Foto José Coelho
Não sou adepto de histórias da desgraçadinha mas adoro ler e escrever desde que aprendi a fazê-lo. É o meu mais-que-perfeito entretém desde então. Nunca tive contudo a pretensão de me armar em escritor porque sei o pouco que sei, ou melhor dizendo, sei quão humildes são as minhas habilitações literárias. Limito-me por isso a escrever com simplicidade tudo o que me vai na alma no preciso instante em que começo a rabiscar qualquer texto, como aqui e agora.
Não gosto também de fazer queixinhas daquilo que me acontece. Desde sempre. Talvez pela forma como fui educado porque me ensinaram a defender-me sozinho e sem medo de assumir a culpa que me coubesse, assim como a rejeitar qualquer responsabilidade que não fosse minha. Até na escola, gaiatos, ai daquele que fizesse queixinhas à professora porque levava seguramente uma malha dos outros todos à saída para aprender a não ser bufo.
Tive o impagável privilégio de ter sido criado nessa feliz época que decididamente formou o meu carácter e o de todos os meus conterrâneos desse tempo.
Têm estes primeiros parágrafos apenas uma intenção. A de, grosso modo, prefaciarem o que tenho para escrever e ando há que tempos a planear fazer mas nunca mais sai. É complicado falarmos de nós, dos nossos medos e segredos. Quem os não tem? Todos temos. Por mais que o tentemos esconder ou disfarçar. Só não assumimos porque não queremos dar parte de fracos, porque temos alguma relutância em revelar coisas íntimas que perturbam ou fragilizam a nossa paz.
Vamos lá então ver se hoje isto vai.
Foi há seis anos que tudo começou a mudar. Corria o ano de 2016 e algo não estava bem. Sinais alarmantes indicaram subitamente através do resultado de um exame prévio que havia necessidade de levar a "máquina" a uma revisão completa. E assim foi. Numa "oficina de marca" foi-me em poucos dias diagnosticada a necessidade de uma cirurgia inovadora para remoção de algo que todos estremecemos só de ouvir pronunciar.
- Vá para casa e pense... disse-me o ilustre "mecânico".
Pensar?
O quê?
Não havia mais nada a fazer senão expurgar o intruso de onde ele se instalou! E o quanto antes. Para que não se assenhorasse da casa ou de outras divisões. Por isso no mesmo instante ficaram definidos o dia e hora para a ação de despejo de tão indesejado inquilino. E nesse mesmo dia e hora toda a minha estrutura psíquica teve de sofrer também uma profunda remodelação. A longevidade com que todos temos o direito de sonhar deixou de ser uma aspiração vulgar para passar subitamente à definição de... um dia de cada vez!
E o que isso muda na gente, santo Deus.
Perguntas em catadupa no silêncio de inúmeras noites de insónia, quietinhos na cama para a companheira não perceber que não conseguimos dormir. E o inevitável "porquê eu"? Depois os olhares e os murmúrios que percebemos à nossa volta enquanto as bocas pertencentes a esses olhares pronunciam frases completamente opostas àquilo que os seus olhos refletem. É complicado.
E pensa-se em fulano, cicrano ou beltrano que conhecemos e que...
Depois da cirurgia a vida passa a ficar pendente da próxima revisão. Primeiro quinzenal depois mensal, depois trimestral depois semestral e por fim anual. Essa, é que é para o resto da vida. Vigiar, vigiar, vigiar. E mais este sinal e mais aquele sintoma estranho. E não fazer "queixinhas" para não inquietar mais ninguém. Depois exames à meia dúzia que fica mais barato, numa só manhã. E finalmente um "está tudo bem, por agora, volte daqui a x meses"...
Pois.
É a vida, dizem.
Uma vida que, não querendo ser o tal queixinhas nem fazer uma história da desgraçadinha, bem podia de vez em quando dar umas tréguas.
Uma vida que me colocou a guardar ovelhas aos 11 anos enquanto os meus amigos continuavam a brincar pelas ruas da aldeia ou a estudar, o que eu não pude.
Uma vida que me obrigou a ser homem precocemente e me levou para uma guerra inclemente para lá deixar grande parte da minha alegria de viver.
Uma vida de contínuos desafios e percalços, de filhadeputices e espinhos, dos quais nunca ninguém me ouviu queixar mas que doeram infinitamente.
Resumido em poucas palavras, uma vida de merda.
Por essas e por outras refugiei-me no meu porto de abrigo que é a Toca dos Coelhos e que com tantíssimos sacrifícios consegui erguer, inúmeras vezes cansado de tanto remar contra a maré e de acreditar no pai natal, resignado com a fraca sorte mas revoltado por não conseguir compreender tantos porquês.
Vamos ver se o capítulo que se avizinha não irá trazer novos e indesejáveis sobressaltos. Diz o provérbio que "água mole em pedra dura tanto bate até que fura" e esta pedra, mesmo sendo de rijo granito, já não vai suportando mais batidas...
José Coelho