segunda-feira, 5 de maio de 2025

Água mole em pedra dura



Não sou adepto de histórias da desgraçadinha, mas adoro ler e escrever desde que aprendi a fazê-lo. É o meu mais-que-perfeito entretém desde então. Nunca tive, contudo, a pretensão de armar-me em intelectual porque sei o pouco que sei, melhor dizendo, sei quão limitadas são as minhas habilitações literárias das quais no entanto não me envergonho nem escondo. Escrevo com simplicidade tudo o que me vai na alma no instante em que começo a teclar qualquer texto, como aqui e agora.

Não gosto ainda de fazer queixinhas daquilo que de menos bom me acontece. Desde sempre. Talvez pela forma como fui educado porque me ensinaram a defender-me sozinho e de assumir sem medo a culpa que me coubesse, bem como a rejeitar imediatamente também qualquer responsabilidade que não fosse minha. Até na escola, gaiatos ainda, ai daquele que fizesse queixinhas à professora porque levava seguramente uma malha dos outros todos à saída, para aprender a não ser bufo. 

Tive o impagável privilégio de ter sido criado nessa época dura, mas que decididamente formou o meu carácter e o de todos os meus conterrâneos desse tempo.

Têm estes primeiros parágrafos apenas uma intenção. A de, grosso modo, prefaciarem o que tenho para escrever e ando há que tempos a planear fazer mas nunca mais sai. É complicado falarmos de nós, dos nossos queixumes e segredos. Quem os não tem? Todos temos. Por mais que tentemos escondê-los ou disfarçar. Só não assumimos porque não queremos dar parte de fracos, porque temos alguma relutância em revelar coisas íntimas que nos perturbam ou fragilizam.

Vamos lá então, que hoje isto vai mesmo sair tudo cá para fora.

Foi há seis anos que tudo começou a mudar. Corria o ano de 2016 e algo não estava bem. Sinais alarmantes indicaram subitamente através do resultado de um exame prévio que havia necessidade de levar a "máquina" a uma revisão completa. E assim foi. Numa "oficina de marca" foi-me em poucos dias diagnosticada a necessidade de uma cirurgia inovadora para remoção de algo que todos estremecemos só de ouvir pronunciar. 

- Vá para casa e pense... disse-me o ilustre "mecânico".

Pensar? 

O quê? 

Não havia mais nada a fazer senão expurgar o intruso de onde ele se instalou! E quanto antes. Para que não se assenhorasse da casa ou das outras divisões à sua volta. Por isso no mesmo instante ficaram definidos o dia e hora para a ação de despejo do indesejado inquilino. E nesse mesmo dia e hora toda a minha estrutura psíquica teve de sofrer também uma profunda remodelação. A longevidade com que todos temos o direito de sonhar deixou de ser uma aspiração vulgar para passar subitamente à definição de... 

Um dia de cada vez!

E o que isso muda na gente, meus amigos.

Perguntas em catadupa no silêncio das noites de insónia que se seguem, quietinhos na cama para a companheira não perceber que não conseguimos dormir. E o inevitável "porquê eu"? Depois os olhares e os murmúrios que percebemos à nossa volta enquanto as bocas pertencentes a esses olhares pronunciam frases completamente opostas àquilo que os seus olhos refletem. É complicado. 

E pensa-se em fulano, cicrano ou beltrano que conhecemos, passaram pelo mesmo e não levaram de vencida.

Depois da cirurgia, mesmo que corra bem como correu, a vida passa a ficar pendente da próxima revisão. Primeiro quinzenal depois mensal, depois trimestral depois semestral e por fim anual. Essa, é para o resto da vida. Vigiar, vigiar, vigiar. E mais este sinal e mais aquele sintoma estranho. E não fazer "queixinhas" para não inquietar mais ninguém. Depois exames à meia dúzia que fica mais barato, numa só manhã. E finalmente um "está tudo bem, por agora, volte daqui a xis meses".

Pois.

É a vida, dizem.

Uma vida que, não querendo ser o tal piegas nem escrever histórias da desgraçadinha, bem podia de vez em quando ir dando umas tréguas. 

Uma vida que me colocou a guardar ovelhas aos 11 anos enquanto os meus amigos continuavam a brincar pelas ruas da aldeia ou a estudar, o que eu não pude. 

Uma vida que me obrigou a ser precocemente adulto e me levou para uma guerra injusta - como todas são - para deixar por lá grande parte da minha anterior alegria de viver. 

Uma vida de contínuos desafios, percalços e filhadeputices, apertos dos quais nunca ninguém me ouviu queixar mas doeram intensamente. 

Resumido em poucas palavras, uma vida de merda. Mas a fazer inveja a muita gente que não sabe, nem precisa saber, da missa um terço.

Por essas e por outras "refugiei-me" neste meu porto de abrigo que com tantos sacrifícios consegui erguer, a Toca dos Coelhos, inúmeras vezes cansado de tanto remar contra a maré, de acreditar no pai natal, resignado mas cada vez mais revoltado por não conseguir compreender tantos reveses.

A gente pode até ser rijo, resiliente, lutador e acho que sou. 

Mas... 

"Água mole em pedra dura tanto bate até que fura".

E a pedra, mesmo sendo de puro granito, já não vai suportando as batidas...

 José Coelho
(Texto e foto)