quinta-feira, 30 de junho de 2022

É tão... tão... inexplicável

Quintal da Toca dos Coelhos - Foto José Coelho

Já não era dia, mas também ainda não tinha anoitecido completamente quando fui ao quintal verificar se estava tudo em ordem ao redor da casa, assim como fechar as portas da cozinha-fumeiro e do forno, porque tenho lá pendurados numa vara suspensa das vigas do telhado quatro molhos de alhos, um belo braçado de loureiro e ainda as favas para semente, a secarem como deve ser à sombra, mas com a porta aberta todo o dia para entrar o ar que irá deixar tudo com o aspeto sadio e duradouro das coisas caseiras bem tratadas.

Imediatamente fui rodeado pela suave luminosidade do lusco-fusco e do tal absoluto silêncio de findar do dia, de que tantas vezes vos falo. Impressionante como as alvoradas podem ser tão animadas com o alegre e movimentado despertar da natureza inteira, mas como tudo se recolhe e emudece com a aproximação da noite. Simplesmente maravilhoso. Senti como sinto sempre que, se existir o tal Céu para onde dizem que vão as almas boas, só poderá ser assim. A oriente, o azul-turquesa da noite a aproximar-se. A ocidente e sobre o telhado da casa, um vermelho-alaranjado deixado pelo sol-poente.

Já fui mais crente do que sou hoje, mercê de tanta maldade sobre o Mundo onde habito, tanta coisa ruim a suceder em catadupa e cada uma mais inquietante do que a anterior. A ingenuidade de acreditar que o sofrimento redime o pecador, tem sido substituída por uma descrença galopante e provada pelos sucessivos, indesmentíveis e ainda mais incompreensíveis factos que nos entram olhos dentro todos os dias. Ainda assim continuo a sentir no mais fundo do meu íntimo um cada vez mais ténue reflexo daquela fé que me acompanha desde que me lembro de ser gente, mas cuja convicção é cada vez menor.

Contudo, nestes quase indescritíveis momentos a sós com o universo, envolto no mais absoluto silêncio num mundo muito meu e muito particular, sinto uma tranquilidade, uma leveza, uma harmonia e uma paz tão reais, que quase posso tocar-lhes com os dedos das mãos. Tão grande é a sua intensidade e encanto. São momentos que valem... por uma vida inteira. Harmonizam desequilíbrios emocionais que me afetam, reconstroem carências afetivas que me atormentam, aproximam-me de todos os entes queridos que habitam permanentemente na minha saudade. 

É algo tão mágico, tão doce e tão inexplicável, que em muitos destes momentos ao longo da minha vida, ingenuamente pensei e acreditei que aquelas magníficas cores no céu, o silêncio e a quietude que nem a aragem tenta mover as folhas das árvores, só podem ser... a Natureza inteira a saudar o seu Criador. Tantos tombos já dei, tantos pontapés levei, tantas decepções apanhei, mas continuo a não encontrar uma explicação melhor, mais plausível, mais explícita e entendível, para "isto" que hoje ao fim do dia e uma vez mais me rodeou, me arrepiou e me encantou... 

José Coelho
30.06.2022

O meu poeta preferido


 Alentejo 


A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar

Miguel Torga


Painel de azulejos pintado à mão para o alpendre da varanda
do 1º andar da Toca dos Coelhos - Beirã.

Maturidade é...

... viver em paz com o que não se pode mudar.
Selfie José Coelho - 30.06.2022

E a vida continua

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Muitos

Há dias em que não consigo conter a nostalgia de uma vida plena de dedicação e entrega à Causa Pública, pela qual tantos obstáculos tive de superar. Hoje é um deles.
Foto do ano de 2003, prestes a terminar essa minha honrosa Missão.

Bora lá!

Cartaz publicado pelo Município de Castelo de Vide

terça-feira, 28 de junho de 2022

Boa noite de S. Pedro

Selfie José Coelho

O resultado do que fazemos, espera por nós mais adiante!

Um dia mais é também um dia a menos

Sol-nascente observado da Toca dos Coelhos
Foto José Coelho

Acordei cedo como sempre. Muito cedo. A casa dos meus sonhos foi na íntegra por mim concebida cheia de janelas e com as mais amplas viradas a nascente. Por isso logo que a aurora começa a clarear por terras d’Espanha atrás da Anta e da Murta, a sua suave luminosidade filtrada pelas persianas e cortinados – associada ao cantar dos também madrugadores galos da vizinhança – fazem-me despertar. Claro que não me ponho logo a pé a essa hora, embora já não consiga dormir mais. Deixo-me ficar sossegado para não acordar a “patroa” enquanto vou apreciando o despertar de toda a natureza que rodeia estes meus domínios.

O metálico debicar dos pardais na caça aos insetos para o pequeno-almoço da sua prole no algeroz onde já uma vez construíram um monumental ninho, vingando-se talvez por eu não ter permitido que o construíssem nos tubos do motor do ar condicionado, no verão anterior. Também pelas redondezas vive há muitos anos um numeroso bando de rolas turcas que nidificam no arvoredo – o ano passado até na nossa laranjeira – e pousam nos telhados ou nas chaminés onde cantam, cantam, cantam, de manhã à noite, atentas às sementes e besouros pelo quintal, bem como aos baldes de água fresca, onde vão beber à vez.

Ah! E chegaram já também os famintos estorninhos que chiam como ratos e devoram os primeiros figos-lampos da figueira, sem os deixarem sequer amadurecer!

Longe vai o tempo em que tinha de me levantar às seis da manhã para cortar a barba, tomar duche e o pequeno-almoço antes de marchar às minhas obrigações profissionais. Muitos dias houve também que, em função das mesmas, o nascer do dia era exatamente a hora em que a minha ronda noturna terminava. Aí então, em vez de acordar, era essa a hora de deitar e dormir.

Por isso agora é o tempo de descansar e desfrutar desta paz e tranquilidade dos meus dias, naquele que para mim é também o melhor lugar do mundo. A Toca dos Coelhos. Aqui nasci, aqui passei inquestionavelmente os momentos mais doces da minha vida, aqui me despedi para sempre dos entes mais queridos, aqui tenho a grata bênção de agora envelhecer. Se não tenho uma vida perfeita, porque acho que ninguém tem, é seguramente a vida menos má que poderia ambicionar.

Os problemas – principalmente de saúde – são idênticos aos de tanta outra gente que conheço com as mesmas limitações e constrangimentos, minimizadas quanto possível, mas sempre aceites com ânimo e resignação. Queixumes não adiantam porque nada resolvem, por isso vou vivendo, desfrutando e agradecendo, um dia de cada vez. Mesmo com limitações, entendo a Vida como um dom valioso que me foi concedido e que tenho o dever de aceitar e fazer valer a pena. Até mesmo os dias mais difíceis. Nem sempre é fácil, nem sempre consigo estar alegre e bem-disposto, mas todos os dias tento superar o que me puxa para baixo, levantar a cara e enfrentar decididamente aquilo que me perturba.

O perigo que vivemos é a mais evidente prova do quão somos impotentes perante a força da natureza e que nunca saberemos do que ela é capaz para se defender de tantas agressões e nos remeter à nossa insignificância. Deveríamos ser mais cuidadosos com ela e respeitar os seus ciclos naturais, sem os corromper abusiva e constantemente. A pandemia foi uma tão contundente como letal resposta à irresponsável ousadia de o ser humano achar que pode fazer tudo, alterar tudo, substituir tudo. 

Não pode.

Andamos – acho eu – a mexer há demasiado tempo com aquilo que não devemos e a caminhar para a autodestruição. Nunca, jamais ou em tempo algum, o Homem conseguirá substituir a Natureza. Poderá imitá-la, poderá substituir alguns dos seus efeitos por outros similares, mas nunca conseguirá superá-la. E de tanto ousar, vai perder o controle e sofrer as consequências. Quiçá o Covid 19 seja apenas um começo. Sem qualquer pretensão de me julgar mais perfeito que os demais, tenho, no entanto, plena consciência que sempre a admirei e respeitei.

Sou provavelmente um dos seus mais fiéis seguidores e admiradores. Que o digam os milhares de imagens do meu acervo fotográfico onde mais de noventa por cento são a fauna, a flora, as paisagens rústicas e ambientais, o céu azul ou nublado. Para mim as cores do por do sol são a obra-prima mais incrível que se pode contemplar, a magnificência do Mundo em todo o seu esplendor.

Mas também acho imponentes as cores da aurora até o astro-rei se elevar na linha do horizonte. Curiosamente, o nascer do dia traz consigo o despertar de toda a vida sobre a terra, enquanto o por-do-sol a emudece por completo. Poucas coisas raras das que conheço, admiro mais do que a essa.

Ao acordar, tenho por hábito agradecer sempre mais esse dia de vida. E de igual modo, antes de adormecer, o dia vivido. Não o faço por beatice, mas por absoluta convicção desse dever de gratidão. Ser grato, atento e disponível, fazem, sempre fizeram, parte do meu ADN. Vivo por isso cada dia como se fosse o último, serenamente, não por ser agora muito recomendado em virtude da pandemia, mas porque sempre assim pensei e porque entendo que cada dia que amanhece e soma mais um à nossa vida, é, simultaneamente, menos um no total daqueles que temos destinados para completar o nosso ciclo terreno de vida. Essa deve ser seguramente a mais precisa e imutável equação de cada ser vivo. Nunca se esqueçam dela. E procurem ser felizes, mesmo quando for difícil alcançar o que acham ser necessário para o conseguirem.

José Coelho

Nota: Escrevi este texto em 28.06.2020 em plena crise pandémica. Ninguém imaginava que estava também iminente a guerra na Europa.

Pensamento do dia

domingo, 26 de junho de 2022

É o que temos

Selfie José Coelho

"O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses".

José Saramago 

sábado, 25 de junho de 2022

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Só me faltou até hoje, acertar na chave do euromilhões

A Estação da Beirã a aguardar a chegada do Lusitânia
Foto Pedro Coelho - Dezembro 2010

"Com o fim do comboio regional de passageiros no Ramal de Cáceres, anunciado para daqui a poucos dias, encerra também o melhor capítulo da vida de muita gente. Vou, a título de mero exemplo, cingir-me só ao que a mim próprio diz respeito, porque nasci a ouvir o silvo rouco daquelas então velhas máquinas negras fumarentas de grandes rodas e manivelas gigantescas movidas a vapor, que, ao chegarem muitas vezes à estação, enchiam tudo de um nevoeiro quente e húmido que se estendia por toda a parte baixa da aldeia quando tinham que descarregar o excesso de pressão acumulada no percurso.

A minha casa fica num alto sobranceiro à Estação a menos de cem metros em linha reta, a qual posso ver das janelas traseiras da casa ou do quintal, de dia e de noite, porquanto os holofotes que iluminam todo o seu perímetro, rasgam a escuridão e refletem a sua poderosa luminosidade por toda a colina, até ao depósito das águas que abastece a povoação, lá bem no alto. Mas não só. Toda a minha vida é um mar de boas recordações. Mal sai da estação de Valência de Alcântara no país vizinho, poucos quilómetros percorridos assoma a via-férrea ao alto do Sesmo antes de entrar em Portugal. E logo o potente rugido das máquinas se anuncia ao longe, fazendo-se ouvir no meu quarto, desde que me lembro de ser gente.

Do outro lado da nossa casa a oriente, onde se situa o quarto que sempre foi dos meus pais, era comum ouvi-los comentar:

- Vem aí alguma mudança de tempo. Esta noite ouviam-se os comboios assim que assomavam à curva da Atalaia!

O comboio era um relógio, porque tinha horas certas para chegar ou para partir, assim como a intensidade do barulho que ao longe fazia trazido pelo vento, era um boletim meteorológico muitas vezes certo, das gentes simples do campo.

Também a casa dos meus avós maternos se situava ao lado da passagem de nível da Cavalinha, nas traseiras da Caseta dos Assentadores da CP cujas esposas eram suas guardas que tinham por missão fechar e abrir as cancelas para a passagem segura das inúmeras composições de mercadorias ou de passageiros que circulavam dia e noite.

Menino de tenra idade, entregava-me a minha mãe algumas vezes ao cuidado do meu avô Zé Lourenço, para ir com a minha avó Amélia sachar milho, ou outros trabalhos no campo, próprios das mulheres desse tempo. E lá andava eu todo o dia com ele por aquelas tapadas de um e do outro lado da linha a ver os comboios passar e a saltar de pedra em pedra, a ouvir “as meninas a cantar” que ele dizia ser aquele zumbido cacofónico que se percebia ao encostar o ouvido aos postes dos fios telefónicos existentes ao longo da via-férrea, enquanto o avô "ouseava" as ovelhas.

E depois…

Bem… Depois, a ida a Évora no comboio quando aos 17 anos de idade me ofereci voluntário para a tropa e fui chamado à Inspeção Militar ao RI 16 na Cidade-museu, numa viagem de várias horas e outros tantos transbordos, o primeiro na Torre das Vargens para a estação de Portalegre e ali de novo para Estremoz e Évora. Foi uma aventura e tanto. Depois, ao longo de muitas décadas, as incontáveis viagens com o comboio sempre aqui à porta, a levar-me na ida ou a trazer-me na volta. Elvas como recruta, Lisboa como especialista, Estremoz novamente já mobilizado para Angola, Santa Margarida a aguardar embarque para a guerra, e finalmente para me devolver à Beirã e à minha gente são e salvo 37 longos meses depois.

Foi o comboio que me levou em 1975 para a Beira Baixa, via Abrantes, Castelo Branco e Fundão, com destino às Minas da Panasqueira. Nele tive sempre o mesmo transporte seguro e pronto, quase à porta. Para qualquer parte do país e pelo Ramal de Cáceres que sempre dispôs de excelentes acessos para muitos e diversificados destinos, bastando para isso aceder à Torre das Vargens, a Abrantes, ao Entroncamento ou a Lisboa. De manhã à noite, eram várias as opções de escolha nos horários de partida ou de chegada e dias havia que a partir da estação de Castelo de Vide já não havia lugares sentados vagos, pelo que se tinha que viajar de pé nas coxias e corredores das carruagens.

Mais tarde, quando, em função das minhas pretensões de ascender na carreira profissional, uma vez mais, durante três longos e consecutivos anos, viajei semana após semana no comboio de Castelo de Vide para a capital onde frequentei os respetivos cursos de promoção no Alto da Ajuda, rumando depois a São João da Madeira e ao Porto como estagiário, sempre com a excelente comodidade de poder viajar todas as semanas para onde quer que necessitava deslocar-me. E como eu, milhares de passageiros de toda esta região. É inacreditável que hoje, passadas pouco mais de duas décadas, isto esteja a acontecer. Suprimir o serviço regional de passageiros no Ramal de Cáceres é, por outras palavras, encerrar este serviço público definitivamente. Não tenhamos ilusões.

Restará, daqui nem diante, o Lusitânia Comboio-Hotel que utilizará este percurso duas vezes ao dia – ou à noite – entre Lisboa e Madrid e vice-versa.

Até quando?

Todos nós sabemos. Mal se inaugure o tão badalado TGV, o Lusitânia deixará de ser necessário. E o Ramal de Cáceres encher-se-á de silvas e mato em todo o seu percurso. As suas lindíssimas Estações definharão até caírem e a memória de um povo que esteve ligado a tudo isto durante quase um século e meio, desaparecerá inexoravelmente na bruma do tempo. É verdade que neste momento talvez não seja rentável. Mas porquê? Serão os serviços oferecidos pela CP eficientes? E se, em vez de suprimirem este serviço regional de passageiros para suprimirem eventuais prejuízos, porque não suprimem antes alguns "tachos" na Administração da CP mais os seus chorudos ordenadões, mais os carros topo de gama com motorista e um nunca mais acabar de mordomias que, isso sim, é o que causa ainda maiores prejuízos à empresa?

Vendo as coisas por outro prisma ainda, não pagam as populações desta esquecida zona do nosso país os seus impostos como todos os outros? Então, porque têm que os Marvanenses, os Castelovidenses, os Cratenses ou os Nisenses de contribuir com os seus impostos para pagarem auto-estradas que não atravessam os seus concelhos, pontes sobre Tejo, Douro ou Guadiana que pouco ou nada acrescentam ao norte-alentejo e muitas outras obras faraónicas que servem só quem vive lá perto, mas não há uns míseros euros para manter a porra de uma automotora que sirva nem que seja só a minha vizinha Júlia que tem a sua filha e os seus netos a viverem nas Caldas da Rainha, é viúva, já entrada na idade e não tem outra forma de se deslocar para ir visitá-los?

Ou será que...

Os habitantes destes municípios NÃO SÃO PORTUGUESES como aqueles do litoral ou das outras grandes metrópoles onde se faz tudo e mais alguma coisa, nem que para isso os governos tenham que se endividar até aos olhos?

Ou ainda que...

Nós por cá só somos cidadãos como os outros, quando é preciso encher urnas com votos? 

José Coelho - 27.01.2011" 


Post Scriptum

Este “desabafo” foi por mim publicado no início de 2011 num blogue meu que já não existe, quando se soube que o serviço de passageiros no Ramal de Cáceres ia ser suprimido ficando apenas a ligação Lisboa-Madrid pelo Lusitânia Comboio-Hotel. Tal como eu já previa e temia, esse derradeiro serviço foi completamente suprimido e a ligação Lisboa-Madrid com o Lusitânia mesmo ainda sem TGV passou a efetuar-se por Salamanca dali a pouco tempo. O Ramal de Cáceres foi completamente desativado algumas semanas depois.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

S. João 2022


A imagem de S. João Batista existente no Batistério da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Beirã a presidir aos batismos de todos os Beiranenses que, como eu, ali foram batizados a partir do dia 16 de julho de 1953.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Boa noite, fiquem bem

Até amanhã!

Coisas que leio e gosto

Selfie José Coelho

Hoje em dia quase ninguém erra. São tão perfeitos. Tão incríveis. Tão vencedores. Tão evoluídos. Tão exemplares. Sempre com um conselho na ponta da língua. Sempre com uma opinião formada sobre tudo. Eu sinto falta de pessoas reais. Sinto falta dos que confessam as suas falhas e medos. Sinto falta das pessoas que sentem e demonstram. Sinto falta de quem ainda está a aprender. Pessoas artificiais não me interessam. Há um brilho único naqueles que vestem apenas a humanidade. Há uma beleza incomparável naqueles que não se escondem na mentira da perfeição.

Bruno Missurino

De pé, vencendo rasteiras

AIP/GNR/ PORTALEGRE - OUTUBRO1993/NOVEMBRO2003

O teste de topografia – aquele em que fui desclassificado – correra-me muito bem. Tenho ainda hoje e passados todos estes anos, porque tais injustiças nunca se esquecem, a noção exata do que fiz. Não deixara nem uma só pergunta sem resposta, logo, era impossível uma classificação tão baixa, até porque, com alguma sensatez, nunca, em teste algum, respondia a nenhuma pergunta, sem ter a certeza de aquela ser a resposta correta. Se alguma dúvida ensombrava o meu espírito passava à frente deixando a resposta em branco e continuava a responder às questões que se seguiam até à última. Só depois voltava de novo atrás para tentar responder àquelas que deixara em branco, porque, inúmeras vezes, as questões seguintes tinham alguma coisa a ver com as anteriores e com isso ajudavam a um melhor raciocínio.

Quis muitos anos depois o destino que a última década da minha carreira profissional fosse passada como instrutor de futuros guardas, onde tive oportunidade de ver, em pormenor, quão justos e imparciais eram sempre os critérios para classificação de quaisquer testes escritos, em todas as provas dos cursos de formação. Cada um deles era concebido para o seu todo resultar numa média aritmética de valores na escala de zero a vinte, distribuindo-se os mesmos equitativamente pelas questões a resolver, raramente ultrapassando a fasquia de 1,5 valores cada resposta certa.

Corrigi milhares de testes nesses dez anos e sei por isso que naquele em que me passaram de 17 para 13 valores inesperadamente, tendo, como tenho até hoje, a convicção exata daquilo que fiz, jamais poderia haver uma quebra de 4 valores, exatamente os mesmos que eram aritmeticamente necessários para que outro camarada – que nada teve a ver com isso, como já referi – passasse de 2º para 1º classificado. Foi tão óbvio que toda a gente deu por isso, a começar pelo próprio beneficiado que sempre fez questão de o afirmar.

Fiquei assim a conhecer as filha-de-putices de que muita gente é capaz. Fiquei também a saber o que se sente quando somos humilhados, injustiçados, perseguidos e caluniados por pessoas que não demonstram em nada serem melhores do que nós, sendo a razão da sua força apenas o poder institucional em que estão investidos, os galões ou divisas que ostentam nos ombros e os cargos que ocupam, dos quais fazem, demasiadas vezes, indevido e impune uso.

Quem dera que muitos dos novos e inexperientes guardas e polícias que há por esse país fora, conseguissem ser fortes o suficiente para aguentarem a pressão tremenda das injustiças de que são vítimas, como eu felizmente consegui aguentar. E capazes de agir também como eu consegui agir sempre de cabeça fria, ainda que sabe Deus à custa de quantas almofadas humedecidas de choro pela calada da noite. Preocupa-me imenso o que vejo e ouço nos telejornais acerca do suicídio inexplicável de tantos homens das forças de segurança e estremeço sempre que me lembro de tudo aquilo por que passei.

Após a colocação definitiva no Posto de Castelo de Vide continuei a esforçar-me por aprender mais e melhor no dia-a-dia através de muito trabalho e empenho, de uma postura digna e correta perante a comunidade, do estudo minucioso de cada código, de cada lei, de cada preceito militar, de cada pasta do arquivo do Posto e de cada NEP – Norma de Execução Permanente – pois entendia que só dessa forma algum dia seria capaz de atingir o nível que me permitiria ir mais além na carreira.

Tomava notas de tudo o que me parecia ser importante, fazia dossiês de apontamentos sobre armamento, legislação penal, regulamentos policiais, direitos e deveres militares, manutenção da ordem pública, estudava procedimentos e fazia cópias dos autos de toda a natureza, ao mesmo tempo que tentava entender as leis que lhes davam origem, em suma, fui trabalhando decididamente durante os três anos seguintes numa preparação contínua que visava atingir os objetivos que me tinha proposto alcançar.

No início de 1982 abriu concurso para promoção ao posto de cabo e candidatei-me. Durante os seis meses seguintes o Centro de Instrução da Ajuda foi-me enviando para o Posto os dossiês com as diversas matérias que iriam constar dos três testes – um a cada dois meses – que iriam apurar os candidatos à frequência do curso na Ajuda a ser ministrado no ano letivo 82/83. Dos onze candidatos iniciais só conseguimos “passar” dois. E lá fomos até Lisboa, felizes e contentes. Já quase no final do Curso de Promoção a Cabo, o Comando Geral da Guarda abriu Concurso de Admissão para a frequência do 6º Curso de Formação de Sargentos.

Excecionalmente, dada a escassez de efetivos naquela classe de graduados, o Exmº General Comandante autorizou-nos, na qualidade de futuros cabos a concorrermos também, mesmo antes de terminado o curso que estávamos ainda a frequentar. Incentivado por outros camaradas que aceitaram aquele desafio, candidatei-me também. As provas escritas e psicotécnicas decorreram no Centro de Instrução, depois as provas físicas na Academia Militar. Todas tiveram lugar na segunda quinzena de maio de 1983 tendo todos os candidatos conseguido superar as provas e ficar aprovados.

Não tenho dúvidas que a permanente instrução intelectual e física ministradas naqueles últimos meses no decorrer do Curso de Cabos terá sido meio caminho andado para esse feliz desfecho. E assim foi que, sem que tal tivesse sequer sido sonhado, parti de Castelo de Vide no início do ano letivo de 1982 como soldado candidato a cabo para regressar em meados de junho de 1983 ainda soldado mas já a aguardar a promoção ao posto seguinte, assim como também já aprovado para ir frequentar o 6º Curso de Formação de Sargentos que iria decorrer nos dois anos letivos seguintes: 1983/1984 de cabo a furriel e 1984/1985 de furriel a 2º sargento, respetivamente.

Conforme consta no meu Diploma de Encarte fui promovido ao posto de 2º Sargento da Guarda Nacional Republicana para a Arma de Infantaria contando a antiguidade desde 21 de junho de 1985, depois promovido ao posto de 1º Sargento contando a antiguidade desde 22 de julho de 1988 e finalmente promovido ao posto de Sargento-Ajudante contando a antiguidade desde 07 de fevereiro de 1993.

Notificado oficialmente e por escrito que iria ser promovido ao posto de Sargento-Chefe em abril de 2003 por estar posicionado no nº 2 daquela escala de promoção, fui depois preterido por motivo de reclamação julgada procedente de dois militares do Regimento de Cavalaria que originou a sua promoção, assim como a minha recolocação no primeiro lugar da escala de promoção àquele posto, para janeiro do ano seguinte – 2004.

Fiel aos meus princípios entendi que não tinha qualquer lógica ser prejudicado na promoção em virtude do erro grosseiro de uma Chefia que não elaborou a lista corretamente, sendo muito mais justo por uma questão de coerência sermos todos promovidos, quer os militares reclamantes, quer também os militares já oficialmente notificados pelo Comando Geral. Em vez de duas seriam quatro as promoções, o que seguramente não levaria a GNR à bancarrota.

Justamente indignado e porque tinha já completos desde agosto desse ano os obrigatórios 36 anos de serviço efetivo para poder sair, requeri a passagem à situação de reforma para a qual transitei no dia 25 de novembro de 2003 terminando definitivamente um percurso militar que iniciei aos 17 anos, mais propriamente no dia 19 de dezembro de 1969 na Inspeção no RI 16 em Évora que me considerou apto para todo o serviço, seguido da incorporação como voluntário recruta no BC 8 em Elvas em maio seguinte, com passagem pelo BC 5 de Lisboa a frequentar o Curso de Transmissões de Infantaria, com a integração no BCav3871 - Estremoz em 15 de novembro de 1971 com destino a  Angola até 11 de junho de 1974, passando à disponibilidade um mês depois a 11 de julho de 1974.

Esta é a história da minha vida militar resumida, absolutamente verdadeira, sem artifícios nem filtros. Pelo meio, muitas outras histórias dignas de registo que também tenho escrito, nas quais relato de tudo um pouco, algumas das quais estão descritas no livro Histórias do Cota que os meus filhos compilaram e me ofereceram, outras ainda que tenho guardadas ou vão sendo publicadas no meu sítio no Blogger. Grato fico sempre a quem se digna gastar um pouco do seu tempo para ler estes meus "desabafos". 

Bem hajam.

José Coelho in Histórias do Cota (adaptado)

terça-feira, 21 de junho de 2022

Solstício de verão


O solstício de verão corresponde ao momento em que o Sol atinge a maior declinação em latitude, medida a partir da linha do Equador, em junho no hemisfério norte, e em dezembro no hemisfério sul.

Assim, o início do verão europeu começa em junho, enquanto no hemisfério sul o verão só se inicia em dezembro.
Em 2022 o solstício do verão acontece a 21 de junho às 10h14. Este é o dia mais longo do ano no hemisfério norte.

(Flor de cera da trepadeira do alpendre da varanda do nosso 1º andar.)

Bom verão, pessoal. Cuidem-se

Selfie José Coelho

"As pessoas não envelhecem apenas por viverem um certo número de anos. Envelhecem quando abandonam os seus ideais. Os anos provocam rugas na pele, mas perder o entusiasmo também provoca rugas na alma."

Radha Soami

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Nas teias do mal

Integrando o 6º Curso de Formação de Sargentos 1984/1985
 Centro de Instrução da GNR na Ajuda

O meu vizinho Francisco era vendedor ambulante. Tinha uma tenda de comes e bebes, farturas ou massa frita, petiscos, café e vinhos, os quais vendia nos mercados e feiras por todo o distrito. Era por isso conhecido e amigo de muitos guardas. Ao passar em Portalegre num desses dias a tratar de assuntos do seu interesse nas proximidades do quartel, logo “calhou” ser visto, abordado e convidado para ir lá petiscar e beber uns copos.

Estrategicamente – ou não – estava presente naquele improvisado “lanche” o tenente meu comandante de pelotão. Embebedaram – quase de certeza – deliberadamente o vizinho Francisco, com o intuito de lhe “sacarem” alguma informação “cabeluda” que pudessem depois usar contra mim. Contou-mo ele pessoalmente, tim-tim por tim-tim, conforme o descrevo.

Enganaram-se uma vez mais.

Primeiro porque na verdade não havia rigorosamente nada para revelar que pudesse comprometer-me. Depois porque o vizinho Francisco cuja casa era paredes-meias com a nossa, me conhecia desde que nasci e podia, com tanta propriedade como o meu pai, falar sobre mim, com seguro e exato conhecimento de causa.  E finalmente porque de ingénuo o vizinho Francisco não tinha nada! Sentiu-se “apalpado” pelo astuto tenente e pelos guardas, mas limitou-se apenas a dizer-lhes o que sabia, que era exatamente o contrário do que eles queriam ouvir:

- O José Coelho?

- Ohhhh…

- Muito bom cachopinho senhor tenente!

- Muito bom cachopinho mesmo, pode ter a certeza!

- É uma família de gente boa.

- Vi-o nascer e conheço bem o que ali está. É muito educado, respeitador e inteligente.

- E a família é séria, cumpridora e de trabalho.

- Vai dar um bom guarda, até aposto!

Rimo-nos os dois divertidos, quando ele me contou tudo isto em sua casa no fim de semana, poucos dias depois de ter acontecido:

- Ó Zé, pá…

- Os gajos querem mesmo "pôr-te a mexer", pá… Se visses o que o gajo disse de ti, pá!

(O ti Chico falava mesmo assim, ó pá isto, ó pá aquilo).

E continuou satisfeito da sua proeza:

- Mas eu desmenti-o logo, pá!

- Disse-lhe logo que aquilo era tudo mentira, pá… Põe-te a pau com eles.

Estava provado que eu era alvo de uma perseguição cerrada, orquestrada, odiosa, feroz, mal-intencionada e tremendamente injusta. Mas continuava de pé, a lutar com as armas que tinha. A minha idoneidade mais um empenho feroz que me faziam estudar até altas horas da madrugada sozinho na sala de aulas para tentar arrancar notas classificativas acima da média nos testes semanais e lhes "espetar com elas na cara” com íntimo regozijo.

Os “gajos” ficavam estupefactos e as caras deles, para minha enorme delícia, eram o reflexo de alguma impotência perante tais resultados. Ali, pensava eu erradamente, ninguém poderia meter a unha. Estava lá tudo escrito, preto no branco! Só mais tarde percebi que as notas podiam ser e foram, adulteradas.

A minha teimosia e se calhar também a minha total inocência nos imaginários “crimes” que me eram imputados, tinham revertido a situação a meu favor. As “bocas” insidiosas dos senhores tenente e sargento continuavam a espicaçar-me pois esse calvário durou do primeiro ao último dia do curso, mas batiam já de chapa na minha total indiferença.

Quem não deve, não teme.

Nem sequer os meus camaradas de turma ligavam já àquilo. Tive a sorte e o privilégio de nunca ter sentido qualquer animosidade da parte deles, muito pelo contrário. Senti-os sempre solidários comigo em todas as suas atitudes, tendo havido até um deles que, num secreto desabafo, me sussurrou certa vez:

- Eu não aguentava tudo o que tu tens aqui aguentado, Coelho. Já me tinha ido embora, mas primeiro partia os cornos a um deles…

Uma tarde, muito perto já do final do curso e no decorrer de uma aula, enganei-me ao colocar o meu número de matrícula quando preenchi a dispensa do fim-de-semana. Coisa insignificante. Uma barra onde não devia no número de matrícula. Ao ver “tamanho” erro, o sargento aproveitou imediatamente para se atirar ferozmente a mim na presença dos meus camaradas, vociferando vermelho de ira.

- Seu burro! Seu analfabeto! Se não sabe fazer o que lhe compete, o que anda aqui a fazer?

Farto de ser espezinhado por tudo e por nada, não me contive que não dissesse:

- Já pedi desculpa, meu sargento! O senhor nunca se engana?

O que fui eu dizer!

O homem teve quase uma apoplexia ali diante de mim. Sendo já vermelho por natureza, ficou completamente roxo.

- Vai dar-lhe um treco, pensei.

Porém, como vaso ruim não quebra, olhou-me de atravesso com indisfarçada hostilidade, mas apenas retorquiu entre dentes:

- Ponha-se a pau comigo, Coelho! Ainda não tem o tacho garantido!

Não tomei quaisquer precauções. Nem me intimidei. Não me importava nadinha de voltar de novo para as Minas da Panasqueira das quais não me tinha ainda esquecido, nem daqueles amigos impecáveis que, sendo pessoas simples e sem formação académica, davam lições de humanidade e de respeito pelo próximo que estes senhores fulanos de tal “mandantes” na GNR em momento algum desde que os conhecera demonstravam possuir.

Para além do testemunho pessoal dos meus camaradas de Alistamento que se encontram ainda vivos e de saúde, pode confirmar quem quiser tudo aquilo que aqui descrevo por ser apenas a integral e exata narrativa dos factos, nua e crua, tendo ainda em conta que muitos deles, após terminado o pesadelo que foi para mim o Alistamento, vieram confidenciar-me outras barbaridades e sandices que a meu respeito eram proferidas quando eu não estava presente na sala de aulas para poder defender-me.

Valentões, aqueles "chefes"!

E, se os seus testemunhos vivos não forem só por si suficientes, devo dizer-vos ainda que guardo religiosamente como um tesouro, as provas da maior injustiça humana de que alguma vez fui alvo: Os cadernos, manuais, testes e resultados, que são simultaneamente testemunho e prova real de uma das maiores e mais justas batalhas que travei na minha vida, a qual, debaixo de tantos enxovalhos, de tão cobarde pressão psicológica e sem qualquer hipótese de poder defender-me, consegui levar de vencida.

No final do Alistamento não fui, como me era devido, o primeiro classificado do curso. De forma indecente passei de primeiro para segundo classificado, apesar de ter a média única e melhor do pelotão de 17,24 valores, até ao penúltimo teste. Muito perto de mim também com muito boas notas apenas ligeiramente abaixo das minhas, seguiu sempre um camarada de Santo Aleixo, bom moço e muito bom amigo que, muitas vezes depois nos anos que se seguiram, comentava para quem o queria ouvir:

- O primeiro classificado do nosso curso por melhor classificação foi o Coelho. Mas por vingança de quem mandava, puseram-me lá a mim!

Como?

O justiceiro "duo mandante” decidiu que não iria ao pódium receber o troféu de melhor classificado "um possível comuna” apesar de nunca tal se ter provado! E, não havendo mais por onde pegar, exatamente no último teste, “por mero acaso” em vez dos habituais 17 valores, só me foram contabilizados 13…

José Coelho in Histórias do Cota (adaptado)

sábado, 18 de junho de 2022

Coisas qu'escrevi

Ano de 1979

Às nove horas em ponto do dia 22 de janeiro de 1979 apresentei a guia de marcha que tinha recebido dois meses antes em Lisboa a um circunspecto e mal-encarado plantão ao Posto que se encontrava num escuro gabinete logo à entrada da porta do Comando da Companhia de Portalegre onde já estavam outros camaradas “maçaricos” como eu, a efetuarem a sua apresentação.

Nunca na minha vida havia entrado num quartel da GNR e a minha primeira impressão foi de estranheza pelo ar extremamente carrancudo de todos os que se dirigiam a nós ou nos olhavam, assim como o intenso cheiro a cavalos que emanava do interior do edifício, o qual, embora muito limpo e arrumado, denotava em tudo um ar envelhecido; o edifício, as paredes, os arcos do corredor, os azulejos e até as mobílias.

- Deve ter sido um convento ou uma igreja – pensava de mim para mim, enquanto éramos encaminhados para uma pequena parada no interior do quartel.

Todo esse dia foi passado a receber o fardamento, o alojamento e instruções diversas. Quando finalmente recolhemos à caserna para dormir já o serão ia adiantado e não se ouvia um murmúrio sequer. O meu estado de espírito estava por terra, habituado ao bulício da mina, à excelente amizade e camaradagem daquela "família mineira" com quem tinha convivido até há poucos dias atrás, e, bem lá no fundo, a sombra da saudade por ter deixado tudo aquilo, perturbava-me involuntariamente, roubando-me o sono e a vontade de conversar fosse com quem fosse.

Os meus 40 camaradas de “escola” não denotavam muito mais ânimo. Calados e sorumbáticos como eu, cada um recolheu ao seu beliche em silêncio e sem denotar grande apetência para início de confianças.

A euforia da Revolução do 25 de Abril de 1974 ficara, entretanto, algures lá já muito para trás pois iam passados quase cinco anos desde a célebre “Madrugada”. Perdido por aquelas aldeias nos contrafortes da Serra da Estrela e ocupado nos meus afazeres de mineiro desde o início de 1975, nunca mais tivera qualquer contacto com as politiquices da terra ou quaisquer outras e por isso não sabia que a reforma agrária se tinha desenvolvido por todo o Alentejo durante esses anos em que estive ausente. 

Os meus conhecimentos sobre resumiam-se ao que ouvia por lá ou de vez em quando via nos noticiários da tv mas aos quais não prestava a menor atenção, pelo simples facto de “aquilo” não me dizer nada e ainda porque andava ocupado a organizar a minha vida, no meu bem pago trabalho com aquela nova "família" de extraordinários amigos que tinha encontrado, depois com o meu casamento, com o nascimento do primeiro filho, enfim, com todas as coisas normais do dia-a-dia de qualquer um. 

Por isso mesmo, a política muito sinceramente, era para mim um absoluto zero.

Só ao entrar para a GNR como soldado provisório tomei, da pior forma, conhecimento pormenorizado de tudo e foi quando soube em pormenor como o Alentejo fora devastado por ocupações selvagens de inúmeras herdades, e que instigados por determinadas forças políticas os trabalhadores rurais, toda a vida explorados pelos donos das terras, viram ali a sua oportunidade de vingança por anos e anos de miséria. Não perceberam, ou não quiseram perceber, que talvez não fosse aquele o caminho certo e que as ocupações que levavam por diante serviam principalmente e sobretudo, interesses político-partidários.

Mas não pensem vocês também que esta “instrução” que fomos aprendendo aos poucos nas primeiras semanas de alistamento sobre ocupantes e ocupações de herdades por esse Alentejo fora, tinha alguma intenção formativa para nós, insignificantes "projetos-inacabados-de-futuros-guardas-se-acabássemos-o-curso-com-aproveitamento", como diária e pomposamente éramos apelidados pelo oficial e sargento instrutores, para que o tivéssemos em conta e nunca o esquecêssemos. 

Não! Não tinha qualquer intenção formativa, muito pelo contrário. Era eivada de segundas e perversas intenções.

Nos anos de 1977 e seguintes, decorreu de forma muito conflituosa entre as partes, a devolução de parcelas das herdades ilegalmente ocupadas ou mesmo herdades inteiras aos seus legítimos proprietários após a correção legislativa da Assembleia da República que estipulou por um lado as áreas a manter sob ocupação e domínio das inúmeras Cooperativas Agrícolas que então se formaram, e por outro as áreas a devolver aos respetivos donos.

No olho do furacão, a Guarda Nacional Republicana era no terreno o garante do integral cumprimento da Lei que tinha forçosamente de ser respeitada pelas partes interessadas, mas cujo cumprimento originava por toda a zona de intervenção do conflito situações de sérios confrontos, quer físicos, quer verbais, todos eles potencialmente causadores de um terrível clima de hostilidades mútuas e muito complicadas.

Não foi uma época fácil para ninguém. Houve excessos, falta de fair-play, agressividades evitáveis e comportamentos reprováveis de todas as partes. Todas, sem exceção, cometeram muitos e graves erros.

Foi pois nesse clima de desconfiança e suspeição que eu e os meus camaradas fomos recebidos e tratados pelo efetivo e alguns dos instrutores durante todo o alistamento em Portalegre, principalmente pelo oficial e pelo sargento respetivamente comandante do pelotão e adjunto, já que os dois cabos, honra lhes seja feita, eram duas excelentes pessoas que tentaram sempre e como podiam, “amenizar” junto de nós os efeitos das “bocas” dos outros dois graduados que não nos poupavam a provocações tendenciosas e muitas vezes a raiarem o insulto.

Para a maior percentagem dos efetivos dos quadros da GNR no Alentejo desse tempo, nós, instruendos, éramos potenciais suspeitos de ser comunas – termo depreciativo usado para com os militantes do PCP.  E ser-se comuna em 1979 no entender de quase todas as patentes da Guarda por estas bandas, era ser-se equiparado a um vulgar criminoso. 

Aparentemente, não haveria nada mais sério, nem mais grave. 

Sendo eu o único Marvanense daquele alistamento, a maior parte dos meus camaradas eram oriundos da zona vermelha do conflito – Ponte de Sor, Montargil, Cano, Elvas, Monforte, Estremoz, Galveias – por isso, se não fossemos comunistas, seriamos com certeza filhos, netos, bisnetos, sobrinhos ou primos deles e considerados um potencial perigo de contágio e de infeção às puríssimas elites guarda-republicanas formadas antes de 24 de abril de 1974.

Foi necessário passar uma década inteira para "as coisas" se tornarem um pouco mais fáceis e humanizadas para os formandos alistados após 25 de abril de 1974. E quero crer que o tresloucado e mortífero ato do cabo Antunes no Centro de Instrução da Ajuda em novembro de 1988 terá sido inspirador e motivo de grande reflexão - senão mesmo de medo - para muitos saudosistas que teimavam em não acatar as regras da democracia.

José Coelho in Histórias do Cota (adaptado)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Bom fim de semana

Miradouro da Beirã - Foto Maria Coelho

Regresso

Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram.
Mal eu surgi, cansado, na distância.


Cantava cada fonte á sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.


Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.

Miguel Torga

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Com o passo certo

Ponte Pedonal Sobre o Rio Tâmega - Chaves

Foi em meados do verão de 71 que esta já longa caminhada teve início, quando, estando eu a prestar serviço militar em Elvas, ficámos noivos. Seguiu-se um longo período de ausência com a mobilização para a guerra em outubro desse mesmo ano e consequente embarque para Angola em março de 72, até ao regresso em junho de 74.

Aqui teve início outra complicada odisseia. A de encontrar um emprego estável para constituirmos a nossa família. Orfã de mãe desde julho de 71, vivia a noiva "de favor" em casa de uma irmã, tendo o noivo de imigrar para longe em busca do pão de cada dia. E foi nessas precárias condições - uma a viver em casa alheia, o outro a centenas de quilómetros de casa - que em 76 decidimos casar. 

Porque sim. 

E mais não digo.

Inconformada com a minha situação profissional tão longínqua e algo perigosa, não descansou a já então minha esposa e logo depois mãe do nosso primeiro filho enquanto não me convenceu a mudar de rumo. Teve, para essa sua vitória, a cumplicidade da sogra e senhora minha mãe que também não se conformava que "o seu Zéi "andesse" lá debaixo do chão como as toupeiras". 

- Nã morreste na guerra, vais morrer algum dia nesse malçoado buraco! 

Sentenciava prudentemente, cada vez que eu cá vinha. 

Conseguiram. Saí de um buraco escuro e lamacento para ingressar numa profissão nunca antes imaginada e cujas mentalidades na altura (1974/1979) eram mais bafientas e cheias de mofo que as galerias das minas onde labutara durante cinco felizes anos. Aguardava-me um sem fim de dificuldades, armadilhas, humilhações tendenciosas para me desmotivarem e fazerem desistir.

Não foram capazes. Ou melhor dizendo. Não tiveram tomates para isso. Pelas boas, sou capaz de dar a camisa. Pelas tortas, não admito que ninguém seja mais torto que eu. Em vez de desanimar e de desistir como eles queriam, agarrei-me às matérias com unhas e dentes e arranquei as melhores notas do curso do primeiro ao último teste. 

A seguir concorri ao curso de cabos e depois ao de sargentos.

Foi a resposta que me propus e empenhei dar, a quantos acharam que eu seria um alvo fácil de abater. 

E cheguei lá. Por mérito próprio.

A duras penas, mas cheguei. 

Na noite em que o Lusitânia-Comboio-Hotel me trouxe de Santa Apolónia para casa já com o Diploma de Encarte de Sargento da Guarda Nacional Republicana na pasta, chorei até o dia nascer abraçado à minha aflita companheira que não estava nada à espera de me ver assim e só sussurrava para me acalmar: 

- Pronto, pronto, não chores mais! 

Não tive ajudas nem favores de ninguém, a não ser a impagável ternura e paciência desta admirável mulher e mãe que ficou sozinha em casa a cuidar de dois meninos pequenos durante três longos e consecutivos anos - um do curso de cabos e dois do curso de sargentos - longe da nossa família e também sem ajudas nenhumas, porque eu chegava nas sextas-feiras à uma e meia da madrugada para voltar a partir nos domingos às seis e meia da tarde.

No fundo, terá sido também uma conquista sua, por ter sido ela que me meteu naquelas "alhadas" quando me convenceu a sair das Minas para entrar na GNR. Caminhamos por isso mesmo juntos, cúmplices e amigos, há já cinquenta e um anos. Nem tudo terão sido rosas, mas nem tudo foram também espinhos.

Como em todos os caminhos de todas e quaisquer vidas. 

Das nossas e das vossas.

Caminhar juntos é isso mesmo. Dias muito bons, dias assim-assim, e dias menos bons. Mas nesse caminho não se deve nunca parar. Nem desistir. Há que seguir caminhando, tentando vencer um a um, todos os obstáculos. 

Sempre!

Prestem agora um bocadinho mais de atenção à foto que ilustra este "escrito". Vamos, eu e a minha companheira a caminhar juntos, de costas para quem nos fotografou casualmente, por sua iniciativa e sem nós nos apercebermos, completamente descontraídos, tranquilos, em paz com a vida e com o mundo inteiro, sobre uma das pontes que une as duas margens do Rio Tâmega na Cidade de Chaves. 

A harmonia que nos acompanhava era de tal modo perfeita que... reparem bem... caminhávamos ao lado um do outro... com o passo certo! 

Pura casualidade? 

Talvez! 

Mas também há quem diga que... 

... nada acontece por acaso.

Será?

José Coelho
15.06.2022