? Então experimentem! Subam a um outeiro num dia claro, escolham um local sossegado e aguardem pelo por do sol. Até sentados na muralha de Marvão acontece esse fenómeno intrigante. Até mesmo no vosso tranquilo quintal, como eu faço no meu. Quase me atrevo a apostar que irão surpreender-se com a quietude e o silêncio que subitamente se faz ao vosso redor. São só uns breves instantes, apenas o tempo que o sol demora a tocar a linha do horizonte e desaparecer por completo atrás dela.

É algo tão sublime que quase nem nos atrevemos a respirar para que nem o "barulho" da nossa respiração possa perturbar a paz envolvente. Depois, quando nos encontrarmos por aí, contem-me como foi, se quiserem. A Vida, a Natureza e o Mundo, são maravilhosos. Às vezes nós é que não olhamos, ou olhamos mas não vemos. Eu acredito que são momentos subtilmente preparados pelo Criador para que o sintamos próximo de nós todos os dias. Mas respeito, como é meu dever, quem não acredita nas mesmas coisas que eu. Cada um sabe de si!

Tenham uma excelente semana...”

José Coelho
(in Segredos do sol poente 07.09.2015)

sábado, 11 de abril de 2020

... Somos nada!

Velho amigo que conheci cheio de ramos e folhas
Foto José Coelho - Março 2020

Quando me parecia já pouco haver na vida que me surpreendesse, eis que irrompe, vindo do outro lado do mundo, este inimigo invisível e letal que se propaga quase tão veloz como o vento indiferente a qualquer fronteira, credo, raça, cor, ou condição social.

E o Ser Humano, convencidíssimo de tudo ser capaz de dominar, de tudo saber, de tudo conseguir alcançar, vê-se subitamente impotente perante a cruel realidade que sobre si desaba tão perigosamente agressiva, atípica, difícil de combater e vencer.

Diferente das outras pandemias conhecidas e combatidas a Covid 19 veio provar em toda a linha o quanto somos frágeis e fáceis de exterminar, o quanto desconhecemos o universo de que julgamos ser donos e senhores.

Em pouco mais de um mês o mundo inteiro quase parou, oitenta por cento da humanidade refugiou-se em casa, dez por cento luta pela vida ligada a ventiladores, cinco por cento são os que na linha da frente abastecem a cadeia alimentar e serviços imprescindíveis, enquanto os outros cinco por cento tratam dos infectados que entopem os hospitais e morgues.

Maior que o medo da morte é o espanto de todos nós. Como é possível uma coisa assim? E tanta, mas tanta coisa é posta em causa. No topo delas, a pequenez e fragilidade humanas. Superpotências mundiais que todos sabemos quem são fazem gala em exibir o seu poderio militar bélico capaz de arrasar continentes inteiros, mas não estão minimamente preparadas para impedir que um minúsculo vírus extermine em massa os seus concidadãos.

Mais caricato ainda tem sido assistirmos à degradante situação de alguns desses poderosos países desviarem para seu próprio consumo aviões carregados de material sanitário destinado a outros países mais necessitados que os tinham encomendado. Roubar para matar a fome não deveria ser considerado crime em parte alguma do mundo. Mas roubar porque, como a cigarra, não se cuidou do que se poderia precisar em épocas de crise, mais que imoral, é, como alguém recentemente afirmou num contexto análogo, re-pug-nan-te.

Na fatalidade se vê quem é quem. E para além da mortandade que se abateu sobre a aparentemente frágil humanidade na forma de um invisível vírus, há que lamentar também a sua decadência em valores e princípios, o poder do dinheiro e a falta de carácter de quem, dele tendo os bolsos cheios, de tudo seja capaz. Talvez o Universo esteja a querer dizer-nos algo. Talvez este seja um sinal vermelho para todos.

Infelizmente e não sendo as únicas, a esmagadora maioria de vítimas pelo mundo inteiro têm sido aqueles que dedicaram as suas vidas ao Bem, os nossos pais e avós. Os mais velhos. Deles recebemos valores que davam prioridade à pessoa humana, ao respeito pela vida e sua dignidade desde o nascimento até à morte. Não há muitas semanas pré-pandemia Covid 19 debatíamos a eutanásia. Se calhar já não fará falta.

Não sendo velho ainda muito velho, vivi já o suficiente para ter passado por muitas vicissitudes. Melhores e menos boas. Piores e menos más. Mas nunca me dei por vencido, jamais me sentei à beira do caminho a chorar e à espera que alguém passasse para ter pena de mim. Jamais. Tal como os velhos sobreiros que conheço de toda a minha vida por estes campos que amo, afrontei os ventos por mais agrestes e violentos que tivessem sido, quebrei alguns galhos é verdade, mas permaneci de pé.

Também não tenciono render-me agora. Respeito as regras porque aprendi a ser respeitador, não por medo da morte mas porque não quero ser causa da morte de ninguém. Entristeceu-me sobremaneira esta quadra festiva longe dos que mais amo, guardarei para sempre na retina as imagens dantescas desta quaresma com centenas de mortos a serem transportados em camiões militares por falta de espaço nos cemitérios locais, ruas vazias e o silêncio ensurdecedor do Papa Francisco sozinho na imensidão daquela escadaria numa praça de Roma habitualmente a transbordar de gente.

Anda pela net um “post” do qual desconheço o autor mas que entendo hoje melhor do que nunca.

Reza assim:

“Somos instantes e num instante somos nada”

Nunca a paz fez tanto sentido. Oxalá se iluminem o coração e a mente dos tais ricos e poderosos do nosso mundo para reconhecerem que não há maior riqueza do que a vida. Para quê tanto poderio bélico se já somos tão frágeis que basta um microscópico coronavírus para sermos… 

Nada!

Tenham, na medida do possível e se possível, uma boa Páscoa.

José Coelho
11.04.2020

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Coisas que leio e releio...

Final de dia pela Beirã - Foto José Coelho

"Até domingo, em Milão

Há crentes e não crentes a partilhar a mesma solidão do Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sabia que faltavam apenas três dias para vencer a morte. O mundo inteiro só sabe que foi varrido por uma tristeza de morte.
Há uma espécie de cheiro a morte no ar. De angústia que vai crescendo, dentro de nós, devagarinho. Entrámos na semana da Paixão. E nas TV vemos filas de caixões alinhados e hospitais de campanha. Desta vez, talvez, pela primeira vez, nas nossas vidas, fazem-nos falta os coelhos, os ovos, as galinhas para nos distrairem do que acontece. Para nos obrigar a não pensar no essencial. Afinal, sem planos de viagens e férias, as festas com a família e os amigos, as amêndoas, as flores e as iguarias, que fazemos nós fechados em casa todos estes dias? Que raio era suposto estarmos a comemorar? A morte de um sem-abrigo torturado e cruelmente espetado numa cruz? Não. A inesperada boa noticia: o vencer da morte na sua ressurreição.

Agora, o mundo parou, ao mesmo tempo, para que os sinos tocassem todos a rebate aos nossos ouvidos e não nos dessem sequer tempo para enterrar os mortos enquanto tratamos dos vivos. Ficámos, subitamente, exaustos só de contemplar a exaustão. E, numa negação colectiva, remetemo-nos à lengalenga infantil do “vai passar”. Sem admitir que ou ultrapassamos o medo do túnel da morte ou nunca encontraremos a luz do seu final. Vale a pena pensar naquilo que somos.

Trump está à beira de fugir para o seu "bunker". Entregou aos militares a gestão da crise. Fez do inimigo “invisível” um novo 11 de Setembro. Agora o poder está nas mãos dos generais que tomaram de assalto os próprios hospitais. Em poucos dias, mais de 10 milhões de americanos perderam o emprego e algumas cidades fecharam, com placards de madeira, as montras das lojas temendo assaltos e atos de vandalismo. As ruas de Nova Yorque estão vazias. As gôndolas de Veneza acostaram aos cais desertos. E, em plena Semana Santa, não haverá missa nem procissões em Sevilha.


A França estrebucha e confirma a recessão. A queda da riqueza nacional ultrapassou, no segundo trimestre, a registada no período homólogo de 68. Só em plena guerra se encontram números semelhantes. Na Grã Bretanha, o problema deixou de ser o das consequências do Brexit. Com o primeiro-ministro nos cuidados intensivos, a máquina vira-se para a produção de máscaras e ventiladores. Uma espécie de novos carros de combate.

Na Hungria, Victor Orban viu, na pandemia, a sua oportunidade de suspender, sine die, a frágil democracia. Governará, por decreto, durante o estado de emergência que ninguém sabe quando acabará. A Assembleia Nacional está suspensa e não poderá ter nenhuma palavra a dizer. A mordaça que já fazia perigar a liberdade de expressão é agora oficial.

No Brasil, um louco governa enquanto a ordem nas favelas é imposta pelos traficantes mas o “bicho com uma coroa de patas vermelhas” já começou a atacar e não teme os homens do BOPE nem as armas dos traficantes. Os pobres que vivem da economia informal são obrigados a escolher entre a doença ou a fome. Perdidos por cem, perdidos por mil. Percebe-se a recusa ao confinamento dos sem teto.

Tudo isto no mundo ao mesmo tempo? Tudo agora, aqui, nos mesmos dias.

E todos nos perguntamos: como é possível? De repente, não nos podemos abraçar, mas o planeta sofredor mostra-se na súbita convulsão como uma casa verdadeiramente comum.

Nem a morte pode ser celebrada. Os moribundos, rodeados de gente e máquinas que tentam tudo para lhes salvar a vida, acabam por morrer sozinhos. As portas dos hospitais são entradas para uma espécie de labirinto onde alguns se perdem sem garantia de encontrar saída. Seguirão nus, hermeticamente fechados, em sacos de plástico, directos para o forno crematório. Ninguém poderá passar-lhes a mão na face gelada numa última carícia. A família não poderá vê-lo uma última vez. Até o luto se tornou mais difícil e cruel e parece que o chão foge. As Igrejas fecharam as portas. E há uma dúvida pequenina como o virús a fazer o seu caminho: Por quê? Para quê? E, já agora, o que deveríamos estar a celebrar?

O condenado morto na cruz para gáudio da soldadesca Romana e sossego das elites dirigentes. Desprezado pela populaça e abandonado pelos amigos. Desacreditado. Volta-nos à memória.

Sem coelhos nem galinhas ou ovos para caçar que nos distraiam. Parece que o mundo inteiro entrou numa agonia lenta mergulhado num ambiente precoce de Sexta-feira Santa. E sem esperança na Ressurreição tememos que o Domingo não chegue ou venha demasiado tarde.

Isto vai passar! Mas o Domingo está longe, longe demais. Tememos que não chegue.

Há crentes e não crentes a partilhar a mesma solidão do Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sabia que faltavam apenas três dias para vencer a morte. O mundo inteiro só sabe que foi varrido por uma tristeza de morte.

As TV debitam estatísticas e cada vida é um número: mais de um milhão de infectados, centenas de milhares de mortos. Entre a azáfama dos médicos e dos cânticos solidários às varandas uma imagem retemo destes dias. Um velho vestido de branco, cambaleante a atravessar a praça de São Pedro deserta, batida pela chuva e pelo vento a subir uma escadaria em direção à mesma imagem do crucificado a que os romanos pediram com fé que livrasse a cidade da peste.Conseguiram.

No verdadeiro Calvário, há dois mil anos, só ficaram os cépticos que lhe prolongavam a agonia com desafios humilhantes: “Salvou os outros e não consegue salvar-se a si próprio?”, os guardas, algumas mulheres e o discípulo João a quem Jesus entrega a sua mãe. Pedro que o tinha negado fugiu com os outros dez. Judas que o tinha entregue abandonou-o também em desespero.

O Papa Francisco, o velho de branco, sucessor de Pedro, levava às suas costas as nossas dúvidas que Cristo partilhou na sua agonia. Pai, Pai, porque Me/nos abandonaste. E depois permaneceu sozinho em oração. Na praça fria, escura, debaixo de chuva. Curvado perante o próprio Deus presente na Custódia do altar.

Lembrou aos crentes o infinito poder da oração. Atravessou depois sozinho a catedral vazia levando com ele a presença real de Cristo entre nós. “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” foram as últimas palavras do crucificado que a Páscoa nos recorda. E o velho solitário vestido de branco é uma imagem que representa bem a fragilidade de cada um de nós. Crentes em Deus, em deuses ou em nada.

As Igrejas estão fechadas. Mas Domingo às 18 horas, no You Tube, o mundo vai poder unir-se pelo canto em oração. Andrea Bocelli estará sozinho na catedral de Milão a cantar para Deus. Não cantará apenas. Rezará também emprestando-nos a sua própria voz. E seremos milhões. E os cristãos saberão que no próximo Domingo não seremos apenas “dois ou três reunidos em seu nome” na catedral vazia. Milão vai pulsar em uníssono com o coração do mundo".

Graça Franco
08.abr.2020
RRenascença

terça-feira, 7 de abril de 2020

Pandemia de vírus (e de egoísmos também)

Topo da Rua Fernando Namora - Beirã
Foto José Coelho

Sei hoje, melhor que nunca, no meio desta crise tremenda, quanto devo aos meus santos pais e avós. Tudo o que eles foram e me ensinaram na sua simplicidade, no seu dia a dia, na pureza imaculada dos seus corações que sempre lhes permitiu serem felizes com o que tinham sem invejarem quem tinha mais do que eles. Tudo o que neste preciso momento num mundo assolado por esta pandemia letal me está a ser tão útil, necessário e proveitoso.

Também eles passaram por maus bocados. Duas guerras que devastaram o mundo e espalharam miséria por toda a parte, a guerra civil logo aqui ao nosso lado a provocar refugiados, que, pela calada da noite para não serem vistos ou capturados, lhes batiam à porta a suplicar um pedaço de pão, que eles, pobres entre os mais pobres, sempre ajudaram, apesar do pouco que também tinham para si próprios. Também eles, no seu tempo, passaram por algo parecido com o que está a suceder-nos hoje, uma epidemia então chamada “gripe espanhola”.

E sobreviveram, assim como todos os seus valores e princípios.

Tão grave como a actual pandemia foi o egoísmo atroz que se apoderou subitamente de muita gente. Corridas aos supermercados a açambarcar tudo o que vinha à mão sem qualquer critério de prioridades, como se o problema fosse a falta de alimentos em vez dum vírus que contagia, infecta e mata a eito. Cinquenta bifanas, cinquenta costeletas, cinquenta pernas de frango, cinquenta latas de atum, cinquenta pacotes de leite, de arroz e massas, cinquenta rolos de papel higiénico, uma caixa inteira de frascos de álcool… e… setecentos euros na caixa registadora.

Para mim já tenho, os outros que se danem!

Gente sem o menor respeito pelo próximo, gente que só sabe olhar para o seu umbigo e se está a marimbar para as mais elementares regras de civismo e de vivência em comunidade. Pior que qualquer vírus é constatar que estamos rodeados de pessoas que não valem nada enquanto seres humanos, que se comportam pior que os javalis dos matos porque esses só a fome os faz serem predadores. Jamais havia imaginado quão rude, primitiva e sem carácter é alguma dessa gente. Dou graças porque fui ensinado desde o berço e aprendi a nunca proceder assim.

Ficámos em casa tranquilos, cientes de que não nos faltaria o suficiente para sobrevivermos sem passar fome e sem qualquer necessidade de armazenar produtos que poderiam fazer falta na mesa de outras pessoas. Pensar no próximo é um dever, uma obrigação, uma atitude de cidadania e de respeito para com todos. É nestes momentos que se percebe o melhor de algumas pessoas e também, infelizmente, o pior de muitas outras. Presunção e água benta cada um toma a que quer. A carapuça só serve a quem a enfiar, contudo, o maior aprendizado nesta grave situação é constatar-se que quanto mais humildes são as pessoas mais manifesta é a sua integridade de carácter e a generosidade no seu coração.

Como se não fosse já suficientemente mau o que vemos acontecer à nossa volta, assistimos ainda a outros actos de censurável egoísmo amplamente difundidos nos meios de comunicação social que denunciam alguns dos países mais ricos (e supostamente amigos) que “desviaram” do seu percurso alguns meios indispensáveis para salvar milhares de vidas noutros países mais pobres a braços com a falta desses meios entretanto sorrateiramente desviados. Nem a lei da selva é tão desumana e ultrajante. Enfim, é o que temos, é o salve-se quem puder, é o espelho de uma Humanidade à beira de perder (quase) todos os seus valores e mais elementares princípios...

José Coelho
07.04.2020

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Coisas que leio e releio...

Imagem copiada da RTP 1

"POSTAL DO DIA

António Ramalho Eanes: um grande homem

1.
António Ramalho Eanes dá muito poucas entrevistas. Fala quando acha que é absolutamente necessário. Leva à letra a sua responsabilidade perante o país – responsabilidade de quem assumiu ao longo da vida vários combates em que se notabilizou pela coragem física, pela liderança e por fim pelo exemplo de ética e por um outro tipo de coragem hoje em declínio, a coragem moral.

2.
O ex-Presidente da República deu ontem uma entrevista a Fátima Campos Ferreira, na RTP. Ao contrário do que lhe foi proposto decidiu conversar cara a cara nos estúdios, não através de qualquer plataforma vídeo ou protegido na sua casa. Para ele, um líder deve assumir não apenas o que diz, mas também o que faz e a forma como o faz. Para ele era inconcebível não estar no estúdio que, no seu modo de ver, representa as escadarias da Ágora, lugar onde os gregos antigos se reuniam para discutir o bem comum. Ele tinha coisas para dizer ao país e a sua imagem em casa diminuiria aquilo que tinha de ser dito.

3.
O General Eanes disse várias coisas importantes. Mas uma tornou-se incontornável e ajudará a construir mais uma pedra num edifício que ele e Manuela Eanes deixarão como herança. Depois de apelar veementemente aos mais velhos para ficarem em casa, um apelo dito com a gravidade que se impunha, deixou esta frase: "Nós os velhos já passámos por isto e temos de dar o exemplo. Se chegarmos ao hospital temos de ceder o ventilador ao homem que tem mulher e filhos".

4.
É sempre arrepiante quando vemos alguém com a estatura moral de Ramalho Eanes. Aconteceu o mesmo quando abdicou dos retroativos de uma reforma de general que era sua por direito ou a promoção a marechal que recusou por uma questão de princípio – quantos de nós fariam isso? E quantos de nós, mesmo com a idade de Eanes, estariam disponíveis para oferecer o seu ventilador a uma pessoa ao lado? Porque nem por um segundo deveremos duvidar que António Ramalho Eanes está a falar a sério.

5.
Ele é um grande português. Um dos maiores dos últimos 100 anos.

Quando subiu para o tejadilho de um carro e deu o corpo às balas, em 1975, criou as condições para a normalização democrática.

Enquanto Presidente da República, sendo militar de carreira, foi capaz de criar as condições para que a democracia se cumprisse. Foi também na sua presidência que se evitaram excessos à direita e à esquerda.

Foi depois da sua presidência que decidiu tirar o doutoramento e fê-lo com um enorme sentido de humildade – “o importante é fazer o melhor possível até ao último dia e aprender, aprender sempre” disse-me um dia.

6.
António Ramalho Eanes tem 85 anos. Não será eterno, nenhum de nós o é. Mas há pessoas mais eternas do que outras e ele estará certamente nesse restrito grupo. Foi muito bom escutá-lo ontem. Fiz silêncio durante aqueles minutos, fizemos lá em casa. Um orgulho ser português e poder partilhar o amor pelo país com pessoas como ele. Pessoas maiores que morreriam por mim (e por si) se precisasse de um ventilador.

LO"
(Luís Osorio)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

#euficoemcasa

 Foto José Coelho

Gosto da minha casa. Mal o dia começa a clarear por volta das cinco e meia, imediatamente uma suave penumbra se espalha por todas as divisões. Estrategicamente concebida pelo senhor meu pai com as frontarias traseira e dianteira voltadas a nascente e a poente respectivamente, ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma a norte e a outra a sul para melhor resguardo dos frios de neve ou ventos suões. Mais tarde, quando a comprei e ampliei, fiz também questão de, como ele, aproveitar ao máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz de ponta a ponta.

Por isso desde nasce o sol até que o lusco-fusco o apaga e apesar das sólidas venezianas nas janelas, todo este meu reino de paz e harmonia é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as persianas, nem os cortinados, conseguem impedi-lo de entrar. E a sua luz assim filtrada cria uma semi-obscuridade, um ambiente de tranquilo e agradável aconchego. Cada pormenor da pequena casa original foi imaginado e concebido pelo meu pai, cada pormenor do casarão em que se transformou na sua inevitável ampliação, foi imaginado por mim.

Por isso lhe assenta tão bem o nome que lhe dei de Toca dos Coelhos em honra do seu original “arquiteto”prontamente aprovado pelos meus filhos, seus herdeiros legítimos. Nada na minha vida foi alguma vez por acaso. Nada. Tudo teve sempre um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. Nem sequer ficar com esta casa foi ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu andava em vias de negócio com outra no bairro novo da aldeia, chamou-me à parte para me perguntar:

- Que andas tu a fazer?

- Ando a ver de casa para comprar, Pai! Respondi-lhe.

- A tua casa vai ser esta! Afirmou convicto. 

E prosseguiu.

- O teu cunhado – disse o nome – já se mostrou interessado em ficar com ela, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa seja para ti.

Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos falado tal coisa e muito menos imaginava que havia até já um candidato à aquisição dos parcos bens, porquanto os seus queridos proprietários tinham ainda muita vida pela frente. Jamais fora equacionada sequer tal hipótese.

Ainda assim, contestei:

- Pai fico-lhe muito grato pela sua preferência mas não posso ficar à espera que o Pai e a Mãe morram, para ter a minha casa. Moro numa do Estado à qual tenho direito pelas funções que desempenho, mas, no dia em que deixar de as exercer, perco o direito de lá morar e dão-me trinta dias para de lá sair. Quando esse dia chegar, quero ter já a MINHA para me acolher, à minha mulher e aos meus filhos...

- E por isso mesmo, ando à procura.

Entendeu o meu Pai, perfeitamente, as minhas razões. Mas não desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria quanto antes fazer. E fez. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três genros, a nora e todos os netos, para, literalmente, determinar o que tinha na ideia. Trespassar a casa ao filho pelo valor de 600. 000$00 – seiscentos contos – o qual teria que dar a cada irmã a quantia de 150. 000$00 – cento e cinquenta contos – ficando, obviamente com a sua parte. Para ele Pai e para a nossa Mãe, só punha como condição morarem connosco enquanto vivessem. Todas as condições foram apenas verbais. Na nossa família valeu sempre mais a palavra dada do que qualquer escritura de notário.

Assim se disse, assim se cumpriu.

Nenhuma das minhas irmãs ou cunhados se opôs às decisões e condições do tão querido como respeitado patriarca, e, em poucas semanas, foram marcados os actos oficias necessários à escritura para mudança de proprietário. Foi assim que, sem nunca sequer ter imaginado tal coisa, me tornei no novo dono das paredes que assistiram ao meu nascimento e ao das minhas duas irmãs Maria da Luz e Joaquina Maria – porque a Adelina já tinha nascido quando a casa ficou pronta – assim como foi também entre as mesmas que o Avô Faustino Coelho, ele próprio meu querido Pai, bem como a Mãe da minha Mãe a Avó Amélia, partiram para a sua última viagem.

Aqui se mantêm por isso guardadas as minhas mais valiosas memórias e por isso tive o cuidado de não tocar numa só pedra das divisões originais da casa quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande parte da minha vida e dos meus entes queridos. Se depender de mim aqui quero terminar algum dia também o percurso que iniciei numa fria madrugada de um já distante Março.

Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm...

José Coelho in Lar, doce lar
(republicado com ligeiros acertos)