sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Amanhã fico triste, hoje não...

A acolitar o Padre Caetano no casamento do senhor amigo, referido neste texto.


Estávamos em 1958 quando comecei a servir como acólito (ou sacristão) na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Beirã. Era pároco recentemente ordenado, o reverendo Joaquim Caetano – hoje de avançada idade mas ainda completamente lúcido a residir já no Lar para Sacerdotes do Seminário de Portalegre – e foi ele que me escolheu para substituir o António Sarzedas que chegado a meio moço não queria continuar. Para além dos meus pais, aquele reverendo sacerdote ensinou-me coisas e transmitiu-me valores tais que também a ele fiquei a dever muito do que fui pela vida fora quer como homem quer na formação do meu carácter e integridade. Por isso guardo até hoje uma amizade, um respeito e uma consideração sem limites, por ele.

Voltemos um bocadinho atrás no tempo. Contava muitas vezes a minha falecida Mãe que desde mui tenra idade, com 2 ou 3 anos apenas, eu desatava a correr rua abaixo mal ouvia repicar os sinos da igreja:

- Zéi, mas onde on’dé q’tu vas a correr tanto? Anda ma'sé p’ráqui antes que leves alguma nalgada…

- Ia à "misha", Mãe. Ia à "misha"…

Tinha que ser assim. Tudo indica que o meu fascínio pelo divino começou logo na inocência da mais tenra idade.

Veio então, dois ou três anos depois, o convite para acólito do padre Caetano que me tratava quase como a um filho. E porque os meus pais não tinham posses para me comprarem roupas novas, era ele quem comprava os tecidos e mandava fazer as minhas vestes domingueiras às costureiras que naquele tempo abundavam na aldeia, para o acolitar devidamente aprumadinho com calções ou calças de terilene, camisas de popeline, casacas e blusões. Até os sapatos domingueiros me trazia também da fábrica Ebro de Santo António das Areias, pois por norma eu andava de pés descalços durante a semana e para os domingos só tinha umas sapatilhas de contrabando, de fraco pano e muito fatelas.

Não haverá já por cá muita gente que se recorde destas coisas e as que houver se calhar não irão ler as minhas memórias porque ou já serão bastante idosas ou nem saberão ler. A propósito desta narrativa, aconteceu uma coisa curiosa no final da primeira Missa Vespertina da nossa paróquia. Saíamos da igreja eu e o novo Pároco quando apareceu um antigo e respeitável amigo - o Senhor Nicau - que fazia anos nesse dia. E entre outras coisas que conversou com o Senhor Padre Marcelino, disse-lhe também:

- Aqui o “nosso” Zé Manel foi o sacristão do Padre Caetano no meu casamento. Está lá nas fotografias! Ora se eu faço hoje 77 anos, veja lá o senhor padre há quantos anos isso foi…

Saíamos, escrevi eu, da primeira missa vespertina da Paróquia da Beirã. E fui propositadamente buscar algumas das minhas memórias para utilizar em jeito de introdução àquilo que vou escrever a seguir.

Sucedeu nesse dia o que há muito se previa mas sempre acreditámos demoraria ainda algum tempo a acontecer. Os sinos da igreja da Beirã que desde julho de 1943 tocaram ininterruptamente todas as manhãs de domingo por cerca das onze horas a convocar os fiéis para a missa, calaram-se a 10 de Setembro de 2016 para esse efeito, provavelmente para sempre. Como dizem os Evangelhos “a vinha do Senhor é grande e os trabalhadores são poucos”. Foram exatamente essas as circunstâncias que precipitaram e obrigaram a redesenhar o mapa dos acontecimentos com a inesperada partida para a eternidade do Reverendo Padre Luís Ribeiro. Tentando manter vivas as comunidades cristãs dentro dos curtíssimos limites do humanamente possível, a habitual Missa Dominical da Beirã teve que passar à categoria de Vespertina no final das tardes de sábado. Foi o melhor que conseguiu planear o novo Pastor que o veio substituir.

Não sendo nada fácil para ele, o nosso dever é não só acatar a nova realidade como também ajudá-lo. Pelo meu lado, embora a minha saúde não esteja por aí além muito famosa já, continuarei a fazer o que sempre fiz desde 1958. Mas fiquei triste. Inevitavelmente. São já quase incontáveis as perdas. Foram-se os entes queridos, quase todos os vizinhos e muitos bons amigos. Até os comboios que, não sendo gente, eram a vida e a alma desta aldeia. Nunca imaginei que amava sem dar por isso o agudo apito das ruidosas locomotivas pois só o descobri quando elas deixaram de vir e apitar. No dia 10.09.16 foi-se também a missa dominical, aquela cujo repicar dos sinos me fazia desatar a correr rua abaixo há mais de sessenta anos atrás. 

Neste momento a melhor forma de vos dar conta do meu estado de espírito talvez seja reescrever o poema encontrado na parede de um dos dormitórios para crianças do campo de extermínio nazi de Auschwitz:

“AMANHÃ FICO TRISTE… AMANHÃ!
HOJE NÃO… HOJE FICO ALEGRE!
E TODOS OS DIAS, POR MAIS AMARGOS QUE SEJAM, EU DIGO:
AMANHÃ FICO TRISTE, HOJE NÃO…”

 José Coelho
In Histórias do Cota
(resumido)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Meu vício de ler...

Imagem copiada do Google

Desculpe estragar a festa, mas o Natal não existe


Há uma ideia generalizada de que o Natal é a comemoração do nascimento de Jesus. Desculpe estragar a festa, mas Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro nem há 2018 anos atrás. Então vejamos.

No tempo do Império Romano, havia uma festa dedicada a Saturno (deus grego Cronos/tempo e da agricultura), denominada de Saturnalia, marcando o solstício de inverno. Era uma data muito importante para os povos agrícolas, como o caso dos romanos. Uma festa popular, para agradar os deuses e pedir que o inverno fosse brando e o Sol retornasse ressuscitado, no início da Primavera, o renascimento da vida. O culto solar era celebrado nos dias 24 e 25 de Dezembro, data de nascimento da divindade. Era um período de suspensão do trabalho, de visitar parentes e amigos, de ser generoso, solidário, de oferecer prendas. Isso lembra o Natal, não?

No século IV, o politeísta imperador Constantino converte-se, oficializa o Cristianismo e nasce, assim, a Igreja Católica. Absorveu e ressignificou práticas pagãs diversas; neste caso, o festejo pagão da Saturnalia, transformando-o numa celebração cristã. O Papa Gregório XIII, no século XVI, com a criação do calendário gregoriano, fez o resto. A partir daí, o nascimento de Cristo (que não nasceu no dia 25 e ninguém sabe a data exata) começa a ser celebrado pelos cristãos.

Portanto, o Natal não existe, pelo menos não da forma como a maioria imagina – o nascimento do menino Jesus.

Em que se transformou, hoje, esta antiga data pagã?

Uma cultura do consumo. Capturada pelo comércio, a data é para vender coisas, na sua grande maioria supérfluas. Uma agressiva propaganda na televisão, jornais, revistas, na internet, provoca uma azáfama, planos, listas de compras, centros-comerciais lotados, lojas abarrotadas de gente, ávidas para comprar. As crianças de hoje, exageradamente mimadas, exigem e obtêm, um sem número de prendas. Às vezes, são tantas que não conseguem abri-las todas ou valorizam mais as embalagens do que os próprios brinquedos.

É a época dos políticos e governos, maioritariamente corruptos, que passam o ano a roubar e a esbanjar os impostos e, nesta data, mandam belas mensagens e participam em jantares junto com os pobres, com os sem abrigo, miseráveis estes que os próprios políticos e agentes do governo criaram (ou ajudaram a criar) ao desviar o dinheiro que poderia garantir a comida e o bem-estar deles o ano todo. É lógico que esta ‘solidariedade’ natalina dos políticos deve ser sempre acompanhada por uma ampla cobertura da imprensa.

É a época das pessoas famosas, do jet-set, atores/atrizes, jogadores de futebol, que passam o ano a ganhar milhões e a sonegar impostos (prejudicando os contribuintes e os mais pobres), aparecerem na TV em programas ‘beneficentes’ para dar a entender que são solidários. Ficam sempre bem vistos perante a sociedade.

As autarquias gastam imenso dinheiro com enfeites de Natal e deixam os desabrigados a dormir na rua. Por exemplo, Lisboa gasta todos os anos mais de um milhão de euros, quantia que dava para abrigar/proteger, tirar da rua, definitivamente, todos os moradores de rua da cidade.

Todos, decisores políticos ou não, deviam assistir o emocionante filme Cardboard Boxer (2016) para ter uma ideia da vida miserável destes excluídos da sociedade. Mas há outros marcantes filmes do género: deixem para lá o já cansativo Sozinho em Casa (1990), que repete todos os anos, e assistam The Saint of Fort Washington (1993), Accidental Friendship (2008), The Soloist (2009), Time Out of Mind (2014), alguns baseados em dramáticos factos reais e todos expondo, de maneira super realista, a extrema dureza da vida de uma pessoa sem um lar para chamar de seu e sem um Shelter (2014), um endereço fixo, para mandar uma carta ao Pai Natal.

O que podemos fazer então para celebrar o Natal? Simples: é ser (genuinamente) solidário com os mais necessitados e, seguindo os verdadeiros ensinamentos de Cristo, respeitar e amar uns aos outros. E, se pensarmos bem, por que é que temos de esperar pelo Natal para fazermos isso? Ah, e o mais importante de tudo: não precisamos de dizer a toda a gente e postar no Facebook as fotos da generosidade. Não se esqueçam da lição de Antoine Saint Exupéry, no Principezinho: “o essencial é invisível aos olhos”.

Donizete Rodrigues, Professor de Sociologia, Universidade da Beira Interior, in Observador.pt - 22.12.2018

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Meu vício de ler...



São demasiado pobres os nossos ricos

A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.

A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos «ricos». Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios na cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.

O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas, muito convexos e estradas muito concavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.

As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. Por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam. O fausto das residências não os torna imunes. Pobres dos nossos riquinhos!

São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam de ser sustentadas com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.

Mia Couto

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Respeito e solidariedade por quem nos defende...

 Foto José Coelho

Toda a gente sabe que as actividades policiais das forças de segurança nunca param dia e noite. E quem assegura esse funcionamento 24 sobre 24 horas de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro seja Natal, Páscoa, ou fins-de-semana?

Pois é!

Enquanto o cidadão comum em Dezembro consoa feliz o seu natalício bacalhau e as filhós no aconchego familiar ou degusta depois na primavera o pascal cabrito assado no forno e se diverte, outros cidadãos exactamente iguais a eles mas menos comuns nos direitos e deveres, têm, nessas noites e nesses dias, que permanecer nas ruas, estradas, esquadras e postos, prontos para acorrer a qualquer anormalidade no desempenho da complexa profissão que deles exige disponibilidade total e permanente.

Ah pois… E coisa…  Foram para lá porque quiseram, são pagos para isso, estão lá porque querem, se não gostam vão-se embora…

É fácil e corriqueiro tirar tais conclusões que não passam de mera retórica. Difícil é conseguir perceber-se o respeito que merece o desempenho de tão exigentes e nada fáceis funções. Mais difícil ainda é perceber a intolerância geral perante qualquer falha, erro, ou omissão cometidos por algum agente da autoridade, deixando de se ter em conta que sob cada farda se encontra um falível Ser Humano - como todos os outros - sujeito a cometer faltas ou omissões, o qual, como qualquer outro, deveria sempre também ser merecedor de humana compreensão.

É para mim sumamente confrangedor verificar frequentemente como alguns marginais capazes de darem um tiro e matar uma pessoa à queima-roupa para a roubarem depois, facilmente são considerados, com a maior tolerância e leviandade "indivíduos problemáticos com dificuldades de inserção social” gastando-se milhares de euros do erário público para os “ajudar” a reintegrarem-se, mesmo sabendo-se de antemão que não vai resultar.

Em contrapartida, um agente da autoridade que precise efectuar um disparo com a arma lhe está distribuída como ferramenta no desempenho das suas funções e para dela fazer uso no integral cumprimento do seu dever conforme está transcrito na lei "... em defesa da sua própria integridade física ou de terceiros, para impedir ou evitar por todos os meios ao seu alcance o cometimento de crime iminente ou em já em curso..." mas se dela tiver que fazer uso, logo a seguir o seu comportamento é analisado ao pormenor por meio mundo a começar de cima e imediatamente é crucificado na praça pública, ele sim vítima depois de burocracias absurdas, de conclusões fáceis, cómodas e popularuchas que o "condenam" porque “excedeu” ou “abusou” da sua autoridade e competência. 

Não faz sentido! Cá para mim, sinceramente, os valores fundamentais neste nosso País andam completamente invertidos, ou a ser muito mal interpretados. 

E quando tais coisas acontecem, quem vem dar a cara em defesa do agente da autoridade?

A cadeia hierárquica de comando? 
Sim! Normalmente para, pública e pomposamente, anunciar que já foi instaurado um processo de averiguações para o cabal apuramento de responsabilidades.

A Comunicação Social? 
Muito pelo contrário porque, naturalmente, ela precisa da notícia para vender o produto, e, para o conseguir, todos os meios justificam os fins. Não há deontologia profissional que valha.

A Opinião Pública? 
Pior um pouco! Se uma voz disser “matem-no” outras cem dirão em coro “esfolem-no”…

Porque será que tantos guardas e polícias se têm suicidado ultimamente?

Será porque…
- São devidamente apoiados?
- É uma profissão muito compensadora?
- É fácil?
- Passam a vida de papo para o ar a gozarem os seus chorudos rendimentos de pouco mais que o ordenado mínimo nacional?

Já fui um deles. Por isso os compreendo tão bem e os defendo publicamente com unhas e dentes. Eu também errei inadvertidamente algumas vezes. Quem é que nunca erra? Só posso garantir com absoluta certeza que nunca agi deliberadamente dessa forma. Nem para exceder o uso da minha autoridade. Nem para impor a minha vontade. Nem por simples maldade, arrogância, desleixo ou má fé.

Errei porque estava… a trabalhar. Errei porque estava… no desempenho das minhas legais funções nas quais fui, como todos eles, publicamente investido. Porque estava, decerto também, a cuidar do superior interesse da comunidade ou de alguém que individualmente necessitava de ajuda. Errei porque sou humano e como tal imperfeito. Como todos vós que estais a ler isto neste momento e também todos aqueles que apregoam moralidade mas não sabem ver-se ao espelho nem sabem pôr a mão na sua própria consciência.

Todos erramos.

A terminar por hoje, poderia referir a minha extensa folha de serviços prestada à Causa Pública durante os anos em que a servi, os quais foram hierárquica e publicamente reconhecidos de diversos modos e na qual não existe a menor mancha nem consta a mais ínfima irregularidade. Antes pelo contrário. Poderia, mas não vou referi-la. Apesar de me haver sensibilizado muito o seu reconhecimento por diversas entidades, não me envaideci. Senti sempre que apenas cumpri com o meu dever no cabal desempenho das obrigações profissionais. 

Basta-me a consciência tranquila e a paz de espírito que me proporcionam a mais absoluta serenidade no meu viver de cada dia. Mas continuo a ser e serei sempre, solidário com quem lá continua, 24 sobre 24 horas, 365 dias por ano, a dar o seu melhor pela segurança e tranquilidade de todos nós.

José Coelho
07.11.2019

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

No teu dia e onde estiveres, um abraço cheio de saudades, Pai...

António Maria Coelho 
05-11-1910 // 23-01-1994

"Desde que chegara a Lisboa, eu estava muito piegas. As lágrimas assomavam-me aos olhos por tudo e por nada inexplicavelmente. E acho que nunca mais me curei da pieguice de que nada me envergonho por ser coisa que herdei do Pai, o qual, muitas vezes e com a maior facilidade, chorava. Bastava dar-lhe um beijo ou um abraço ou fazer-lhe um carinho qualquer. Fossem os filhos ou os netos. Penso que por ser pessoa tão bondosa, comovia-se facilmente e muitas vezes sem qualquer razão aparente.

O elegante comboio azul TER chegou por fim à estação de Castelo de Vide, a penúltima antes da Beirã. Faltava um quarto para as onze. A paisagem tão querida e tão familiar começou a desenrolar-se diante dos meus extasiados olhos. Que delícia! Que saudades eu tivera das minhas pedras, dos meus sobreiros e giestas, daquele aroma cálido e perfumado dos campos secos do início do verão, longe do húmido, pegajoso e interminável verde, da floresta tropical.

Parecia ainda quase um sonho mas ali estava Castelo de Vide de um lado da linha, e, do outro, os canchais pontilhados de carvalhos, sobreiros, oliveiras, hortas e casas brancas isoladas, aqui e além. Era mesmo verdade. Ia no comboio que me levava finalmente para casa, para junto de todos os entes queridos. Passámos a Ponte das Águas e mais além avistei o Monte da Broca com a grande e sempre tão bem cuidada horta do Pai.

Ufff…

Ainda hoje me arrepio com essa recordação!

Logo a seguir o campo da bola e o Penedo da Rainha. E lá vinha ele quase a correr pela estrada do Pereiro antes da cancela da passagem de nível. O meu Pai! E a porra da janela do TER que não abria! O comboio era climatizado por isso as janelas eram de vidros fixos! Fiz-lhe adeus. Ele viu, conheceu-me e fez-me adeus também. Depois de tanto tempo. Depois de ter temido tantas vezes não voltar a abraçá-lo.

Poucos minutos depois, especado à porta da nossa casa, ofegante ainda pela correria desde a horta, aguardava-me com os olhos marejados de grossas lágrimas. 

- Meu querido Pai...

- Até que enfim, filho! 

Abraçá-mo-nos um ao outro a chorar parecendo duas madalenas arrependidas como se ainda temêssemos que fosse mentira num inesquecível momento de mútuo carinho que guardarei na memória o resto da minha vida..."


José Coelho 
in Histórias do Cota 
(excerto)