sexta-feira, 31 de março de 2017

quinta-feira, 30 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

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Há quem lhes chame só anjos, 
eu chamo-lhes também amigos


Depois de me ouvir atentamente, o camarada ficou um bom bocado em silêncio como que a pensar no que iria dizer-me. 

E por fim falou:

- Concordo com tudo o que me disse e sei que nada fez de errado para ser perseguido como tem sido. Sabe, Coelho, há senhores "fulanos de tal" por detrás de tudo isso e são esses que querem a sua cabeça. Por isso têm manobrado os "cordelinhos" na tentativa cobarde de o prejudicarem. O nosso Capitão Comandante da Companhia é um bom homem. Vá falar com ele e peça-lhe que o ajude a ir para mais perto da sua família. Não tem nada a perder…

Nessa noite dormi pouco e mal. Não me saía da cabeça o sensato conselho do velho camarada e nem o deixei arrefecer. Fui mesmo falar com o bondoso Comandante da Companhia. De pernas trémulas subi as escadas de acesso aos claustros do primeiro andar onde se situavam os gabinetes do comando. Passei em frente do gabinete do oficial subalterno que mais mal e injustamente me tratou em toda a minha vida, mas nem para lá olhei. Dirigi-me ao outro, um pouco mais à frente e ao qual eu pretendia aceder. Bati suavemente à porta com o coração a querer saltar-me pela boca de tão agitado. Era um gabinete simpático antecedido por uma sala de espera com vários maples, ampla e cuidadosamente arrumada, com um aspecto muito confortável.

Inspirava tranquilidade, e, sobretudo, a metódica organização do seu inquilino.

Ouvi a voz dele mandar-me entrar, pedi licença e entrei. O Comandante da Companhia estava a escrever pacificamente. Tinha a secretária repleta de papéis que lia e a seguir rubricava. E tinha também um ar tão bondoso, tão paternal, que fiquei imediatamente mais tranquilo e à vontade. Cumprimentei-o respeitosamente fazendo a respectiva continência e apresentei-me como era da praxe.

- Então o que o traz por aqui, senhor Coelho? Perguntou, sem qualquer vestígio de arrogância, muito pelo contrário, afavelmente e com uma amabilidade que me surpreendeu, acostumado como estava ao tom irónico, gozão, mordaz e venenoso com que o outro oficial do gabinete ao lado falava sempre comigo. E foi aquela atitude serena e afável que, pela primeira vez nos últimos dez meses, fez com que eu me sentisse gente, relaxasse um pouco e baixasse aliviado a minha postura autodefensiva.

Aquele excelentíssimo Senhor que sempre o foi em todas as suas atitudes, era uma personalidade muito querida na cidade de Portalegre e correspondia exatamente ao perfil que o meu camarada me tinha descrito no decorrer da patrulha no dia anterior. Uma bondade de pessoa! Infelizmente já não está entre nós mas deixou saudades. Muitas mesmo, quer no coração dos inúmeros militares que comandou e ajudou, quer na comunidade onde quase toda a sua vida exerceu funções profissionais mas não só.

Já sem qualquer vestígio de temor, expus-lhe o que me levara à sua presença:

- Que tinha declaração de transferência pendente para o Posto de Castelo de Vide onde tinha já em vista uma casa para alugar em fase de acabamento de obras de restauro – o que era mesmo verdade – e sabia que ia dar-se uma vaga naquele Posto muito em breve;

- Que andava longe de casa da mulher e do filho desde que me tinha casado há mais de dois anos e ambicionava reunir toda a família de uma vez por todas.

- E que vinha pedir-lhe, caso ele quisesse e pudesse, que fizesse o favor de me colocar naquele Posto logo que fosse possível, uma vez que na lista de transferências recentemente publicada em Ordem de Serviço da Companhia de Portalegre eu constava em número um para aquela vaga, logo, deduzia que não haveria prejuízo para terceiros.

Assim, quase num só fôlego, saiu-me aquilo tudo e também uma lágrima piegas nada fingida a acusar o meu fragilizado estado de espírito por tudo o que vinha passando desde que pusera os pés naquele velho convento, julgando, como qualquer um dos meus outros camaradas, que seria simplesmente para estudar e aprender a ser um guarda republicano competente e digno.

O distinto senhor ouviu-me do princípio ao fim sem pronunciar uma só palavra. Pude perceber na sua expressão que não ficou nada surpreendido com o meu pedido. Tive mesmo uma indelével sensação que ele até estaria já à espera. A gente percebe essas coisas instintivamente. Sejam boas ou más, não sei muito bem como, mas percebe-as. Decerto também não era eu o primeiro guarda que ali ia pedir-lhe auxílio.

Assim que acabei de falar ele pegou no telefone e falou para algures. Mandou que lhe trouxessem a pasta das transferências. Pouco depois bateram à porta e um Cabo da Secretaria do Comando veio trazer o que fora solicitado. Foi mandado aguardar ali também, enquanto a pasta era consultada. O comandante viu o que queria ver, fechou a pasta, devolveu-a e o Cabo voltou a sair.

- Fique descansado – disse-me – vou ver o que se pode fazer. Agora volte descansado à sua vida…

Saí com uma estranha e íntima paz interior. Tinha corrido muito bem, graças a Deus.

Em boa hora lá fui.

Guardo até hoje a mais profunda convicção que aquele velho camarada de patrulha do dia anterior foi um anjo em forma de amigo que Deus enviou para orientar os meus passos e suavizar um pouco a dura caminhada que eu vinha percorrendo havia já demasiado tempo.

De tal modo foi eficaz aquele conselho que, apenas uma semana depois, fui chamado para me apresentar imediatamente no gabinete do Comandante da Companhia.

Entretanto e à cautela, não tinha falado rigorosamente com ninguém acerca da minha subida ao gabinete para evitar especulações e comentários desnecessários.

Subi as escadas do claustro a correr na expectativa que seria qualquer coisa relacionada com o pedido que tinha feito dias antes.

E não me enganei:

- Senhor Coelho tenho muito boas notícias para lhe dar! Foi a sua resposta à minha institucional continência. E prosseguiu:

- Está já a ser preparada a publicação em ordem de serviço e a guia de marcha para o senhor se ir apresentar no posto de Castelo de Vide no dia um de Novembro. Vai substituir o homem que passará à reforma em Dezembro, mas você vai já andando para melhor se  adaptar e conhecer o restante efetivo. É um Posto famoso pelas boas qualidades dos militares que lá prestam serviço, quase todos homens já com muitos anos de Guarda. Requere muito juízo e compostura, em virtude da quantidade de turistas e outras personalidades que sempre por lá deambulam. Muitas vezes são até alguns ministros que ali vão passar as suas férias. Por isso porte-se bem e trabalhe melhor ainda. Pode a partir de hoje então, começar já a reunir a sua família. E boa sorte!

De uma assentada, com a serenidade que caracteriza as pessoas de excepção e de boa índole, como se estivesse a anunciar-me a coisa mais simples e banal deste mundo.

O dia um de Novembro era… Dali a dois dias.


José Coelho
in Histórias do Cota

segunda-feira, 27 de março de 2017

Coisas que leio...

Auto-retrato - 26/03/2017


Navegar


Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.

Admira a Lua,
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para a Terra.

Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.

Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.

Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
e tem pressa de chegar sabe-se lá onde.

As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.

O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!

Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.

Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.

Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.

Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades
mas não enlouqueças por elas.

Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.

Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.

Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.

Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!

Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.

Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!

Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.

Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!

Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
"O mais é nada"


Fernando Pessoa

quinta-feira, 23 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Relíquias com dezenas de anos



Assumir a verdade sem medo



Continuei o meu relato ao atento camarada sentados agora os dois a descansar as pernas debaixo de um velho e frondoso castanheiro na serra da Penha, a olhar lá em baixo como a bonita cidade de Portalegre se espreguiça longamente pelas encostas da serra que lhe fica sobranceira.

Como deve calcular – prossegui – sendo a minha freguesia eminentemente rural, pese embora nesse tempo com a estação da CP a funcionar ainda em pleno, houvesse uma boa parte de pessoas que sabiam ler e escrever, a grande maioria dos seus habitantes era composta por trabalhadores e famílias rurais completamente analfabetos.

Ainda hoje acredito sinceramente que o doutor Teixeira Alves agia daquela maneira mais por solidariedade humana perante a miséria que via por aquelas esquecidas aldeias raianas, do que por mero interesse político de onde pudesse tirar chorudos dividendos políticos. Que influência poderiam ter mais cinquenta ou menos cinquenta votos para ele? Ridículo esse raciocínio, acho eu. Em meu entender, ele era uma pessoa excepcional. Bondoso, atento, interessado, culto, disponível, humano e muito, muito solidário. Julgo que sou a pessoa que melhor o conheceu por estas bandas porquanto convivi e conversei muito com ele nas suas horas livres, durante meses. Foi com ele que aprendi o significado real da solidariedade e do quanto um homem doutorado é capaz de ser mais interessado, mais simples e humilde do que muito boa gente que conheço e que, por terem um bacharelato qualquer, já se julgam superiores a todos os outros.

Mas continuando o assunto das reformas dos velhos trabalhadores rurais, mal a tal Lei foi publicada no Diário da República logo o doutor me “requisitou” novamente para fazermos o “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para que nós as pudéssemos ajudar. Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar quem necessita de ajuda sempre foi um dos meus passatempos prediletos. E além disso, conhecia-os um a um. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitos desses idosos viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de uma mísera “reforma da casa do povo” que nem dava para pagarem a renda, para além do auxílio dos filhos, aqueles que os tinham por perto.

E contactámo-los um a um. E informámo-los também um a um dos passos necessários. E fomos depois a seguir pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção da Caixa – de quem não vou citar o nome – que sempre se disponibilizou amavelmente para ajudar fosse no que fosse. A “cor” política dele? Não sei. Nunca soube.  O que sabia era que na Beirã, nos Barretos e por todos os lugarejos em redor, havia por certo mais de duas dezenas de idosos que tinham trabalhado em determinada e muito conhecida herdade, não apenas cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos. A sua vida inteira. E viviam agora assim, velhos, incapazes e quase sem nada, por falta do apoio a que tinham direito depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifícios.

Confesso que foi uma das obras que ajudei a levar por diante que mais me orgulha. E talvez por pensar nela, suportei tudo aquilo que quiseram de mim dizer. Se “ser comunista” é lutar pelo bem-estar de quem nada tem, pois bem, eu sou sim um grandessíssimo e convicto comunista e jamais deixaria de fazer o mesmo cada vez que fosse necessário.

Qual foi então a "parte" que mais me “incriminou” naquele processo?

Várias. Para não dizer todas.

Primeiro, fui eu que andei de porta em porta a informar os velhotes daquilo a que tinham direito e o que precisavam fazer. Depois, fui eu que fui a Portalegre com o doutor buscar os formulários necessários e aprender a preenchê-los. Depois, fui eu ainda que tive que convencer muitas das testemunhas a atestarem por sua honra que tinham visto aqueles idosos a trabalhar naquele local durante mais de cinco anos. Para não falar dos medos que eu tive que ajudar a dissipar porque “ era o senhor fulano tal, que depois se podia ofender quando soubesse…” ou então porque “o filho, irmão ou primo trabalhavam ainda lá e podiam vir a ter problemas...”

Um a um, lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles, mas amanhã seria decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a minha tranquilidade de consciência e ausência de qualquer receio, a primeira assinatura de muitos desses formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas, tenho a certeza, só perderam o receio de assinar, depois de verem lá o meu nome também escarrapachado.

Como consequência desse meu empenho que, volto a repetir, nada, mas absolutamente nada teve a ver com partidarismos políticos, soubemos, pouco depois, que todos tinham sido aceites e deferidos, originando à tal entidade patronal ter que pagar um reembolso na ordem dos seiscentos contos, quantia algo elevada mas acumulada por serem de facto muitos os seus ex-trabalhadores com o direito reconhecido pela nova Lei.

Houve mesmo quem tivesse imensa pena do coitado! Ter que reembolsar seiscentos contos à Caixa de Previdência de Portalegre para que um punhado de bons servidores seus que durante a sua vida inteira trabalharam para ele, pudessem ter uma velhice mais digna. Logo agora que ele tinha acabado de gastar dois mil e tal contos num automóvelzeco Lamborguini topo de gama… Que chatice!

O meu camarada guarda alpalhoeiro nem movia os olhos, de tão absorto e interessado que estava na minha narrativa.

E eu continuei:

Assim que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal, demos início à fase de requerer as respetivas pensões de reforma. E, como não podia deixar de ser, lá tive que, outra vez, ser eu a “descalçar a bota” aos velhotes. Sempre orientado pelo tal ilustre amigo e senhor da Administração da Caixa de Previdência, preenchi os requerimentos a quem me o solicitava e devo esclarecer que todo este processo não durou mais de três ou quatro meses. Que fique bem claro que não aceitei de ninguém qualquer recompensa pela minha ajuda, pese embora fossem muitos a quererem gratificar-me das mais variadas formas.

Passado muito pouco tempo foram todos os requerimentos deferidos sem qualquer entrave e logo a seguir foram informados os interessados dos respetivos montantes de reforma que lhes seriam atribuídos a partir da data em que tinham completado os 65 anos, assim como o valor acumulado que em alguns casos era, naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna. Sessenta contos uns, oitenta contos outros, enfim, conforme era a soma dos meses em retroatividade assim eram os montantes acumulados e a receber. Vi muitas lágrimas furtivas e de incredulidade em muitos olhos, vi também a mais profunda gratidão em muitos outros, mas, sobretudo, adquiri um bom punhado de excelentes amigos.

Só não me apercebi nessa altura das inimizades ocultas que tudo aquilo desencadeou sobre mim porque nunca foram suficientemente homens para mostrarem o rosto, preferindo à boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e por métodos sujos. E só não me apercebi mesmo de nada disso porque como já escrevi em relatos anteriores, pouco tempo depois fui-me embora para longe para as Minas da Panasqueira – de onde nunca deveria ter saído – afastando-me durante cinco anos quase definitivamente da aldeia e esquecendo completamente todas essas coisas até ingressar na Guarda…


José Coelho in Histórias do Cota

Beirã - Para memória futura...

O núcleo-embrião do resto da aldeia 
Foto by José Coelho

segunda-feira, 20 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Patrulheiros (da minha colecção de bonecos da Guarda)  
Foto by José Coelho


Camaradagem



Passou o verão de 1979. Certo dia e já entrado o Outono saí de patrulha aos campos com um dos tais velhos e ponderados guardas como comandante. Já nos conhecíamos na altura bastante bem porquanto e mais que uma vez lhe tinha respondido com seriedade e honestidade às suas dúvidas sobre os motivos que levavam a que eu fosse considerado o “inimigo público nº 1” e que estavam na origem tantos excessos verbais.

Era aquele guarda um homem bom. De Alpalhão. Infelizmente já não está entre nós. Não tenho dúvidas que ele acreditava de facto em mim e no que eu lhe ia revelando com sincera verdade sobre as minhas actividades no tal sindicato dos trabalhadores rurais onde nunca fora secretario, onde apenas e sem qualquer conotação política nada mais fizera do que ajudar na escrita em virtude de os dirigentes eleitos serem todos analfabetos. E, sim senhor, tinha-os de facto auxiliado em tudo quanto pude até também por uma questão de humanidade, uma vez que, conhecendo-os de toda a minha vida, via neles a mesmíssima humilde e honrada condição do meu próprio pai.

Desde quando – desabafava eu com ele - ajudar é crime? E mais! Ao aderirem a um sindicato para defenderem os seus interesses, aqueles honestos trabalhadores não estavam a fazer nada de mal. Porque não haveria eu de os ajudar se tinha todo o meu tempo livre por não conseguir arranjar qualquer trabalho? Não duvidava que fora a má fé e malvadez de algumas pessoas que eu inocentemente julgara minhas amigas quem criou à minha volta todos esses boatos. Por acaso nunca fui militante de nenhum partido político. Mas, se o fosse, só estava a usufruir do mesmo direito constitucionalmente reconhecido àqueles que neles militam.

Contei-lhe ainda que acompanhava quase sempre o tal senhor doutor da alfândega conforme era acusado porque ele me pedia que lhe indicasse os locais onde ia fazer as sessões de esclarecimento. Porque não? Havia nisso qualquer irregularidade? Que ele falava muito, de facto, no MDP/CDE, nos direitos dos trabalhadores e na necessidade de se unirem em sindicatos e por isso tinha sido ele o grande impulsionador e responsável de muitas dessas actividades na minha freguesia.

Porém uma coisa era acompanhá-lo e ser amigo dele, outra coisa era que eu percebesse fosse o que fosse da sua política. Daquela ou de qualquer outra. Que formação tinha eu? Muitas vezes me apercebi que algumas das pessoas que trabalhavam sob a sua chefia não simpatizavam nada com as coisas que ele afirmava mas arreganhavam sempre os dentes para ele em falsos e alarves sorrisos porque não tinham tomates para contradizer os seus argumentos.

“Senhor Doutor assim, senhor doutor assado”, mas sabe Deus o que lhes ia no íntimo. Só que ele sabia disso porque de ingénuo não tinha nada. Como não podiam tocar-lhe porque não tinham ousadia para tanto, viraram a sua sanha, cobardia e falta de frontalidade contra mim, peixe miúdo, a quem facilmente transformaram em bode expiatório.

Naquela tarde, enquanto percorríamos calmamente o nosso longo giro de patrulha com oito horas de duração contei-lhe ainda sem qualquer receio aquela que foi, para mim, a melhor medida que o “tal” doutor tinha trazido a dezenas de velhotes da minha freguesia. Tinha sido por essa altura publicada uma nova lei que obrigava todas as entidades patronais a inscreverem os seus trabalhadores na segurança social a fim de descontarem para as suas reformas, usufruírem dos abonos de família dos filhos menores aqueles que ainda os tinham, lei essa onde havia ainda também uma cláusula extraordinariamente importante que dizia mais ou menos que:

Qualquer indivíduo que tivesse trabalhado mais de cinco anos para um patrão e do qual tivesse saído por motivo de velhice há também menos de cinco anos, tinha direito a ser por ali reformado, bastando para tanto preencher uns formulários que se iam buscar à Caixa de Previdência de Portalegre na Avenida Frei Amador Arrais hoje designada Segurança Social e já sedeada junto ao estádio, do outro lado da cidade, arranjar três testemunhas de maior idade (mais de 21 anos) que atestassem por sua honra terem conhecimento que aquele indivíduo trabalhara para a tal entidade patronal durante mais de cinco anos, e, automaticamente essa entidade patronal era obrigada a reembolsar a Caixa dos descontos retroativos, podendo logo a seguir o trabalhador que tivesse mais de 65 anos de idade requerer a sua reforma, preenchendo para isso um requerimento em impresso próprio.

Não sei dizer que Lei foi aquela. É de finais de 1974 ou princípios de 1975 e deduzo hoje que terá sido talvez a “mãe” da Lei que tornou definitivamente obrigatórios os descontos para a Segurança Social e que por essa altura terá entrado definitivamente em vigor. Mas não tenho qualquer dúvida em afirmar que sei, quase com absoluta certeza, que foi esse o alegado “grave crime” que eu cometi à luz do entendimento mal-intencionado de muitos “amigos” meus e que tantos dissabores me causou.

Contar-vos-ei mais pormenores, no próximo relato. Até lá…


José Coelho in Histórias do Cota

domingo, 19 de março de 2017

sexta-feira, 17 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

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Preso por ter cão, preso por o não ter


A colocação no Posto de Portalegre deu-me finalmente a oportunidade de conhecer ao vivo e em direto a tão falada reforma agrária. Aquela – em meu entender – deplorável asneira político-partidária resultante da Revolução de Abril que opunha ferozmente os donos das herdades àqueles que irregularmente as tinham invadido e ocupado.

No meio da contenda para mediar o conflito – nem sempre de forma isenta – cabia à Guarda estar presente a fim de evitar desacatos, proteger os técnicos do Ministério da Agricultura ou seus delegados, e, em suma, fazer cumprir a Lei, mesmo que algumas vezes inevitavelmente tivesse que usar a força para o conseguir.

Para tal missão eram diariamente escalados vários militares de cada Posto da área para formar uma secção ou um pelotão de manutenção da ordem pública, variando o dispositivo em função da probabilidade prevista de risco e de conflito no local programado.

Eram dias muito atribulados a percorrer caminhos de terra batida aos saltos dentro dos velhos e duros Land-Rover, a comer pó e com os nervos à flor da pele, a ouvir insultos, apupos e muitas vezes até o arremeço contra nós de tudo o que lhes vinha à mão, porque aquela gente não entendia ou fazia que não entendia que estávamos ali a cumprir ordens vindas do próprio governo.

Miminhos verbais como “cabrões” ou “filhos de puta” eram o nosso dia-a-dia. Em muitas dessas entregas houve desacatos a sério que originaram tomadas de posição de força e de retaliação para repor a ordem, resultando em confrontos físicos ferozes e feridos em ambas as partes. Foi num desses "apertos", na cidade de Ponte de Sor junto ao tribunal que um identificado e na altura muito conhecido activista, mesmo à minha frente e olhos nos olhos, me vociferou furioso:

- Quando a gente deixar de trabalhar vais comer a espingarda, o bastão, o jipe e os cães-polícias, porco fascista…

Nem sequer foram as palavras insultuosas que ele proferiu que mais me impressionaram, mas sim a forma enviesada como me olhou, aquele ódio puro a faiscar-lhe nos olhos.

Nós estávamos instruídos, mais que recomendados e fortemente mentalizados para nunca ripostarmos individualmente. Ninguém abria a boca, fazia qualquer gesto agressivo ou tomava qualquer atitude, fosse ela qual fosse, em que circunstância fosse, sem para isso ter sido dada ordem verbal por quem detinha o comando da força no local.

Aqueles insultos deviam ser considerados como sendo dirigidos à Guarda no seu todo e não individualmente a cada um dos guardas que ali estavam no desempenho de uma missão como qualquer outra. Por isso nenhuma reação a título individual seria tolerada. A nossa função primeira era evitar conflitos e não provocá-los, muito menos ser parte neles.

Foram assim “do caraças” muitos dias, semanas e meses.  No meu espírito a perturbação instalou-se algumas vezes com tão estranha contradição. Apenas meia dúzia de semanas atrás era eu insultado e enxovalhado pelos meus chefes por eles acharem que e era um comunista infiltrado, e, agora ali, no justo e cabal desempenho de funções estritamente profissionais continuar a ser insultado e de novo enxovalhado, desta vez pelos comunistas e por ser guarda. Vai lá vai. Dasss... Preso por ter cão e preso por o não ter!

 No meu espírito começou contudo a despertar, perante estas cenas de duro antagonismo, alguma compreensão pelos motivos que originaram tudo aquilo que me tinham feito na instrução. Tentava, no fundo, encontrar algo concreto que me levasse a ser capaz de perceber melhor os excessos de que fui vítima, conotando estes insultos verbais diários entre comunistas e guardas nas entregas das herdades com o tal comportamento verbal agressivo usado pelos meus chefes contra a minha pessoa por me acharem suspeito de ser um daqueles desordeiros.

A aversão mútua entre as duas partes era quase palpável e não sei bem qual delas detestava mais a outra. Ambas alimentavam um antagonismo visceral entre elas. E não podia ser de outra maneira perante quadros de tão manifesta agressividade e violência verbal como aquele que eu acabara de protagonizar sob o olhar de ódio do irado ativista político que, cara a cara e mesmo em frente de um tribunal de comarca não se intimidou com o aparato policial de viaturas em grande número, pessoal armado com bastões e espingardas, e ainda também quinze ou vinte binómios homem-cão, afim de dissuadir qualquer tentativa de invasão daquela Domus Iustitae onde decorria um julgamento contra trabalhadores desordeiros que tinham sido detidos por injúrias e agressões na entrega de uma herdade.

- Quando a gente deixar de trabalhar, vais comer a espingarda, o bastão, o jipe e os cães-polícias porco fascista…


José Coelho in Histórias do Cota

Beirã - Para memória futura...

A imagem de marca da Beirã - Foto by José Coelho

segunda-feira, 13 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

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Primeiros passos


Por ter sido então o segundo classificado do curso, deram-me a oportunidade, porque a isso tinha direito, de escolher a colocação num Posto em que quisesse ficar, na lista daqueles onde havia vagas para preencher. Evidentemente, para poder ir de vez em quando a casa ter com a minha família sempre que a escala o permitisse, escolhi aquele que dela me ficava mais próximo e com meios de transporte mais acessíveis. O Posto Territorial de Portalegre.

Apesar de nas salas contíguas ter feito a instrução onde tinha sido tão maltratado e por esse mesmo motivo ser ali de toda a gente sobejamente conhecido, continuava a não ter medo de ninguém e muito menos de encarar sempre que fosse preciso os responsáveis por tão maus momentos, um dos quais, paredes meias com o posto tinha o seu gabinete, enquanto o outro frequentemente lá se deslocava. Naquele velho edifício concentravam-se o comando da companhia, o comando da secção, e o posto de Portalegre, três escalões de comando distintos e autónomos, mas hierarquicamente subordinados uns aos outros.

Não temi o novo desafio nem tive qualquer problema em escolher aquela colocação, apesar da expectante curiosidade que visivelmente suscitava nos meus camaradas do efetivo do posto, particularmente nos mais velhos que muito se admiravam, segundo me diziam, da forma estóica como eu tinha “aguentado” tudo aquilo. Com eles comecei a aprender que a verdadeira camaradagem, o companheirismo, a tolerância, a generosidade, a solidariedade e a sabedoria, também existiam na Guarda e em grandes doses, embora muito encapotadas, muito sóbrias e discretas, para não darem nas vistas nem chamarem a atenção de quem tinha – no dizer deles - a caneta e o papel para escrever.

O maior receio de qualquer guarda nesse tempo era que sobre si recaísse uma “participação” por qualquer ínfima irregularidade que pudesse desagradar aos “mandantes”. Transferência certa para “cascos de rolha” logo para começar como medida preventiva e outra vez uma separação interminável da família, para além do vexame de ver publicadas em ordem de serviço a causa e os efeitos da “porrada” que toda a gente lia e ficava a saber. Coisas previstas no Regulamento de Disciplina Militar a que a Guarda está institucionalmente apensa. Mas em meu modesto entender tudo aquilo era apenas e só a tal castradora disciplina do medo. Se era! Ninguém se atrevia a protestar fosse pelo que fosse. Ainda bem que nesse capítulo as coisas mudaram bastante e para muito melhor!

No posto de Portalegre tive assim o meu primeiro contacto direto com a verdadeira Missão da Guarda e conheci bons e grandes profissionais para além de generosos camaradas. Bons na sua experiência de vida e grandes na sua percetível e eficaz solidariedade, generosos na sua tolerância para com a nossa imaturidade profissional a qual constantemente colmatavam com os seus sábios ensinamentos e prudentes conselhos.

Apetecia-me sinceramente referir aqui alguns deles pelos seus nomes, de tal forma me senti ajudado naquele já longínquo início da minha carreira como patrulheiro. Encontro-me hoje e de vez em quando por aí com alguns deles já algo curvados pela idade ou de bengala, mas sempre dignos do meu imenso respeito e a quem gosto de cumprimentar com a mesma antiga e sincera camaradagem. Mas não vou citar nomes. Provavelmente eles não irão ler nunca esta minha mensagem de gratidão, e, além disso, foram ainda um bom punhado deles esses velhos amigos e comandantes de patrulha com quem calcorreei, de Mauser às costas e a pé, muitos trilhos da serra de S. Mamede, azinhagas, carreiros e veredas, hortas e pomares, em redor da cidade de Portalegre.

De quase todos eles ouvi histórias da sua vida profissional muito duras também, percursos longos e com anos de muitos sacrifícios pessoais, colocações longínquas sem o apoio das famílias, semanas inteiras sem verem mulheres e filhos, além de terem que trabalhar muitas vezes sob as ordens de comandantes pouco humanos mas muito exigentes, ou de outros mais compreensivos e tolerantes mas que mantinham sempre aquela austera postura do “quem manda sou eu”. Relatos apaixonantes de patrulheiros com muita “tarimba”, inevitavelmente os principais protagonistas daquilo que é, na sua mais pura essência, o imprescindível serviço que contínua e diariamente, há muitas décadas, a GNR presta a este país.

Senti-me muito confortado por quase todos eles e pressentia uma censura implícita e o repúdio que os seus relatos denotavam, contra a rude forma como eu tinha sido tratado durante os meses que durou a instrução. Ao partilharem comigo aquilo que fora a sua vivência profissional anterior, era como se me dissessem por outras palavras:

- Como vês, também nós fomos maltratados…

Pouco a pouco conquistei de todos eles uma sincera amizade e confiança que sempre tentei honrar. Mas, sobretudo, aprendi imenso. E dessa forma estabeleci raízes tão fortes, tão profundas e duradouras com a minha nova profissão que me afeiçoei definitivamente a ela…


José Coelho in Histórias do Cota

domingo, 12 de março de 2017

Beirã - Para memória futura...

Sócha do miradouro da aldeia. Restauro da cobertura 12-3-2017
Foto by Junta de Freguesia da Beirã

quarta-feira, 8 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Agosto de 1981



 Contra ventos e marés, batalha vencida



O teste de topografia que me desclassificou, o ultimo do curso, correra-me muito bem. Tenho ainda hoje e passados todos estes anos, porque tais injustiças nunca se esquecem, a noção exata daquilo que fiz. Não deixara uma só pergunta sem resposta e mais palavra menos conta, tudo correcto. Quis muitos anos mais tarde o destino que a última década da minha carreira fosse passada como instrutor de futuros guardas. Ali tive oportunidade de ver em pormenor os justos e muito imparciais critérios da classificação de qualquer teste ou prova escritos. Cada um deles é sempre concebido para, no seu todo, resultar numa média aritmética na escala de 0 a 20 valores, distribuindo-se os mesmos equitativamente pelas questões a solucionar, raramente ultrapassando a fasquia de 1,5 valores cada pergunta.

Corrigi milhares de testes nesses dez anos e por isso sei que naquele em que fui passado de 17 para 13 valores inopinadamente, tendo, como tenho ainda hoje, a noção exacta do teste que fiz, jamais poderia haver uma quebra de 4 valores, exactamente os que seriam necessários para que o outro camarada – que nada teve a ver com isso como já referi – passasse de 2º para 1º classificado. Foi tão óbvio que toda a gente  se deu conta, a começar pelo visado que nunca tal 1º lugar o honrou e sempre fez questão de repudiar.

Sei, pelo que já aqui escrevi, mas também pelo muito que ainda hei-de escrever, as filha-de-putices de que muita gente é capaz. Sei também o que se sente quando somos humilhados, injustiçados, perseguidos e caluniados por pessoas que não demonstram em nada serem melhores do que nós, sendo a razão da sua força apenas o poder institucional de que estão investidos, os galões, divisas ou cargos que ostentam, dos quais fazem incorrecto e impune uso.

Quem me dera que muitos dos novos e inexperientes guardas e polícias que há por esse país fora conseguissem ser fortes e aguentar a pressão tremenda de muitas injustiças, como eu consegui aguentar. E capazes de agir também como eu consegui agir, de cabeça fria, ainda que à custa de muitas almofadas humedecidas de choro pela calada da noite. Preocupa-me imenso o que vejo e ouço nos telejornais acerca do suicídio inexplicável de tantos homens das forças de segurança e estremeço sempre que me lembro de tudo aquilo por que passei também.

Ainda assim e apesar de tão desumanamente ter sido tratado quando ingressei no ilustre e digno Corpo Especial de Tropas que é a Guarda Nacional Republicana, não necessitei de grande esforço para me dedicar completamente ao pleno exercício das funções que abracei com empenho e total entrega, na vasta e complexa Missão que no meu Compromisso de Honra aceitei em alta voz e publicamente cumprir. Nunca sequer me passou pela cabeça que aqueles “fulanos” que me destrataram nos meus primeiros passos enquanto candidato, reproduziam o que seria no seu todo a nobre Instituição.

Nem pouco mais ou menos.

Portalegre ficava como fica ainda, muito longe de Lisboa. Naquele tempo então, era a um dia de viagem. Atrevo-me a afirmar que muitas coisas que aconteciam – não sei se não acontecerão ainda – por esse país fora e no género daquelas que me fizeram a mim, são completamente desconhecidas logo no escalão de comando imediatamente superior que fica mesmo ali ao lado, quanto mais nos gabinetes do Comando Geral.

Pensando pois dessa maneira, em vez de cultivar no meu coração qualquer desânimo, qualquer semente de revolta, de retaliação ou de vingança, levantei a cabeça com dignidade e procurei, desde a primeira hora, aperfeiçoar-me ao máximo profissionalmente.

Continuei a esforçar-me por aprender mais e melhor no meu dia-a-dia através de muito trabalho e empenho, de uma postura digna e correta perante a comunidade, tudo isso aliado ao estudo incansável de cada código, de cada lei, de cada preceito militar, de cada pasta do arquivo do Posto e de cada NEP – Normas de Execução Permanente – pois entendia que só dessa forma algum dia atingiria o nível que almejava alcançar para me sentir um competente e responsável profissional da GNR.

Tomava notas de tudo, fazia dossiês de apontamentos sobre o armamento, legislação penal, regulamentos policiais, deveres militares ou manutenção da ordem pública, estudava e fazia cópias dos autos de toda a natureza, ao mesmo tempo que tentava entender as leis que lhes davam origem, em suma, fui trabalhando lenta e decididamente sempre mais e mais para conseguir formar-me e assim atingir o patamar que a mim mesmo tinha proposto alcançar.

A minha maior e mais secreta ambição era ser capaz de demonstrar a todos aqueles “trastes” que me quiseram prejudicar, o quanto eu continuava a ser capaz de fazer mais e melhor, assim como ainda espetar-lhes naquelas trombas que era um homem de bem, exactamente o contrário daquilo que tão injustamente eles me consideravam...


José Coelho in Histórias do Cota

Para todas as mulheres da minha vida...

... que hoje me acompanham, 
mas também as que  já partiram.

Beirã - As cores do anoitecer...

07 de Março de 2016 - Foto by José Coelho

terça-feira, 7 de março de 2017

segunda-feira, 6 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Foto que o filho Pedro fez no último Natal. Às vezes fico assim, ausente.
À beirinha dos 65, sinto muitas vezes que ja vivi 130. A sério.



Primeiro classificado o comuna? 



Entrámos a passos largos na recta final do curso. Aparentemente a minha perseverança e se calhar também a minha inocência nos “crimes” que me eram imputados corriam a meu favor. As “bocas” venenosas continuaram a picar-me os miolos pois esse calvário durou do primeiro ao ultimo dia do curso de formação mas batiam de chapa na minha completa e total indiferença. Nem sequer os meus camaradas de turma ligavam também já àquilo. Tive a sorte e o privilégio de nunca ter sentido qualquer animosidade da parte deles, muito pelo contrário. Senti-os sempre solidários nas suas atitudes, tendo havido até um deles que, num secreto desabafo, me sussurrou uma vez: 

- Eu não aguentava o que tu tens aqui aguentado, Coelho. Já me tinha ido embora. Mas não ia sem partir primeiro os cornos a um cabrão destes…

Já muito perto do fim e no decorrer de uma aula enganei-me a colocar o meu número de matrícula ao preencher a dispensa do fim-de-semana. Coisa insignificante. Um hífen onde não devia estar. Ao ver o erro, o sargento aproveitou imediatamente para se atirar a mim ferozmente na presença dos meus camaradas vociferando vermelho de raiva:

- Seu burro! Seu analfabeto! Se não sabe escrever o que anda aqui a fazer?

Já farto de ser espezinhado não me contive que não dissesse:

- Já pedi desculpa. O meu sargento nunca se engana?

O que fui eu dizer!

O homem quase teve uma apoplexia ali na minha frente. Ele já era vermelho por natureza mas naquele dia ficou roxo.

- Vai dar-lhe um treco, pensei.

Mas não. Olhou-me com infinito desprezo e indisfarçada hostilidade para retorquir pausadamente, entre dentes:

- Ponha-se a pau, Coelho. Você comigo não brinca! Olhe que ainda não tem o tacho garantido. Mije fora do penico e quem corre consigo daqui para fora, sou eu. Está avisado!

Garanto-vos que não tomei quaisquer precauções. Não me intimidaram nunca. Sinceramente não me importava nadinha de voltar de novo para as Minas da Panasqueira das quais não me tinha ainda esquecido nem daquela quantidade de amigos impecáveis, os quais, sendo gente sem grande formação académica e cultura, davam lições de humanidade e de respeito pelo próximo que estes senhores fulanos de tal “mandantes” da GNR em momento algum desde que os conhecera demonstravam possuir.

Em vez de me intimidar agarrei-me desalmadamente aos “canhenhos” e estudava muitas vezes até me arderem já os olhos de cansaço. Quase comia aqueles manuais e livros, tanta era a minha força e determinação. Decorei (quase) tudo, de trás para a frente e da frente para trás. Queimei as pestanas mas o resultado foi muito compensador. Quando tiveram início as provas escritas semanais, consegui, graças a Deus, superar, EM TODAS AS PROVAS, a média aritmética do pelotão inteiro. Testes com 17 outros 18 valores, certinhos e direitinhos, teste sim, teste sim. Não havia notas mais altas porque, diziam os bosses, um 18 era o máximo que podiam conceder, pois dali para cima seria considerado saberem os alunos mais do que os mestres, coisa de todo intolerável.

Os “gajos” ficavam estupefactos e as caras deles para minha enorme delícia eram o reflexo da sua íntima irritação perante tais resultados. Ali, se calhar, pensava eu, não podiam meter a unha. Estava lá escrito, preto no branco. Mas mais tarde percebi que para aqueles fulanos valia tudo e não havia impossíveis.

Quero ainda dizer-vos que existe a possibilidade de ser ouvido o testemunho dos meus camaradas de alistamento ainda vivos e de saúde à excepção do camarada Churro da Beira Baixa que faleceu recentemente, para confirmar, quem quiser, tudo aquilo que aqui descrevo e que é apenas e só a integral narrativa dos factos. Tive em conta também o que muitos deles me confidenciaram após terminado o pesadelo do Curso de Formação de raças acerca de outras barbaridades que contra mim foram levadas a efeito quando eu não estava sequer presente para poder defender-me.

E se tudo isso não fosse só por si já suficiente, devo acrescentar que guardo religiosamente como se fossem um tesouro as provas perenes da mais revoltante injustiça humana de que alguma vez fui alvo: Todos os cadernos e manuais, bem como as notas atribuídas a cada teste.

Não fui como me era devido por direito, o primeiro classificado do curso. De forma indecentemente manipulada por quem o podia fazer, passei, em menos de 24 horas, de primeiro para segundo classificado, apesar de ter uma média única e sempre a mais alta de todo o pelotão, de dezassete para dezasseis valores. Muito perto de mim também com excelentes notas mas ligeiramente abaixo das minhas e como segundo melhor classificado do curso, andou sempre um camarada de Santo Aleixo, bom moço e muito bom amigo, o qual, muitas vezes depois, nos anos que se seguiram, comentava para quem o queria ouvir:

- O primeiro classificado com melhor nota do curso era o Coelho. Mas por vingança de quem mandava, podia e queria, meteram-me lá a mim…

Sempre foi um homem com H grande, este camarada. Justo e honesto atè à medula. Em vez de ficar satisfeito sentiu-se também usado numa contenda que não era sua. Aquele primeiro lugar nunca o  envaideceu. Muito pelo contrário. Todos os camaradas instruendos torciam por mim e sabiam que o meu objetivo não era disputar troféus. Era apenas e tão só a fórmula encontrada para conseguir manter-me à tona no curso sem favores de ninguém para combater a canalhice que me rodeou sempre. 

Mais uma vez o “staf mandante” decidira, na sua enviesada justiça, que não iria à tribuna de honra receber o diploma de melhor classificado, um “comuna”.  

E não havendo mais por onde pegar, no último e decisivo teste, “por acaso”, em vez de um 17, tive só um 13. E o segundo classificado passou de imediato para o primeiro lugar, ficando eu em segundo...


José Coelho in Histórias do Cota