segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Um dia mais é também um dia menos

O sol a nascer por detrás da Murta - Beirã
Foto José Coelho

Acordei cedo como sempre. Muito cedo. A Toca dos Coelhos, construída aos poucos à medida que se ia juntando dinheiro ao longo das últimas décadas, tem um traçado que foi na íntegra concebido por mim assim cheio de janelas e com as mais amplas viradas a nascente. Por isso logo que a aurora começa a clarear por detrás dos canchais da Anta e da Murta a suave luminosidade filtrada pelas persianas e cortinados – associada ao cantar dos também madrugadores galos da vizinhança – fazem-me despertar. Claro que não me ponho a pé a essa hora embora já não consiga dormir mais. Deixo-me ficar sossegado para não acordar a “patroa” enquanto vou dando conta do matinal bulício de toda a natureza que faz também parte destes meus domínios.
O metálico debicar dos pardais na caça aos insectos para o pequeno almoço das suas proles no algeroz de alumínio onde este ano construíram um monumental ninho para se vingarem talvez de eu não ter permitido que o construíssem nos tubos do motor de um dos ares condicionados no verão passado, mas também um numeroso bando de rolas turcas que nidificam no arvoredo – em 2019 até na nossa laranjeira – que pousadas no telhado ou nas chaminés cantam, cantam, cantam, de manhã à noite sempre atentas às sementes do quintal e aos dois baldes de água fresca onde todas vão beber à vez.
Ah! E já chegaram também há uns dias os famintos estorninhos que chiam como ratazanas e devoram os frutos dos quintais das redondezas sem os deixarem sequer amadurecer!
Longe vai o tempo em que tinha de levantar-me às seis da manhã para cortar a barba, tomar um duche e o pequeno almoço antes de marchar às minhas obrigações profissionais. Muitos dias houve também que em função das mesmas, o nascer do dia era exatamente a hora em que terminavam as minhas rondas noturnas. Aí então em vez de acordar, era a hora de deitar e dormir. Por isso agora é tempo de descanso e de desfrutar da paz e tranquilidade dos meus dias, naquele que para mim foi sempre o melhor lugar do mundo.
Aqui nasci, aqui passei inquestionavelmente os momentos mais doces e felizes da minha vida, aqui me despedi para sempre dos entes mais queridos, aqui tenho a grata bênção de poder agora envelhecer. Se não é uma vida perfeita, porque não é mesmo, seguramente é a vida menos má que poderia ambicionar.
Os problemas – principalmente de saúde – são idênticos aos de tanta outra gente que conheço, com as mesmas limitações ou constrangimentos, minimizadas quanto possível mas sempre aceites com ânimo e resignação. Queixumes não adiantam porque nada resolvem. Por isso vou vivendo e agradecendo um dia de cada vez. Ainda que já com algumas limitações entendo a Vida como um dom valioso que me é permanentemente concedido e tenho não só o dever de aceitar como também de fazer valer a pena mesmo nos momentos mais difíceis.
Nem sempre é fácil, nem todos os dias conseguimos estar alegres e bem-dispostos, mas há que tentar nesses dias superar o que nos puxa para baixo, levantar a cara e enfrentá-lo decididamente.
O perigoso momento que vivemos recentemente - pandemia Covid19 - foi a mais evidente prova do quão somos impotentes perante a natureza e que nunca saberemos do que ela é capaz para nos remeter à nossa insignificância e se defender das nossas constantes agressões. Deveríamos ser mais cuidadosos e respeitá-la nos seus ciclos naturais sem os corromper abusiva e sucessivamente. Essa recente pandemia foi uma resposta tão contundente como letal à ousadia de o ser humano estar convencido que pode fazer tudo, alterar tudo, substituir tudo. Não pode. Está – acho eu – a mexer com o que não deve e a caminhar para a sua autodestruição. Nunca, jamais ou em tempo algum, o Homem conseguirá substituir a Natureza. Poderá imitá-la, poderá até substituir alguns dos seus efeitos por outros similares, mas nunca conseguirá superá-la.
E de tanto ousar vai perder o controle e sofrer as consequências. Quem sabe até se a Covid 19 não foi já um aviso.
Sem qualquer pretensão de me julgar mais perfeito do que os demais, tenho no entanto plena consciência que sempre a respeitei. Sou provavelmente um dos seus mais fiéis seguidores e admiradores. Que o digam as milhares de imagens do meu acervo fotográfico onde mais de noventa por cento são a fauna e a flora, paisagens rústicas, urbanas ou ambientais, o céu, azul ou nublado, o nascer ou o por do sol, a chuva, a geada, a seca ou as enchentes das linhas de água, as diferentes cores e estados de cada estação do ano. As cores do por do sol então, sempre diferentes cada dia, são a obra-prima mais incrível que se pode contemplar, a magnificência da Mãe Natureza em todo o seu esplendor. Mas também acho imponentes as cores rosa vivo da aurora até o dourado astro-rei se elevar na linha do horizonte.
Curiosamente, o nascer de cada dia trás consigo o despertar de toda a vida sobre a terra, enquanto o por-do-sol a emudece por completo. Poucas coisas neste mundo me surpreendem mais.
Se ao acordar tenho o hábito de agradecer o novo dia, antes de adormecer dou também sempre graças por aquele que acabo de viver. Pelo meu e pelo de todos os que amo, ou fazem parte da minha vida. E não é por beatice mas por absoluta convicção do meu dever de gratidão. Porque ser grato, atento e disponível fazem parte do meu ADN. Vivo serenamente cada dia não por ser agora tão recomendado mas porque sempre pensei e agi assim. Cada dia que amanhece soma mais um à nossa existência, mas é em simultâneo menos um nos que temos destinados ao nosso ciclo de vida.
Essa é a mais precisa equação matemática do mundo. Nunca vos esqueçais dela. E procurem ser felizes mesmo quando não conseguirem ter tudo o que vos parece ser preciso para poderem sê-lo…

José Coelho