sábado, 31 de dezembro de 2022

O tempo passa e a vida também. Sejam felizes

Foto Manuel Coelho

O tempo! Esse cavalo veloz que parece trotar tão devagarinho quando somos moços e temos aquela inexplicável pressa de chegar a adultos, mas que, chegando lá, a vida parece ganhar asas. E ainda não é ano novo já se vislumbra o carnaval, a semana santa e a páscoa para logo a seguir chegar o verão. Mas passado Agosto, os dias dão em minguar e não tarda estamos na festa dos Santos já com o Natal a acenar-nos no horizonte.

A vida é demasiado breve. Porém quase todos nós só damos conta dessa dura realidade depois de ela já ter passado. Eu sei que esta afirmação é um lugar-comum mas nem por isso deixa de ser uma inquestionável verdade. Quem de nós não pensou, não admitiu até que, se pudesse voltar atrás, não faria isto, ou aquilo, ou aqueloutro da forma como o fez, convencido de que se tivesse agido de maneira diferente, talvez tivesse sido mais feliz. 

Mas será que teria sido (passe a redundância) assim? 

Sou crente em Deus, professo uma convicta e profunda fé. Acredito que nada acontece por acaso nesta vida e que cada um de nós vem ao mundo com um determinado caminho para percorrer. Esse caminho a que muitos chamam destino, mas eu prefiro chamar-lhe coragem, empenho, querer, e talvez também porque não, alguma sorte. 

Sendo ainda também certo que a família, o meio ambiente e as condições em que cada pessoa nasce, cresce e se desenvolve até à idade adulta, contribuem decisivamente para a formação mais ou menos equilibrada de cada pessoa, não é menos certo que o caminho que cada um escolhe é da sua inteira e exclusiva responsabilidade quase sempre, ressalvadas algumas excepções, porque as há.

Chegado que estou a já mais de metade da minha caminhada, apraz-me sentir e honestamente afirmar-vos que, graças ao Deus em quem acredito e confio, se fosse possível a tal quimera de voltar atrás no tempo, pouco ou nada mudaria em tudo aquilo que até hoje foi a minha vida, o meu percurso, a minha história. 

Nem sempre foi fácil, mas nunca me deparei com obstáculos impossíveis de vencer. Muitas vezes foi necessário encher-me de coragem e de determinação, à mistura com algumas lágrimas amargas, mas consegui sempre vencer as dificuldades para alcançar as metas e objetivos que me propus conquistar.

Tenho por isso, há muitos anos, o hábito diário de, antes de adormecer, dar graças pela vida que tão generosamente me foi tão concedida, pelos pais maravilhosos que tive, pelos avós que tanto me acarinharam e a quem tanto amei também, pelas irmãs amigas, pela esposa companheira e mãe extremosa dos nossos filhos, doce e dedicada avó das nossas netinhas. 

Mas não só, porque fui ainda também agraciado por uma legião de excelentes tios e tias, primos e primas quer da família materna, quer  da paterna, o que, tudo em conjunto, me faz sentir o privilégio raro de ter merecido das mãos do meu Senhor as maiores bençãos que qualquer ser humano almeja alcançar. 

Resumindo, sou profundamente grato por toda a minha existência. E quanto mais vivo, mais aprendo e agradeço. Não tendo sido de modo nenhum uma vida isenta de dificuldades, foi minimamente decente e feliz. Não necessito, por isso mesmo, de muito mais do aquilo que já tenho. Contudo, depois de humildemente dar graças ao Senhor pelo que continuo a receber cada dia, não deixo de lhe pedir também que me ajude a ser merecedor da Sua infinita bondade. 

O tempo que entretanto já passou por mim faz com que se anunciem por aqui já muitos vestígios de desgaste físico, velhice e consequentes sequelas. Mas cá vou andando calmo e sereno para aceitar, enfrentar e tentar resolver, dentro do possível, tudo o que vier segundo os planos divinos do Criador

Desejo a toda a minha Família e Amizades um bom fim de ano 2022 e que entrem em 2023 com o pé direito, que tenham muita saúde, sorte e felicidades. Para o Mundo que habitamos, peço aquilo que a todos nós parece uma utopia. A Paz indispensável para que cessem todas as guerras e desse modo os homens consigam ser irmãos. 

José Coelho
31.12.2022

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Pai

Três Coelhos duma assentada


"Escrevo para que outros filhos e outros pais não se esqueçam de que tudo passa, menos o amor. No coração de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos de amor. No coração dos filhos também.

Nem todos temos a experiência de sermos pais, mas todos temos a experiência de sermos filhos. Mesmo aqueles que perderam os pais demasiado cedo ou nunca chegaram a conhecê-los, e até aqueles que foram abandonados ou mal amados sabem a importância dum pai. Na ausência ou em presença, pai é pai. A sua marca é indelével e a sua influência (ou a sua carência) estende-se pela vida fora.

Um verdadeiro pai ajuda a crescer, educa, estrutura o carácter, ensina coisas banais e especiais, tem paciência para ouvir, enche de confiança, mostra mundos novos, consola na tristeza, alegra-se com as alegrias, leva pela mão, protege, sabe sempre como espantar os medos e convocar a coragem, conta histórias antigas, fala dos avós e de outros tempos, diz coisas que mais ninguém diz e faz coisas que mais ninguém faz. Um bom pai faz perguntas directas, não evita as conversas difíceis, diz o que tem a dizer mesmo quando isso lhe custa e, tal como os bons mestres, espera que os filhos percebam mais à frente aquilo que nem sempre conseguem compreender ou aceitar de imediato.

Quem teve a sorte de ser filho de um bom pai sabe que é um homem capaz de tudo isto e muito mais. Capaz de ralhar e perder a cabeça, também, mas com a mesma verdade com que abraça e pega ao colo. Um homem aprende a ser pai com o seu primeiro filho, mas não se relaciona do mesmo modo com todos. Pode ter os mesmos critérios e tentar ser igualmente justo, mas se for realmente um pai bom, sabe que tem que ser único e especial para cada filho. E procura tratar cada um de forma diferente, justamente por serem todos iguais no seu coração. A igualdade nas famílias, como fora delas, mede-se pela forma diferenciada como cada um é tratado. À medida de cada um. Nem mais, nem menos.

Não ter pai ou não guardar a memória de um pai é um drama. Uma ferida que nunca sara e pode ficar aberta para sempre. Atravessar uma vida inteira sem a sua presença, ou perdê-lo demasiado cedo, é uma grande tristeza. Um pai faz uma falta terrível. Para tudo. Para dar colo, para ensinar a andar e até a nadar, mas também para orientar e dar exemplo. Para que os filhos possam aprender com ele a lidar com as conquistas, mas também a viver a dor e os sofrimentos. A mãe e outras pessoas igualmente queridas podem estar presentes nos momentos marcantes ou inaugurais dos primeiros passos, das primeiras braçadas ou das primeiras pedaladas numa bicicleta sem rodinhas, mas não é a mesma coisa. O orgulho de um pai, quando sente no filho a confiança para caminhar, para nadar ou para desatar a andar sozinho de bicicleta é inigualável. Todos os filhos pequenos mereciam ter um pai para estes e outros momentos de viragem, mas muito mais importante que tê-lo para as coisas inaugurais, é contar com ele para as gargalhadas e as lágrimas, sabendo-o próximo todos os dias, durante longos anos.

Infelizmente nenhum pai dura para sempre. Nunca saberemos quando será o seu último dia, mas esse dia chega muitas vezes quando menos esperamos. Acordamos com pai e adormecemos órfãos. Assim mesmo. E no momento em que o perdemos, percebemos que não estávamos preparados. Por mais velho que seja, parece que nunca é suficientemente velho para partir. Egoisticamente apetece que fique connosco muito mais tempo, até para podermos ainda reparar alguma coisa que, porventura, precise de ser reparada ou feita de novo. Ser pai e ser filho implica perdoar e ser perdoado. Exige aceitação e perdão, pois nenhum pai é perfeito e nenhum filho é sem mancha. E o tempo é, como dizia Yourcenar, um grande escultor. O tempo serve para nos afastarmos e voltarmos a aproximar, porque há realmente um tempo para tudo. E é esse tempo que apetece aproveitar, mas nem sempre nos é dado. Ou não é dado a todos na mesma medida.

Uma das grandes marcas que ficam para a vida são as memórias das conversas e dos abraços de pai, seja quando os pais são de abraçar com naturalidade, seja quando nem sequer têm facilidade para o fazer. Se o abraço demora ou custa a chegar, sabe ainda melhor. Mas tão vital como receber abraços é (re)aprender a dá-los. Na idade adulta a vida torna-se tão acelerada e tão exigente, que demasiadas vezes esses abraços ficam por dar. E muitas palavras ficam por dizer, também. Quando pais e filhos deixam de morar juntos, tudo se complica. As visitas nem sempre são regulares, a distância parece que aumenta (e em certos casos aumenta mesmo, de forma radical) e tudo é feito numa vertigem.

Acontece que os pais não são eternos. Não duram para sempre, embora nos custe acreditar nessa realidade. Se tivemos a sorte de ter uma vida longa com pais presentes e próximos, eles chegam a parecer-nos eternos. Mas não é verdade. Os pais morrem e nós nunca saberemos o dia. Essa é a nossa única certeza. Tarde ou cedo, quando acontece sentimos que o mundo se torna um lugar estranho. Ao perdermos o pai, perdemos protecção. Mesmo quando o pai não era de proteger os seus filhos ou, pelo contrário, os enchia de preocupações, a sensação é sempre de perda irreparável. Se era um bom pai, perdemos o nosso escudo protector, a nossa grande referência, o nosso maior e mais forte abraço. Se o pai não era como gostávamos que fosse, também perdemos a ilusão de um dia podermos chegar a um ponto de equilíbrio ou até de reconciliação (nem que fosse uma reconciliação com o pai real, deixando para trás o pai ideal ou idealizado).

Porque os pais morrem e nunca saberemos o dia, nem a hora, importa ter muito presente esta verdade. Faz diferença vivermos com esta certeza, para não nos acontecer deixar alguma coisa por fazer ou por dizer. O meu pai morreu na semana passada, quando absolutamente ninguém esperava. Moramos juntos nos últimos anos e vivemos todos na mesma casa durante o tempo suficiente para que nada de essencial ficasse por dizer ou fazer, mas mesmo assim a perda é irremediável. Por isso escrevo para que outros filhos e outros pais não se esqueçam de que tudo passa, menos o amor. No coração de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos de amor, mesmo os mais ínfimos. No coração dos filhos também".


Laurinda Alves 
in Observador - 14-3-2017

Foto 
Ana Batista

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Fiz o que melhor que fui capaz

Foto Pedro Coelho


Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais


Nascemos filhos. E esperamos ser filhos para sempre. Mimados, educados, amados. Que os nossos pais invistam doses cavalares de amor em todo o nosso caminho pela vida. Que quando a vida doer, haja um colo materno. Que quando a vida angustiar, encontremos neles um conselho sábio. E, quando isso nos falta, há sempre uma lacuna, um sentimento estranho de sermos exceção.

Mesmo adultos, esperamos reconhecer a nossa meninice nos olhos dos nossos pais. Desejamos, intimamente, atenções miúdas, como a comida favorita no dia do nosso aniversário ou uma camisola do nosso clube de futebol se estamos em casa deles.

Não estamos prontos para trocar de lugar nesta relação.

É difícil aceitar que os nossos pais envelhecem. Entender que as pequenas limitações que começam a apresentar não são preguiça nem desdém. Que não é porque se esqueceram de dar um recado que não se importam com a nossa urgência. Que pedem para repetirmos a mesma frase porque já não ouvem bem, porque às vezes, não está surdo o ouvido, mas distraído o cérebro. Demora até aceitarmos que não são já os mesmos super-heróis, que não podemos já dividir toda a nossa angústia e todos os nossos problemas porque para eles as proporções são ainda maiores e tudo se desregula: o ritmo cardíaco, a tensão, a taxa glicémica, o equilíbrio emocional.

Vamos ficando um pouco cerimoniosos por amor. Tentando poupá-los ao que é evitável. Então, sem querer, começamos a inverter os papéis de proteção. Passamos a tentar resguardar nossos pais dos abalos do mundo.

Dizemos que estamos bem, apesar da crise. Amenizamos o diagnóstico do pediatra para a infecção do neto parecer mais branda. Escondemos as incompreensões do casamento para parecer que construímos uma família eterna. Filtramos a angústia que pode ser passageira ao invés de dividir qualquer problema. Não precisam preocupar-se: estaremos bem no final do dia e no final das nossas vidas. Mas, enquanto mudamos esses pequenos detalhes na nossa relação, ficamos um pouco órfãos. Mantemos os olhos abertos nas noites insones sem podermos ir a correr chorando para a cama dos pais. Escondemos deles o medo de perder o emprego, o cônjuge ou a casa, para que não sofram sem necessidade e, aí, estamos sós nessa espera; não há colo, nem uma carícia para nos consolar.

Quanto mais eles perdem a memória, o vigor, a audição, mais sozinhos nos sentimos, sem compreender por que o inevitável aconteceu. Pode até surgir alguma revolta interior por esperarmos deles que reagissem ao envelhecimento do corpo, que lutassem mais a favor de si, sem percebermos, na nossa própria desorientação, que eles não têm a mesma consciência que nós, que não têm como impedir a passagem do tempo ou que possuem, simplesmente, o direito de se sentirem cansados.

Então pode chegar o dia em que nossos pais se transformem, de facto, em nossos filhos. Que precisemos de os lembrar que precisam de comer, de tomar os remédios ou de pagar uma conta. Que seja necessário conduzi-los nas ruas ou dar-lhes as mãos para que não caiam nas escadas. Que tenhamos que prepará-los e colocá-los na cama. Talvez até alimentá-los, levando o talher à sua boca.

E eles serão filhos piores do que nós fomos, porque se lembrarão que são os seus pais. Reagirão às suas primeiras investidas porque sabem que no fundo, você acha que lhes deve obediência. Enfraquecerão os seus primeiros argumentos e tentarão provar que ainda podem ser independentes, mesmo quando esse momento tiver passado, porque é difícil imaginarem-se sem o controle total das suas próprias rotinas. Mas cederão paulatinamente, quando a força física ou mental se reduzir e puderem encontrar no seu amor por eles, o equilíbrio para todas as mudanças que os assustam.

Não será fácil para você. Não é a lógica da vida. Mesmo que você seja pai, ninguém o preparou para ser pai dos seus pais. E se você não o é, terá que aprender as nuances desse papel para proteger aqueles que ama.

Mas, se puder, sorria diante dos comentários senis ou cante enquanto estiverem comendo juntos. Ouça aquela história já contada tantas vezes como se fosse a primeira e faça perguntas como se tudo fosse inédito. E beije-os na testa com toda a ternura possível, como quando se coloca uma criança na cama, prometendo-lhe que, ao abrir os olhos na manhã seguinte, o mundo ainda estará lá, como antes, intocável, para ela brincar.

Porque se você chegou até aqui ao lado dos seus pais, com a porta aberta para interferir em suas vidas, foi porque tiveram um longo percurso de companheirismo. E propor-se a viver esse momento com toda a intensidade só demonstrará o quanto é grande a sua capacidade de amar e de retribuir o amor que a vida lhe ofereceu.

Ana Gosling

Tuna Sénior de Marvão - Natal 2022

(1) Vídeo António Gil
(2) Vídeo Município de Marvão

Para mais tarde recordar...

Meus poetas favoritos


Há em tudo que fazemos
Uma razão (?) singular:
É que não é o que queremos.
Faz-se porque nós vivemos,
E viver é não pensar.
Se alguém pensasse na vida,
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento.
Mas nada importa que o seja
Ou que até deixe de o ser:
Mal é que a moral nos reja,
Bom é que ninguém nos veja;
Entre isso fica viver.

Fernando Pessoa
15.09.1933

Foto José Coelho
- 28.12.2022

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Bom Natal...


 
... a toda a minha Família, particularmente a que está longe. A todas as minhas Amizades de perto e de longe, mas também para quem não for, nem uma coisa, nem a outra. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Pela Cultura e pela Comunidade


"Farda" da Tuna Sénior de Marvão,
à qual temos a honra de pertencer desde 2019.
Fotos José Coelho - 18.12.2022

domingo, 18 de dezembro de 2022

Tarde memorável de partilha e convívio

Obrigado Tunas Séniores de Castelo de Vide, Arronches e Portalegre
Foto Silvina Candeias, a quem agradeço a partilha

Bora lá, Tuna Sénior de Marvão

Foto José Coelho - 18.12.2022
Cartaz - Município de Marvão
Foto - Igrejas Abertas - Marvão

sábado, 17 de dezembro de 2022

Bom fim de semana


Prezo-me o suficiente para me afastar de tudo o que não me faz bem.
Foto José Coelho - 17. 12. 2022

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Memórias (e amizades) perenes


Comandante do Posto da GNR de Nisa de 1985 a 1992


Dois anos depois da minha permanência no comando do posto de Nisa, mercê de porfiados esforços e de muito trabalho colectivo de todos os que ali prestávamos serviço, conseguimos pacificar um pouco a Zona de Acção sob a nossa responsabilidade. Até à minha chegada a escala de serviço seguia sempre o mesmo ritmo, os mesmos horários, os mesmos giros, ainda que muitos deles não fossem já sequer viáveis. Até a vizinhança do Posto sabia mais ou menos a que horas normalmente saíam e regressavam as patrulhas. 

Por isso, em primeiro lugar e durante os primeiros meses, dediquei-me a conhecer pormenorizadamente a enorme área do Posto, desde os locais mais povoados até aos mais recônditos, para poder, in loco, aperceber-me onde seria mais necessária a nossa presença assídua e onde ela se poderia restringir apenas a uma ou outra passagem lá muito de vez em quando. Interessava-me sobremaneira conhecer as acessibilidades de e para a Beira Baixa, de e para as áreas dos outros postos confinantes com o de Nisa, estudando hipóteses de poder, a tempo e horas, “cortar” o caminho à gatunagem que por ali proliferava, porque dava para perceber que não era “prata da casa” e que vinham de outras bandas com viaturas adequadas às suas intenções, carregavam tranquilamente o que roubavam nesses transportes e esfumavam-se mais tranquilamente ainda pelos inúmeros caminhos e atalhos da zona, muitos dos quais não eram policiados há anos. 

Muitas vezes lhes apanhei o rasto, que, não raro também, coincidia com os rastos recolhidos em roubos anteriores, porém, chegados às estradas alcatroadas, era impossível determinar o rumo que a partir dali tinham tomado. É que Nisa tem acessos que podem levar em pouco tempo para Espanha, para a Beira Baixa, para Portalegre, Elvas ou Estremoz, ou para Abrantes e Ponte de Sor, com enormes extensões desses mesmos percursos cobertos por enormes, contínuas e cerradas manchas florestais que permitiam a deslocação camuflada de uma estrada a Norte, para outra a Sul, Este ou Oeste.

Depois de me parecer que já conhecia mais ou menos a área e os pontos sensíveis, avancei para uma total remodelação dos giros das patrulhas, optimizando os meios disponíveis, muito razoáveis já nessa altura, porquanto tinha ao dispor, para a policiar, pelo menos duas patrulhas a cavalo diárias, outras duas apeadas, uma ou duas motorizadas e ainda mais outra auto, sem contar com a minha permanente participação nesse esforço quer de dia, quer de noite, pois assim que terminava as minhas tarefas diárias no gabinete logo me fazia também ao policiamento da área em conjunto com o restante pessoal.

Ensinei-lhes tudo o que sabia, tudo o que me tinham ensinado a mim, mas, sobretudo, fiz-lhes sentir que podiam contar sempre comigo para os ajudar no que eles não soubessem, assumindo com eles e por eles toda e qualquer responsabilidade desde que as coisas seguissem os trâmites legais e desde que eles agissem em conformidade com as determinações dimanadas do Código Penal, do Código do Processo Penal e de todas as leis e regulamentos aplicáveis, tendo em conta também a regra de ouro que consistia no expresso dever de imediatamente fazer saber ao detido a razão da sua detenção, bem como os seus direitos e deveres, formalidade que era fundamental nunca deixar de cumprir.

Dizia-lhes sempre:

- Ninguém deve tomar iniciativas, seja sobre o que for se não estiver bem dentro do assunto. Na dúvida, não se faz. Mas se temos plena consciência de que aquilo que se apresenta perante nós é um ilícito, seja criminal ou meramente contra-ordenacional, ninguém deve recear usar da competência em que está investido, pedindo, se disso necessitar, a ajuda que julgar conveniente e necessária para a boa execução daquele serviço.

Esse foi sempre o meu método de trabalho. Ensinar, responsabilizar, incentivar, mas, acima de tudo, valorizar e promover a auto-estima individual de cada um daqueles excelentes militares, pessoas disponíveis, generosas e de bem, que um dia resolveram, como eu, abraçar a profissão de representantes da autoridade do Estado para fazerem cumprir as suas Leis, tantas vezes incompreendidos não só pelas populações a quem servem o melhor que são capazes, como ainda também pelos chefes que os comandam e os tratam com desnecessária aspereza, como se eles fossem máquinas infalíveis, em vez de os estimularem com os seus ensinamentos, com o seu exemplo diário, com a sua ajuda, até mesmo com a sua amizade e compreensão.

Com essa forma de agir, consegui reunir à minha volta uma equipa extraordinária de belíssimos profissionais motivados, operacionais, responsáveis e muitíssimo competentes. Juntámos sinergias e os resultados não tardaram em se fazerem anunciar. Reduziu-se significativamente  o número de roubos, recuperámos coisas roubadas e sossegámos as populações. As patrulhas apareciam inopinadamente e a qualquer hora do dia ou da noite nos locais mais impensáveis àquelas horas e deixou de haver as velhas rotinas, passando a  estar cobertas as vinte e quatro horas de cada dia por patrulhas sempre no exterior.

E tanto podia ser para ir policiar o Arneiro a 15 km de Nisa às três da manhã, como podíamos aparecer na Barca da Amieira para ver se o Rio Tejo levava muita água ao quarto para a meia noite. De igual modo, tanto podia ser apenas uma discreta patrulha apeada mas estrategicamente autotransportada em tempo oportuno até às redondezas dos locais a vigiar, como uma patrulha a cavalo, motorizada ou auto. Ainda dentro da mesma estratégia, tanto podiam ser dois ou três guardas, como podiam ser dois cabos com dois ou três guardas e eu próprio à frente deles. 

Nunca, jamais ou em tempo algum, mandei os meus militares para a rua para o frio do inverno ou para o calor do verão, de dia ou de noite, deixando-me ficar comodamente instalado no conforto do meu gabinete. 

Nunca! 

Recordo, a título de exemplo, o recado que a minha esposa certo dia me deu:

- Zé, já reparaste que esta semana ainda não jantaste nenhum dia com os teus filhos?

Tinha razão, sim!

Mas comandar fazendo uso de um constante exemplo, era responsabilidade que me era exigida a mim, mais do que a qualquer outro militar daquele Posto. E jamais me demiti dela. Jamais. Poderia referir nomes de alguns desses mais de trinta profissionais de mão cheia que comandei e mantêm por mim, até aos dias de hoje, passadas são mais de três décadas, a sua amizade, a sua consideração e o seu respeito, o que muito me sensibiliza, orgulha e agradeço, retribuindo na íntegra a mesmíssima amizade, consideração e respeito a todos e a cada um deles.

Valeu a pena!


José Coelho 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Porquê?


Perguntaram-me:
- Porque tiras tantas fotos?

Respondi:
- Porque em vez de registar a vida dos outros, prefiro registar a minha!

Foto Manel Coelho
- 11. 12. 2022

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Gente fina é outra coisa

Selfie José Coelho - Lisboa, 12.12.2022

Dezembro, décimo segundo dia. Quatro e meia da madrugada o despertador põs-me a pé para desfazer a barba e tomar um duche, vestir-me, tomar o pequeno almoço e pegar no carro para percorrer os trinta quilómetros que separam a minha casa da Central Rodoviária de Portalegre, onde estaciono o meu C3 e apanho o Expresso para Sete Rios porque não me atrevo a ir de carro para aquele caótico trânsito da capital.

Com consulta marcada para as onze horas desde o passado mês de maio pelo o Dr João Varregoso, ilustre Cirurgião e Diretor da Unidade de Urologia do Hospital Lusíadas – Lisboa, que em junho de 2016 me extraiu um adenoma prostático e posteriormente enviou ao Instituto Ricardo Jorge para definir a sua categoria, o qual, depois de analisado, obteve daquele público e competente organismo, a classificação de “benigno”.

Felizmente.

Perito na matéria o digno cirurgião ordenou, mesmo assim, uma vigilância apertada, porque, conforme referiu ipsis verbis, “terra que produz batatas, raramente dá só uma” e por isso impunha-se ficarmos atentos. Nessa perspectiva tenho, desde então, de ir fazer uma bateria de exames pelo menos uma vez por ano, que se compõem de Análises Específicas ao Sangue com o respetivo PSA, uma Ecografia Renal e Suprarenal, outra Ecografia Vesical Suprapúbica, outra Ecografia Prostática Suprapúbica, uma Urofluxometria Com Avaliação Ecográfica De Resíduo Pós-Miccional, e, de quando em vez, mais um RX Pélvico.

Tudo isto resulta em várias horas de bexiga cheia, para o que tenho de ingerir um litro de água uma hora antes de cada exame e o que é, só por si, uma quase tortura, porque primeiro bebo, depois mandam-me fazer xixi no wc do gabinete médico onde faço os exames, para a seguir voltar à marquesa de bexiga vazia para nova ecografia, para a seguir voltar a beber outra garrafada destinada ao exame seguinte.

Uma delícia de manhãs, quase sempre. Mas como o Dr. diz que é necessário, vou e não refilo.

No primeiro ano pós-operatório tinha de ir de oito em oito dias, depois de quinze em quinze, depois de mês a mês, depois de três em três meses, depois de seis em seis, até que chegámos à periodicidade anual. Já indiretamente lhe sugeri a alta definitiva mas o Dr não acha prudente e que remédio tenho senão seguir o seu profissional conselho. E lá fui uma vez mais para trazer nova prescrição de todos os exames para outubro de 2023 seguidos da respetiva nova consulta.

Normalmente a minha marida acompanha-me tal como eu a acompanho sempre também nas suas consultas e tratamentos de Reumatologia e de Cardiologia naquela unidade hospitalar. Mas desta vez, por estar ainda bastante combalida de uma infeção respiratória agressiva em fase de tratamento, ficou em casa e fui sozinho, naquele que deve ter sido o dia mais chuvoso do ano. Saí de casa às cinco da manhã e regressei às oito da noite, sempre debaixo de chuva torrencial.

Até tive ainda também a sorte de apanhar uma valente molha entre o restaurante onde almocei e a estação do Metro do Alto dos Moinhos, paredes-meias com o Edifício 2 do Lusíadas. No resultado da consulta foi um dia bom, porque continua tudo bem, mas em termos de seca foi um dia para esquecer. O Metro estava caótico. A estação do Jardim Zoológico que serve Sete Rios estava a abarrotar de gente porque havia problemas na Linha Azul e em vez dos habituais cinco minutos de espera, passei vinte. E quando por fim a composição chegou vinha a abarrotar de gente e fui literalmente como sardinha em lata até ao Alto dos Moinhos, nos oito minutos que a viagem demora.

Cheguei ao hospital uma hora antes da consulta, mas na sala de espera não havia lugares vagos para sentar-me porque estava cheia. Como o ato médico fora marcado meses antes pelo próprio médico, a senha indicava: “Aguarde a chamada ao gabinete” não sendo necessário tirar senha para ser atendido primeiro no guichet, o que, dada aquela inédita afluência de gente demoraria bastante.

De súbito eis que entra na sala uma senhora com ares de fina a mandar bitaites, indignada, porque “aquilo” parecia um hospital público e mais assim e mais assado. Com ares de superioridade, a olhar para todo nós como se fôramos insetos. Quando finalmente foi chamada ao guichet pela ordem de chegada marcada pela máquina, voltou a exaltar-se com a funcionária que a estava a atender, não percebi bem porquê – se calhar pensou que estava a falar para a sua empregada lá de casa – e no meio da verborreia de falas finas bem mal-educadas, vociferou um “sim, porque nós pagamos a pronto”. E prosseguiu: “É uma vergonha um hospital particular atender pessoas da ADSE”.

Ninguém fez caso do histerismo da dita cuja, mas a mim apeteceu-me dizer que não sendo beneficiário da entidade que tanto a incomodava, sou de uma congénere, mas que, ainda assim, e tal como ela, tinha pago a pronto todos os exames que fiz na semana passada, do mesmo modo que iria pagar hoje a consulta do médico na sua totalidade porque a “minha” SAD/GNR já não tem acordo com o Serviço de Urologia do Lusíadas, isso para além de ser uma pessoa humana igualzinho a ela, com o mesmíssimo direito de ali estar, por mais que isso a incomodasse.

Cogitava eu, digo, não digo, quando irrompe na sala de espera outro personagem, aparentemente da mesma linhagem “fina” só que desta vez no masculino, o qual, sem sequer olhar para a máquina de marcação do atendimento como faz toda a gente quando chega, se dirigiu de rompante a um dos guichets onde estava outra pessoa a ser atendida e aos berros vociferou “tenho de ser atendido já, porque estou à rasca”. E a senhora do guichet, que no entender de todos quantos ali estávamos à seca, deveria ter-lhe dito que ali não era o banco das urgências, amavelmente – como sempre o fazem – disse-lhe que fosse à máquina para tirar uma senha prioritária, a última das opções que lá constava.

E ele foi. Soube exatamente para o que era aquela máquina para a qual não tinha sequer olhado, e como fazer.

E, mais caricato ainda, já de senha prioritária na mão, foi imediatamente encaminhado para um dos gabinetes, provavelmente o do médico especialista "daquilo" que ele vinha à rasca, passando à frente de quem ali estava há mais de hora e meia a aguardar a sua vez. Porém, o mais extraordinário daquela xico-espertice – porque outra coisa não foi – é que, após ter sido atendido “por vir à rasca” saiu do consultório fresco que nem uma alface e ficou depois na sala de espera a tagarelar com pessoas provavelmente suas conhecidas, com as quais ainda continuava a conversar quando eu saí do consultório do Dr João Varregoso onde entretanto tinha sido chamado e estive meia hora.

Ninguém refilou, ninguém disse nada. Mas eu, incapaz de me conter mais enquanto esperava a chamada ao guichet para pagar a consulta, dirigi-me ao “dondoca” disse-lhe olhos nos olhos:

- Como é evidente, o senhor vinha mesmo muito à rasca! Só hoje fiquei a saber porque é que se diz que gente fina é outra coisa!

O gajo olhou para mim com o mesmo ar de superioridade com que a “tia” nos tinha mirado a todos ao chegar e perguntou:

- Quem é você?

Calmamente – porque curiosamente quando me sinto desafiado costumo ficar estranhamente calmo – respondi quase num sussurro:

- Chamo-me José, sou Alentejano e com toda a certeza mais bem formado que o senhor!

Não obtive qualquer resposta.

E naturalmente mais nada disse também.

O gajo percebeu seguramente a razão do meu reparo direto e não quis mais conversa.

Entretanto fui chamado ao guichet para pagar a consulta e marcar os próximos exames que o Dr. me prescreveu. Quando de lá saí e olhei em volta, já o não vi na sala. Provavelmente teria feito melhor ter ficado calado como todas as outras pessoas, mas não gosto nada de ver fazer estas coisas. Estava uma senhora idosa na sala acompanhada da filha porque tinha consulta com um Dr Ângelo - dizia vezes sem conta - para as dez e um quarto. Eram onze e meia e ainda não havia sido chamada. Levantava-se e ia ao guichet reclamar de vez em quando perante a impaciência da filha. E do guichet respondiam-lhe "a senhora tem de aguardar".

Mas um burgesso daqueles, bem vestido e arrogante, foi imediatamente encaminhado para onde queria, bastando berrar que "vinha à rasca"?

Na minha terra, quando alguém diz que está à rasca, costumamos dizer-lhe que vá cagar, para aliviar.

Desde quando é que num piso só de consultórios se faz serviço de urgência?

 

José Coelho

domingo, 11 de dezembro de 2022

Paz, harmonia, bla bla bla...

Foto da net


Cada Dezembro que regressa é, entre outras efemérides, um ano a menos no tempo de vida que nos está destinado, o qual, indiferente a todos os nossos projetos ou sonhos, passou, passa e continuará a passar, sem se deter um instante. E nós, muitas vezes mais indiferentes ainda do que ele, nunca projetamos ou sonhamos viver cada dia da nossa vida como se fosse o último, preferindo, quase sempre, adiar para depois. Assim chegamos ao depois, onde ficaremos a olhar para trás com imensa nostalgia quando percebermos tudo o que podíamos ter feito melhor e não fizemos. 

- Ah se fosse agora eu já não fazia igual! 

- Ah se eu soubesse o que sei hoje! 

- Pois! Sopas depois do almoço...

Somos assim. Não sabemos desfrutar pacificamente quanto de bom nos rodeia. Não sabemos aproveitar o dom que nos é concedido de estarmos vivos. Preferimos complicar. E não me refiro só a mim, ou a vocês que me estais a ler, mas à humanidade inteira. Olhem o que temos vindo a fazer ao nosso planeta. Asfixiamos com gases tóxicos a sua atmosfera todos os dias, sem olhar a meios nem medir consequências. Vejam no que está a acontecer um pouco por toda a parte. Catástrofes nunca antes imaginadas. E diz-se que vai ser pior. Podíamos tê-lo evitado? Podíamos. Mas preferimos não fazer caso, porque nos habituamos à comodidade. Se para hoje há, para amanhã Deus dará.

E não somos só maus hóspedes para com a natureza. Somo-lo também uns para com os outros. Pensem quantas guerras em curso. E as devastações que provocam. Quantos milhares de mortos, estropiados, refugiados. Ah e tal, é lá longe, no outro lado do mundo, do mal o menos. Seria pior se fosse cá! Vemos todos os dias, em todos os noticiários. Coitados! Lamentamos. Mas se calhar até mudamos de canal porque "aquilo" incomoda a nossa sensibilidade, o nosso íntimo. No entanto, por lá, o inferno continua. Gente sem ter o que comer, onde dormir, sem segurança. Crianças que nascem, vivem e morrem naqueles caos. E por isso fogem. E por isso pedem auxílio. 

Mas (quase) ninguém os quer à porta.

Não fazer ao outro, o que não queremos que nos seja feito a nós! Beatices, dizem alguns! São? Talvez! Mas a possível beatice em nada lhe subtrai importância, ou minimiza a justiça e verdade que esse ensinamento encerra. Fazer a alguém o que não gostamos que nos façam a nós, é da mais aberrante hipocrisia, da mais censurável injustiça. E as guerras são (quase) todas fruto da ganância humana. Da força bruta sobre os mais fracos. De interesses económicos que não olham a meios para conseguir os fins. Toda a gente sabe quem, quando, onde, como e porquê, está por detrás delas. Mas isso não interessa para nada porque o que realmente interessa é "alimentar" o fabrico de armas e mostrar o músculo militar dos donos do mundo.

Entretanto, no meio de tanta imundice e sofrimento que grassa pelo planeta, muito antes de chegar Dezembro, logo a seguir ao dia de Todos-os-Santos começam os anúncios, a publicidade, o enfadonho dlim-dlam-dlom dos sininhos pseudomusicais, os jingle-bells estereotipados, a catadupa de brinquedos e guloseimas natalícios por tudo quanto é superfície comercial. De tal modo que, quando a quadra festiva finalmente chega, estamos todos saturados e cheios de natal até aos cabelos. O verdadeiro Natal não é, nunca foi, a "coisa" aberrante em que este novo e desenfreado consumismo o transformou. 

Para mim, para muita gente do meu tempo, a quadra natalícia por excelência começa apenas na Senhora da Conceição e termina no dia de Reis. Só depois do feriado do dia 8 se começa a "respirar" o Natal, a pensar no presépio muito mais que no pinheiro ou pai natal, porque esta quadra não celebra Lapónia nenhuma, muito menos um homem de barbas brancas vestido de vermelho. Celebra algo mais místico e digno de respeito. Celebra Aquele cujo nascimento sobre as palhas de uma humilde manjedoura em Belém e de quem já quase ninguém fala, ou ensina as crianças. 

O espírito natalício que antes parecia tudo inundar de paz e concórdia, que reunia famílias inteiras a consoar, transformou-se numa completa aberração. Dezembro é atualmente o mês do bla bla bla. Oco, vazio, sem qualquer conteúdo místico, porque visa apenas incentivar o consumo e gerar lucros milionários.

José Coelho 

Parabéns, companheira de quase uma vida...


... tudo de bom para ti, hoje e sempre!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Um conto de Natal do meu Autor favorito

Fotomontagem - José Coelho

— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.”

“De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções são que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!

Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal, o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.”

 

Miguel Torga

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Paz, que tanta falta faz

Tempo de Natal 2022







Dia oito de Dezembro, Imaculada Conceição e antigo Dia de Todas as Mães. Toda a minha vida, neste dia, a tarde foi sempre dedicada à construção do presépio e a enfeitar a casa para a Festa do Natal.
E este ano não poderia ser excepção.
Quando os filhos eram pequenos, íamos os três para a tapada procurar o melhor musgo para juntos fazermos um presépio enorme por baixo do pinheiro de Natal com as toscas figurinhas de barro que comprei numa loja em Évora no dia 19 de Dezembro de 1969, depois de sair da Inspeção Militar no hoje extinto Regimento de Infantaria 16 e de ter ficado Apto para todo o serviço militar.
Os filhos "voaram" do ninho um deles levou consigo o tal presépio velhinho mas muito estimado, mas nós, os Cotas, mesmo sózinhos em casa, não deixamos de cumprir essa bonita tradição. Muito mais simples, muito mais discreta, mas com o mesmíssimo amor e carinho de sempre.
E o resultado final é o que as fotos documentam.
Boas Festas a todos, Família & Amizades.
Um abraço com muita estima para todos vós.
Texto e fotos José Coelho
- 08 Dezembro 2022