terça-feira, 16 de abril de 2024

Um "falar" de todos nós


A propósito de uma moda que “a malta” do meu tempo cantava ao desafio com as moças nos trabalhos do campo, propus ao grupo de que então fazia parte, umas “saias à moda antiga” deliberadamente escritas na pronúncia característica desta região. Não são só os usos e costumes, não é só a paisagem que tem características próprias. Também a fala é património nosso, parte integrante do todo. E como tal, entendo que deve ser preservada e defendida sem motivo para escândalo ou complexos.

Contudo, ao apresentar aquela velhinha “moda”, logo duas ou três vozes se levantaram para afirmarem que “a gente nã fala assim”. Ai fala, fala, reafirmei convicto. Poucas são as pessoas que pronunciam o “não” corretamente, e, em vez disso, dizem simplesmente “nã”. E também o “eu” é pronunciado “ê”.
Exemplos?
É para já:
- Eu cá não vou…
Nós pronunciamos:
- Ê cá nã vou…
Um “vais” é reduzido a “vás”, o “nem” dizemos “nim” um “dizem que” pronunciamos “diz que” e em muitas, em muitíssimas mais palavras, são “comidas” parte das suas sílabas. É o nosso falar. Não há qualquer motivo para dele termos vergonha ou gerar censura.
Cada povoação, até num só concelho, tem o seu próprio sotaque.

Novo exemplo:
- Vais às compras aí? Dizem que nessa loja nem os sacos dão!
E nós pronunciamos:
- Vás às compras aí? Diz que nessa loja nim os sacos dão!
Nós os da parte norte do Concelho de Marvão, falamos assim:
- V’zinha atão diz qu’este ane vai haver corse no carnaval?
- Diz’que sim. Mas ê cá nã poss’ir. Nim amanhã nim na terça. E tu, vás?
- Ê cá tenhe tençõns d´ir se Dês queser…
Já na zona da Escusa, no mesmo Concelho mas na parte sul, nasalam-se mais as sílabas:
- Abalaste munto çôde?
- Nasçô-me o sol ô Talaiã…
Mas não somos só os Marvanejos que temos um falar muito nosso. Nos concelhos vizinhos sucede o mesmo. O meu Pai, nascido e criado no Bom Jesus em Castelo de Vide, trouxe consigo para Marvão onde casou e viveu a maior parte da sua vida, aquele seu falar característico da Vila que pronuncia o “a” em vez do “e” que origina chamar-se aos Castelovidenses “os da terra do bonáque”.
Para ele nunca fui o seu filho Zé, mas o sê filhe Zá.
- Zá! Oh Zá… Chega lá aqui, filhe…
Tomara eu continuar a ouvi-lo ainda hoje!
Também em Nisa onde trabalhei e convivi com aquela gente boa de todas as suas freguesias, conheci o encantador e genuíno modo de falar que começa logo pela exclamação “dé” a anteceder qualquer conversa.
- Dé…
- Pode lá sê? Um home tã rique e morrê!!!
E não resisto a transcrever uma quadra popular Nisorra que por lá aprendi e acho absolutamente genial:
Os olhos daquela àquela
Os olhos daquela ali
Ô tu le tens amezéde
Ô ela tarátati
É o puro falar de cada terra. Tão nosso como tudo o que de mais genuíno existe por estas bandas. E sinto-me no dever de defendê-lo como defendo as outras coisas nossas porque são únicas e encantadoras. Os usos e costumes e entre eles o nosso falar, são também um património de que devemos orgulhar-nos e urge defender.

José Coelho