sexta-feira, 29 de abril de 2016

Coisas que leio...

Foto by Pedro Coelho
 
Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo o que... poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas ideias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.
 
Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "bom dia", quase que sussurrados. Sobra cobardia e falta coragem até pra ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, o sentir e o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris teria tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
 
Não é que a fé não mova montanhas ou que todas as estrelas estejam ao nosso alcance para as coisas que não podem ser mudadas. Resta-nos somente a paciência. Porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer. Para os erros há perdão; para os fracassos, chance; para os amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planeando, vivendo que esperando, porque, embora quem quase morreu esteja vivo, quem quase vive já morreu.
 
Luis Fernando Verissimo

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Voltarei assim que puder...


Na revisão de rotina à minha "máquina" em 22.04.2016, foi-me detectada uma "avaria" que é necessário avaliar com mais precisão em locais apropriados e por outros profissionais destas coisas, afim de avançar a "reparação" que se conclua ser a mais aconselhada. 

Por esse motivo tenho andado um pouco afastado deste nosso lugar de encontro virtual e vou continuar ausente por tempo indeterminado mas vou voltar assim que puder. 

Até lá então e... 

Bom fim de semana! 

sábado, 16 de abril de 2016

Vergonha na p**a da cara

Fotomontagem José Coelho



Sei que o tempo não volta. Oh como sei. Outra coisa eu não soubesse! E sim, corre agora em velocidade de cruzeiro quando eu queria que ele avançasse um pouco mais devagar. Longe vai o tempo em que ele me parecia uma eternidade. Porque nunca mais era sábado para ir outra vez ao baile na Sociedade Recreativa, ou domingo para ir namorar. As semanas já tinham sete dias mas parecia terem catorze. Os dias também já tinham vinte e quatro horas mas parecia terem trinta e seis. E os meses, esses, tinham para aí oitenta dias. Ainda assim as pessoas eram invariavelmente felizes e bem-dispostas. Quase sempre. E eu também.

Do Natal até à Páscoa demorava uma eternidade. Os Invernos duravam uns longos seis meses, desde Outubro até Março quase sempre a chover e frios de rachar. Os Verões tinham apenas três: Junho, Julho e Agosto. Os outros três, Abril Maio e Setembro, eram de tempo ameno sem ser inverno nem verão, sem estar frio mas também sem estar calor. E toda a gente percebia os sinais dos astros. Das estrelas, do sol, da lua. Aos cinco ou seis anos já eu conhecia a estrela boieira ou da manhã, aquela que há milénios indica que o dia está prestes a romper a escuridão da noite, pois muitas vezes o romper da aurora nos surpreendia, já de mão dada, a mim e à minha mãe, a caminho das tapadas onde ela ia sachar milho ou feijão preto de sol a sol.

O astro avermelhado ao fim do dia no verão anunciava que o seguinte seria ainda mais quente. E no inverno, a cor rosada no céu poente, dava como certo um dia seguinte gélido. A lua e os seus quartos também tinham segredos. O minguante era o adequado para as sementeiras, o crescente o de fazer crescer e amadurecer os frutos, mas também de fazer crescer a boa sorte ou as dificuldades em que as pessoas se encontrassem naquele quarto de lua. Por sua vez a lua cheia, tão romântica no verão para os namorados, era temida no inverno por causa dos lobisomens cujo uivar se confundia com o do vento.

O tempo! Ah! O tempo...

Às vezes nem parece o mesmo de quando nasci. Está tudo tão diferente! Para pior, acho eu. Naquela época não havia casa, casebre ou socha que não contivesse uma família lá dentro. Fosse uma pessoa para onde fosse, da Beirã ao Cabeço de Seixo, da Beirã à Atalaia, da Beirã às Amendoeiras, da Beirã à Retorta, por todos os lugares dos quatro pontos cardeais havia gente a morar, a trabalhar, a viver. Por toda a parte se ouviam vozes de gente a conversar, pastores a assobiar aos gados, searas a ondular nas tapadas, pomares e abundantes hortas a bordejarem os regatos e ribeiros. Chamava-se a tudo isso... Vida. E tudo isso deixou de existir. Bastaram trinta anos. Foi tudo varrido destas paragens como se vento ruim por aqui tivesse passado e com ele levado tudo.

E não sei se não foi mesmo.

Esse vento ruim, para mim, tem um nome fino e sonante. Apelidam-no de progresso. Eu não acho que ele nos tivesse trazido algo assim tão bom. Senão vejamos. Que progresso extingue tudo aquilo em que toca, desertifica freguesias, concelhos, regiões inteiras? Que progresso mata os usos e costumes de um povo maioritariamente rural de norte a sul, a sua agricultura, o seu comércio e serviços, obrigando ao êxodo em massa dessas populações para os grandes centros urbanos abandonando as suas raízes? Que progresso sobrecarrega o povo de impostos, taxas e sobretaxas para satisfazer os mercados, cujos donos visam apenas o lucro e a ganância de muitos, nem que para isso seja necessário promover a corrupção e o compadrio numa total ausência de decoro? E como se isso não fosse só por si já suficientemente censurável, ter ainda, como consequência direta, a asfixia e morte de quase todos os pequenos negócios que serviam e facilitavam a vida às populações das vilas e aldeias que teimaram e delas não quiseram arredar pé?

Que progresso extingue, em vez de modernizar e tornar rentáveis, ramais ferroviários inteiros, com tudo o que deles dependia, desrespeitando sem contemplações um património construído à custa do esforço e erário públicos, que serviram as populações e o país durante décadas? Que progresso permite que se cometam todos estes atropelos aos direitos mais elementares das pessoas, sucessivamente repetidos nos gabinetes climatizados da capital por decisores políticos sem a mínima sensibilidade social e cada um mais hostil que o anterior? Progresso é só planear autoestradas, pontes e outras obras faraónicas? E nós, os provincianos, só servimos para votar de quatro em quatro anos? 

Resmungões mas obedientes, refilando mas sempre votando... e nos mesmos do costume. Triste sina a nossa!

O tempo não volta. Mas às vezes penso que muitas das coisas antigas o tempo repete. Por exemplo, no "tempo da outra senhora" dizia-se que a política vigente era a "dos três éfes". Fátima Futebol e Festas. Curiosamente no tempo da "senhora atual" esse espírito mantém-se vivo e vibrante mesmo passados quarenta e tal anos. Basta olhar as multidões que continuam a afluir a Fátima, as paixões sempre ao rubro no Futebol, e, como não, o quanto a malta gosta de Festas. Sejam feiras medievais, romarias ou campanhas eleitorais. 

Dou a mão à palmatória e assumo sem qualquer encargo de consciência que também aprecio Fátima, Futebol não tanto, Festas menos ainda. Mas do que gosto a sério, tento praticar diariamente, ensinei aos filhos e ensino agora ensino as netas, são os valores e princípios fundamentais que me foram transmitidos pelos meus pais e avós, hoje tão raros:

- Respeito de uns para com os outros
- Dignidade no trato entre todos
- Honestidade nas palavras e atitudes
- Honradez nos compromissos assumidos
- Integridade de carácter 
   
Ou, resumido tudo numa só frase...
- Vergonha na puta da cara.

Pela manifesta e total ausência da maior parte de tais valores e princípios em muitas pessoas ao nosso redor mas também, infelizmente, em muitas figuras públicas que deveriam dar público exemplo e muito pelo contrário são frequentemente a nossa coletiva humilhação, é que, inúmeras vezes me revejo muito mais no tempo passado, do que no presente. 

Disse.

José Coelho
16.04.2016

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Marvão ao longe...

Foto feita por mim numa tarde de trovoada de uma das guaritas do Largo do Cipresteiro na muralha de Castelo de Vide onde morámos entre 1979 e 1985

Há Abris assim...

Imagem copiada (e retocada) do face

O corrente mês de abril não tem sido, de todo, nada famoso para mim mas a forma positiva como eu tento sempre encarar as adversidades tem-me ajudado bastante a dar a volta por cima e tentar colocar "a coisa" nos eixos sem dramatismo ou desânimo.

Primeiro este tempo esquisito que mais parece destempo porque tão depressa faz sol e calor como logo a seguir desata a chover e está frio. Já apagámos o lume e limpámos a lareira da sala por três vezes desde finais de março mas outras três tivemos que voltar a acendê-la.

Depois e provavelmente por culpa destas acentuadas oscilações térmicas uma virose gripal misturada com rinite alérgica sazonal levaram-me às urgências hospitalares onde o meu competente e excelentíssimo amigo e médico de família teve que prescrever o que entendeu suficiente e necessário para combater ambas.

Quem não gostou muito de tais "armas" químicas anti-gripais e anti-histamínicas foi a minha delicada próstata já também meio avariada ou gasta pelo uso que por isso começou a recusar-se a funcionar com normalidade e me tem dado bastante trabalho para a obrigar a cumprir as funções biológicas que lhe são devidas.

Como se não bastassem tantas "avarias" quer as da primavera que nos afetam a todos quer as do meu corpo que só me afetam a mim e a avisarem-me que ter 64 não é a mesma coisa que ter 46, o meu inseparável amigo e companheiro dos últimos anos, o caniche Bolinhas, decidiu que era tempo de ir ter com os seus antepassados e deixou-me.

Em cima da pouca pachorra que a gripe provoca, tive que passar (com toda a dedicação que ele merecia) três dias e duas noites à cabeceira daquele meu fiel e querido amigo. Porém, não obstante a minha incansável assistência, bem como a da sua grande amiga e veterinária doutora Rute, ele recusou-se a viver mais tempo e partiu para sempre.

Escusado será dizer-vos a pena que me deu e o quanto sinto a sua falta acostumado que estava há tantos anos a tê-lo à minha espera aos pulos de alegria quando tínhamos que ir a qualquer lado e deixá-lo sozinho em casa, a tê-lo deitado no sofá ao meu lado com a cabecita sobre os meus joelhos a vermos placidamente os telejornais ou a ouvir o seu respirar feliz e tranquilo deitado na carpete aos meus pés quando vinha para o escritório.

Nunca tinha conhecido amigo mais amigo e dedicado e não voltarei decerto a ter outro igual. Chega de desgostos. Já foi o Rex, o pastor alemão que a perigosa leshmaniose obrigou à eutanásia, depois a gatinha siamesa Princesa que ao fim de 16 anos connosco teve cancro nas maminhas que ficaram em carne viva e  por isso também teve que ser abatida pelo veterinário com a "tal" injeção mortífera. E, finalmente, a Sacha, a nossa meiga labrador retrevier, também com cancro lhes seguiu o destino.

No meio de tanto azar animal, o Bolinhas foi o que sofreu menos e o único que morreu de morte natural e velhice sem grande sofrimento. Deixou apenas de comer três dias antes de partir. Só queria beber água e a medicação que através de uma seringa eu lhe introduzia na boquita com cuidado para o tentar ajudar na sua agonia, mas ele vomitava tudo no momento seguinte e fechava os olhitos cansado como que a dizer-me "deixa-me em paz".

Resta agora a Suri, a nossa ainda jovem rafeiro alentejana, doida, bonitona e rainha absoluta de todo o quintal onde qualquer pessoa estranha não se atreva sequer a assomar o nariz porque ela fica eriçada como um ouriço e fula como uma leoa. Este magnífico exemplar canino será com toda a certeza o último nas nossas vidas.

Já chega!

Estamos, eu e a patroa, a ficar velhos e com menos habilidade. Além disso já demos o nosso contributo para a felicidade de vários animais de estimação ao longo de mais de 40 anos. Até com as vulgares galinhas e outras aves de galinheiro tivemos que acabar porque era sempre um problema quando chegava a hora de as matar. Como todos os outros eram seres vivos a quem nos afeiçoávamos e dava depois imensa pena abater.

Mas chega, por hoje, das minhas  "histórias da desgraçadinha". Pode ser que o próximo Abril seja mais meu amigo.

Assim o desejo e espero.

Continuação de uma boa semana para todos vós...

sábado, 9 de abril de 2016

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Adeus meu amigo com A grande...

Foto de uma qualquer feliz tarde num dos nossos muitos passeios por campos 
e veredas na liberdade que tanto amavas, meu pequeno camaradinha
    Nome próprio: Bólinhas
    Nasceu em Setúbal em 30-8-2004 (desconheço a hora)
    Morreu tranquilamente de morte natural na Beirã em 07-4-2016 às 16:26 assistido pelos miminhos e cuidados dos donos que nunca arredaram pé de junto dele
    Foi o amigo mais amigo e dedicado que tive em toda a minha vida
    Nunca irei esquecê-lo

    Um dia, depois de digerir melhor a sua falta, irei escrever a sua história e o quanto ele foi manifestamente feliz nesta família que o acolheu há 9 anos com o maior carinho. Hoje não, porque estou demasiado triste com a sua perda


    A tua nova morada, perto de nós e nós de ti, amiguito

    Descansa então para sempre no sossego deste canteiro do nosso quintal onde eu te aconcheguei pela última vez o melhor que pude, meu fiel companheiro. Aqui todos os dias continuaremos a estar próximos, a ouvires-nos falar e a ouvires também o ladrar da tua maluca amiga rafeiro alentejana Suri a quem cortejavas sem medo e sem olhares ao tamanhão dela, umas 10 vezes maior que o teu.

domingo, 3 de abril de 2016

A saudade é um mistério inexplicável...



No acelerado processo de degradação física e mental a que assisti nas últimas semanas de vida da minha mãe houve um episódio que me espantou e marcou profundamente. Eu sabia obviamente que ela estava a "ir-se embora" a caminhar a passos muito largos para o fim do seu percurso terreno e que nada neste mundo poderia já reverter tal situação. Sentado à sua cabeceira ouvindo-a gemer em surdina certa tarde, perguntei-lhe: - Mãe, o que tem? E ela, com a simplicidade que sempre lhe conheci, respondeu-me tranquilamente: - Tenho já vontade de ir para ao pé do teu pai, filho.

Foram dias, semanas, muito complicados para mim. Cientes da inevitabilidade da morte de cada ser humano não é mesmo assim nada fácil sentirmos que vamos perder o ente que mais amamos na nossa vida. E por mais que no nosso íntimo tentemos aceitar que perante um cenário como aquele de enorme e imparável sofrimento, a solução mais justa para quem assim está a padecer é deixá-la partir para que possa finalmente descansar em paz, nunca estamos preparados para esse doloroso momento.

Foi num final de tarde de um dos últimos dias em minha casa que subitamente ela começou a falar alto não sei para quem mas feliz como um passarinho à solta pelos campos. E ria-se, ria-se, ria-se. E falava para um João Roma e para uma MariNeves que já faleceram há um ror de anos e chamava pela cadela do monte, a Ribeira, completamente eufórica como se estivesse no meio de toda aquela gente talvez na monda do trigo no Matinho onde nasceu, cresceu, se fez mulher, conheceu  o meu pai e com ele casou. Nunca na minha vida tinha visto a minha mãe tão alegre e tão feliz. Conversava animadamente  para um grupo de pessoas que só ela via e ouvia, provavelmente pessoas boas a quem quis muito bem e com quem conviveu na sua juventude.

Bem tentei interromper aquela estranha euforia tocando-lhe no ombro, segurando-lhe as mãos, fazendo-lhe perguntas. - Mãe, está a falar com quem? Mas ela não me ouvia nem me respondia. Era como se eu nem ali estivesse porque continuava a conversar, conversar, conversar, deslumbrada com as recordações que vieram assim inopinadamente ter com ela e parecia terem inundado de súbito a sua memória transportando-a para um tempo em que deve ter sido infinitamente feliz. Mais estranho ainda foi a duração daquele seu estranho e inusitado êxtase porque falou, falou, falou, riu, riu, riu, ininterruptamente, durante toda essa noite e manhã do dia seguinte.

Nunca pronunciou o nome do meu pai de quem ela tanto gostava, nem o de nenhum dos filhos ou netos que ela também sempre adorou. A sua felicidade parecia ser anterior a todos nós. Da sua meninice ou juventude. E durou dezasseis ou dezassete horas sucessivas. Nem as interrupções necessárias para cuidar dela, alimentá-la e medicá-la suspenderam por um segundo sequer aquele seu tão alucinado como feliz estado. Quem passasse na rua ouvia decerto o eufórico discurso e as felizes gargalhadas. Nunca tinha assistido a nada assim. Só ao início da tarde do dia seguinte, tal como começou, subitamente ficou em silêncio e se calou, qual radio que tivesse sido desligado. A seguir adormeceu profundamente num sono de várias horas, num sossego estranho mas por certo reparador, porque tinha que estar completamente exausta.

Dali a mais uns dias começou a sofrer de violentas convulsões motivo pelo qual teve que ser internada no hospital distrital para se tratar. Porém pouco ou nada havia já a fazer para lhe recuperar a vida que estava manifestamente a abandoná-la. Infelizmente já não regressou à minha e sua casa, porque, após ter alta do hospital, foi encaminhada para a unidade de cuidados continuados, aonde, poucos dias depois, foi ao encontro do meu pai, no meio de uma tarde de fins de Julho. Como mãe exemplar que sempre foi esperou por nós até à hora da visita para que nos despedíssemos dela e só depois partiu tranquila como um passarinho, uma das suas mãos entre as minhas e a outra entre as mãos da minha irmã mais nova, ambos a seu lado naquela triste hora. 

Aquilo que aconteceu foi para mim um mistério inexplicável. Não sendo um saudosista por sistema, tenho contudo um grande apego às minhas raízes e memórias. Amo a minha família mais que a qualquer outra coisa no mundo, amo a terra que me viu nascer, amo a vida e tudo o que ela me deu. Muitas vezes dou por mim a pensar naquele episódio inexplicável da minha mãe tão doentinha mas no entanto tão feliz porque, durante um dia e uma noite inteiros, inconscientemente ou não, não sei, algo no seu cérebro a fez mergulhar nas mais gratas recordações da sua já então longa vida. Tinha quase 88 anos. Por conseguinte, aquelas recordações que pareciam ser-lhe tão gratas, tinham com certeza mais de 70. Como é possível que a nossa prodigiosa mente nos transporte para tão longas distâncias temporais para podermos daquela maneira reviver tempos passados, os quais, decerto por terem sido tão bons, criaram raízes profundas que rebentaram depois daquela forma em jeito de feliz saudade.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Coisas que leio...

Imagem copiada do Google



Querida mãe,
Querido pai:

O tempo passa sobre as lágrimas que choro, já nem cicatrizes tenho do que um dia me feriu. E no entanto a memória. A insuportável da memória.

Ninguém merece uma memória feliz.

E eu fui. E nós fomos. Felizes. A casa cheia com a nossa alegria dentro. O quintal, o avô a contar mil e duas vezes as histórias que já tinha contado mil e uma vezes, a avó sempre preocupada em encher a mesa, os tios a dizerem que a vida custa. E custa, pai. E custa, mãe.

Ninguém merece uma casa vazia.

E os cheiros. Os cheiros não passam. Os cheiros são a melhor forma de se sofrer. Cheiro a cozinha onde um dia a vida. Onde um dia o sonho. Eu menino na cozinha cheia do avô, da avó e dos tios. Eu menino a sonhar com eu grande, grande como os tios – «um dia vou ser rico e comprar muitas coisas». Eu menino a querer crescer.

Ninguém merece um corpo que cresce.

E a perda. A miserável da perda. A avó com um cancro dentro. O avô a ceder a cada dia que a sua Maria se ia. E os tios e as rugas. Todos a irem a cada dia em que eu crescia. E tudo morre quando nos morrem os sonhos.

Ninguém merece ficar para além dos sonhos.

E já não há avó e já não há avô. Há o cheiro da cozinha quente com os meus sonhos dentro. O cheiro do quarto onde me escondia, debaixo da cama, para ver os adultos falar. As palavras novas, palavras grandes, palavras feias. O abraço apertado do tio André – «estás a ficar um mocetão, rapaz» – nas minhas costas de criança. A casa vazia com o que sou dentro.

Ninguém merece sobreviver ao que mata.

E ter um pai e uma mãe. Só quando a casa se esvazia é que se sabe o que vale um pai, o que vale uma mãe. E não interessa o que foi, o que ficou por ser. Não interessam as palavras que um dia dissemos, os erros que um dia não evitámos cometer. Não interessa a voz grossa do pai – «tens de ser um homem a sério» – nem a dor muda da mãe. Não interessa o que se perdeu quando se tem um pai e uma mãe para apertar. Ainda estamos, mãe. Ainda estamos, pai.

Ninguém sabe o que é perder quando ainda tem uma mãe e um pai para abraçar.

E enquanto tiver os vossos ombros para pousar nenhuma lágrima morrerá solteira.

Pedro Chagas Freitas in "Prometo falhar"