quarta-feira, 14 de maio de 2025

Coisas qu'escrevi faz tempo

A Estação da Beirã a aguardar a chegada do Lusitânia
Foto Pedro Coelho - Dezembro 2010

Com o fim dos comboios pelo Ramal de Cáceres, encerrou também o melhor capítulo da vida de muita gente, mas vou cingir-me só ao que a mim diz respeito, porque nasci a ouvir o silvo rouco daquelas então velhas máquinas negras fumarentas de grandes rodas e manivelas gigantescas movidas a vapor e que, ao chegarem muitas vezes à estação, nas descargas da pressão acumulada nas suas caldeiras, enchiam tudo de um nevoeiro quente e húmido que se estendia por toda a parte baixa da aldeia.

A minha casa fica numa colina pedregosa sobranceira à Estação a menos de cem metros em linha reta, a qual posso ver das janelas traseiras da casa ou do quintal de dia e de noite, porquanto os holofotes que iluminavam todo o seu perímetro, rasgavam a escuridão e refletiam a sua poderosa luminosidade por toda a colina até ao depósito das águas que abastece a povoação, lá bem no alto. 

Mas não só. 

Toda a minha vida é um mar de boas recordações. 

Mal sai da estação de Valência de Alcântara no país vizinho, poucos quilómetros percorridos assomava a via férrea ao alto do Sesmo, uma "finca" agrícola fronteiriça com a freguesia da Beirã, antes de entrar em Portugal. E logo o potente rugido das máquinas se anunciava ao longe, fazendo-se ouvir no meu quarto desde que me lembro de ser gente.

Do outro lado da nossa casa, a oriente, onde se situa o quarto que sempre foi dos meus pais, era comum ouvi-los comentar:

- Vem aí mudança de tempo. Esta noite ouviam-se os comboios assim que assomavam à  Atalaia!

O comboio era um relógio porque tinha horas certas para chegar ou partir e a intensidade do barulho que ao longe produzia trazido pelo vento, era um boletim meteorológico muitas vezes certo, das gentes simples do campo.

Também a casa dos meus avós maternos se situava ao lado da passagem de nível da Cavalinha, nas traseiras da Caseta dos Assentadores da CP cujas esposas eram suas guardas que tinham por missão fechar e abrir as cancelas para a passagem segura das inúmeras composições de mercadorias ou de passageiros que circulavam dia e noite.

Menino de tenra idade, entregava-me a minha mãe algumas vezes ao cuidado do meu avô Zé Lourenço, para ir com a minha avó Amélia sachar milho, ou outros trabalhos no campo, próprios das mulheres desse tempo. E lá andava eu todo o dia com ele por aquelas tapadas de um e do outro lado da linha a ver os comboios passar e a saltar de pedra em pedra, a ouvir “as meninas a cantar” que ele dizia ser aquele zumbido cacofónico que se percebia ao encostarmos o ouvido aos postes dos fios telefónicos existentes ao longo da via férrea, enquanto o avô "ouzeava" as ovelhas.

E depois…

Bem… Depois, a ida para Évora no comboio quando aos 17 anos de idade me ofereci voluntário para a tropa e fui chamado à Inspeção Militar ao Regimento de Infantaria Nº 16 da Cidade Museu, numa viagem de várias horas e outros tantos transbordos. O primeiro na Torre das Vargens para a estação de Portalegre e ali de novo para Estremoz e depois Évora. 

Foi uma aventura e tanto. 

Depois ao longo de muitas décadas as incontáveis viagens com o comboio sempre aqui à porta, a levar-me na ida ou a trazer-me na volta. Elvas como recruta, Lisboa como especialista, Estremoz novamente já mobilizado para Angola, Santa Margarida a aguardar embarque para a guerra, e finalmente para me devolver à Beirã e à minha gente são e salvo 37 longos meses depois.

Foi o comboio que me levou em 1975 para a Beira Baixa, via Abrantes, Castelo Branco e Fundão, com destino às Minas da Panasqueira. Nele tive sempre o mesmo transporte seguro e pronto. Para qualquer parte do país e pelo Ramal de Cáceres que sempre dispôs de excelentes acessos para muitos e diversificados destinos, bastando para isso aceder à Torre das Vargens, a Abrantes, ao Entroncamento ou a Lisboa. 

De manhã à noite eram várias as opções de escolha nos horários de partida ou de chegada e dias havia que a partir da estação de Castelo de Vide já não havia lugares sentados vagos, pelo que se tinha que viajar de pé nas coxias e corredores das carruagens.

Mais tarde, quando em função das minhas pretensões de ascender na carreira profissional durante três longos anos consecutivos, viajei semana após semana no comboio de Castelo de Vide para a capital onde frequentei os respetivos cursos de promoção no Alto da Ajuda, rumando depois a São João da Madeira e ao Porto como estagiário, sempre com a excelente comodidade de poder viajar todas as semanas para onde quer que necessitava deslocar-me. 

E como eu milhares de passageiros de toda esta região. É para mim ainda quase inacreditável que isto esteja a acontecer. Suprimir o serviço regional de passageiros e de mercadorias no Ramal de Cáceres foi, por outras palavras, encerrar definitivamente um serviço público sem o menor escrúpulo pelo retrocesso que tão nefasta decisão tomada nos gabinetes do Terreiro do Paço por pessoas que nem sabiam com certeza onde "isto" ficava no mapa de Portugal, ia trazer a todas as populações e serviços que lhe estavam anexos. 

Hoje o Ramal de Cáceres enche-se de silvas e de mato em quase todo o seu percurso. As suas lindíssimas Estações definham e a memória de um povo que esteve ligado a tudo isto durante quase um século e meio, desaparecerá inevitavelmente na bruma do tempo. É verdade que talvez não fosse muito rentável. Mas porquê? Seriam os serviços oferecidos pela CP eficientes? E se, em vez de suprimirem este serviço regional de passageiros para suprimirem eventuais prejuízos, porque não suprimem alguns "tachos" na Administração da CP e os seus chorudos ordenadões, acrescidos de automóveis topo de gama com motorista e um nunca mais acabar de mordomias, porque, isso sim, é que causa enormes prejuízos à empresa?

Vendo as coisas ainda por outro prisma, não pagam estas populações os seus impostos como todos os outros? Então, porque têm de os Marvanenses, os Castelovidenses, os Cratenses ou os Nisenses contribuirem com os seus impostos para auto-estradas que não usam pois nenhuma atravessa os seus concelhos, pontes sobre Tejo, Douro ou Guadiana que pouco ou nada acrescentam ao Norte-Alentejo, e quantas outras obras faraónicas de milhares de milhões que servem só quem lá vive perto?

Ou será que...

Os habitantes destes municípios NÃO SÃO PORTUGUESES como os do litoral ou das outras grandes metrópoles onde se faz tudo e mais alguma coisa, nem que para isso os governos tenham que se endividar até aos olhos?

Ou ainda que...

Nós por cá só somos cidadãos iguais aos outros quando é preciso encher as urnas de votos? 

José Coelho