sexta-feira, 24 de junho de 2022

Só me faltou até hoje, acertar na chave do euromilhões

A Estação da Beirã a aguardar a chegada do Lusitânia
Foto Pedro Coelho - Dezembro 2010

"Com o fim do comboio regional de passageiros no Ramal de Cáceres, anunciado para daqui a poucos dias, encerra também o melhor capítulo da vida de muita gente. Vou, a título de mero exemplo, cingir-me só ao que a mim próprio diz respeito, porque nasci a ouvir o silvo rouco daquelas então velhas máquinas negras fumarentas de grandes rodas e manivelas gigantescas movidas a vapor, que, ao chegarem muitas vezes à estação, enchiam tudo de um nevoeiro quente e húmido que se estendia por toda a parte baixa da aldeia quando tinham que descarregar o excesso de pressão acumulada no percurso.

A minha casa fica num alto sobranceiro à Estação a menos de cem metros em linha reta, a qual posso ver das janelas traseiras da casa ou do quintal, de dia e de noite, porquanto os holofotes que iluminam todo o seu perímetro, rasgam a escuridão e refletem a sua poderosa luminosidade por toda a colina, até ao depósito das águas que abastece a povoação, lá bem no alto. Mas não só. Toda a minha vida é um mar de boas recordações. Mal sai da estação de Valência de Alcântara no país vizinho, poucos quilómetros percorridos assoma a via-férrea ao alto do Sesmo antes de entrar em Portugal. E logo o potente rugido das máquinas se anuncia ao longe, fazendo-se ouvir no meu quarto, desde que me lembro de ser gente.

Do outro lado da nossa casa a oriente, onde se situa o quarto que sempre foi dos meus pais, era comum ouvi-los comentar:

- Vem aí alguma mudança de tempo. Esta noite ouviam-se os comboios assim que assomavam à curva da Atalaia!

O comboio era um relógio, porque tinha horas certas para chegar ou para partir, assim como a intensidade do barulho que ao longe fazia trazido pelo vento, era um boletim meteorológico muitas vezes certo, das gentes simples do campo.

Também a casa dos meus avós maternos se situava ao lado da passagem de nível da Cavalinha, nas traseiras da Caseta dos Assentadores da CP cujas esposas eram suas guardas que tinham por missão fechar e abrir as cancelas para a passagem segura das inúmeras composições de mercadorias ou de passageiros que circulavam dia e noite.

Menino de tenra idade, entregava-me a minha mãe algumas vezes ao cuidado do meu avô Zé Lourenço, para ir com a minha avó Amélia sachar milho, ou outros trabalhos no campo, próprios das mulheres desse tempo. E lá andava eu todo o dia com ele por aquelas tapadas de um e do outro lado da linha a ver os comboios passar e a saltar de pedra em pedra, a ouvir “as meninas a cantar” que ele dizia ser aquele zumbido cacofónico que se percebia ao encostar o ouvido aos postes dos fios telefónicos existentes ao longo da via-férrea, enquanto o avô "ouseava" as ovelhas.

E depois…

Bem… Depois, a ida a Évora no comboio quando aos 17 anos de idade me ofereci voluntário para a tropa e fui chamado à Inspeção Militar ao RI 16 na Cidade-museu, numa viagem de várias horas e outros tantos transbordos, o primeiro na Torre das Vargens para a estação de Portalegre e ali de novo para Estremoz e Évora. Foi uma aventura e tanto. Depois, ao longo de muitas décadas, as incontáveis viagens com o comboio sempre aqui à porta, a levar-me na ida ou a trazer-me na volta. Elvas como recruta, Lisboa como especialista, Estremoz novamente já mobilizado para Angola, Santa Margarida a aguardar embarque para a guerra, e finalmente para me devolver à Beirã e à minha gente são e salvo 37 longos meses depois.

Foi o comboio que me levou em 1975 para a Beira Baixa, via Abrantes, Castelo Branco e Fundão, com destino às Minas da Panasqueira. Nele tive sempre o mesmo transporte seguro e pronto, quase à porta. Para qualquer parte do país e pelo Ramal de Cáceres que sempre dispôs de excelentes acessos para muitos e diversificados destinos, bastando para isso aceder à Torre das Vargens, a Abrantes, ao Entroncamento ou a Lisboa. De manhã à noite, eram várias as opções de escolha nos horários de partida ou de chegada e dias havia que a partir da estação de Castelo de Vide já não havia lugares sentados vagos, pelo que se tinha que viajar de pé nas coxias e corredores das carruagens.

Mais tarde, quando, em função das minhas pretensões de ascender na carreira profissional, uma vez mais, durante três longos e consecutivos anos, viajei semana após semana no comboio de Castelo de Vide para a capital onde frequentei os respetivos cursos de promoção no Alto da Ajuda, rumando depois a São João da Madeira e ao Porto como estagiário, sempre com a excelente comodidade de poder viajar todas as semanas para onde quer que necessitava deslocar-me. E como eu, milhares de passageiros de toda esta região. É inacreditável que hoje, passadas pouco mais de duas décadas, isto esteja a acontecer. Suprimir o serviço regional de passageiros no Ramal de Cáceres é, por outras palavras, encerrar este serviço público definitivamente. Não tenhamos ilusões.

Restará, daqui nem diante, o Lusitânia Comboio-Hotel que utilizará este percurso duas vezes ao dia – ou à noite – entre Lisboa e Madrid e vice-versa.

Até quando?

Todos nós sabemos. Mal se inaugure o tão badalado TGV, o Lusitânia deixará de ser necessário. E o Ramal de Cáceres encher-se-á de silvas e mato em todo o seu percurso. As suas lindíssimas Estações definharão até caírem e a memória de um povo que esteve ligado a tudo isto durante quase um século e meio, desaparecerá inexoravelmente na bruma do tempo. É verdade que neste momento talvez não seja rentável. Mas porquê? Serão os serviços oferecidos pela CP eficientes? E se, em vez de suprimirem este serviço regional de passageiros para suprimirem eventuais prejuízos, porque não suprimem antes alguns "tachos" na Administração da CP mais os seus chorudos ordenadões, mais os carros topo de gama com motorista e um nunca mais acabar de mordomias que, isso sim, é o que causa ainda maiores prejuízos à empresa?

Vendo as coisas por outro prisma ainda, não pagam as populações desta esquecida zona do nosso país os seus impostos como todos os outros? Então, porque têm que os Marvanenses, os Castelovidenses, os Cratenses ou os Nisenses de contribuir com os seus impostos para pagarem auto-estradas que não atravessam os seus concelhos, pontes sobre Tejo, Douro ou Guadiana que pouco ou nada acrescentam ao norte-alentejo e muitas outras obras faraónicas que servem só quem vive lá perto, mas não há uns míseros euros para manter a porra de uma automotora que sirva nem que seja só a minha vizinha Júlia que tem a sua filha e os seus netos a viverem nas Caldas da Rainha, é viúva, já entrada na idade e não tem outra forma de se deslocar para ir visitá-los?

Ou será que...

Os habitantes destes municípios NÃO SÃO PORTUGUESES como aqueles do litoral ou das outras grandes metrópoles onde se faz tudo e mais alguma coisa, nem que para isso os governos tenham que se endividar até aos olhos?

Ou ainda que...

Nós por cá só somos cidadãos como os outros, quando é preciso encher urnas com votos? 

José Coelho - 27.01.2011" 


Post Scriptum

Este “desabafo” foi por mim publicado no início de 2011 num blogue meu que já não existe, quando se soube que o serviço de passageiros no Ramal de Cáceres ia ser suprimido ficando apenas a ligação Lisboa-Madrid pelo Lusitânia Comboio-Hotel. Tal como eu já previa e temia, esse derradeiro serviço foi completamente suprimido e a ligação Lisboa-Madrid com o Lusitânia mesmo ainda sem TGV passou a efetuar-se por Salamanca dali a pouco tempo. O Ramal de Cáceres foi completamente desativado algumas semanas depois.