quinta-feira, 15 de maio de 2025

Pão que o diabo amassou

Foto Estúdio Cardinho Ramos - Castelo de Vide - Ano 1966


Comecei a "trabalhar p'rá casa" no dia imediatamente a seguir àquele em que fiz o exame da quarta classe. Naquele tempo era assim e ponto final. Eu ainda fiz a quarta classe, mas muitos da minha idade nunca puseram sequer os cotos na escola porque moravam longe ou porque os pais, pelas mais diversas razões, assim decidiam.

Não havia ainda ensino obrigatório para ninguém.
Ter a quarta classe como eu tinha em 1962 era ser-se quase doutor (em ponto pequeno, mas pronto). Não estranhei por isso começar a ganhar o pão de cada dia depois dos quatro anos de "curso". Pelo contrário, aquilo era o primeiro passo para deixar de ser gaiato e começar a ser já moço e com direito a ir aos bailes para deitar o olho às gaiatas.
Era tão mais descomplicada a vida, santo Deus!
Fui pastor, ajudante de vaqueiro, depois aprendiz de ganhão e finalmente ganhão também, agarrado à rabiça do arado atrás de uma junta de vacas.
Trabalhávamos de sol a sol. No verão o "mata-bicho" era às seis da manhã. E nos Pavios do tio José Bonacho - que Deus tem - esperava-nos, ainda lusco-fusco, um alguidar a transbordar de feijão-frade guisado com arroz e farinheira, já primorosamente cozinhados pela ti Jaquin'àBonacha, de onde comíamos todos. Não havia pratos individuais para ninguém. Comia-se assim “de barranhão" sempre.
Naquele tempo não havia as esquisitices que há hoje e éramos todos sadios como pêros.
Por isso àqueles madrugadores "mata-bichos" diários de alguidar, dava-se o nome de "almoço" em todas as casas de lavoura da região. Depois por volta das dez da manhã fazia-se uma pausa para “a bucha" onde se comia pão com queijo ou com azeitonas. E por volta da uma e meia da tarde, era a hora do "jantar".
Quem conhece o Restaurante “O Cruzamento” na rota do Baixo Alentejo para o Algarve, onde é servido como um dos pratos principais o famoso “Jantarito Alentejano”?
Era composto quase sempre por sopa grossa de grão ou de feijão com legumes e duas monumentais toras de carne de porco, uma das quais de toucinho da salgadeira e a outra tanto podia ser de mouro, como de chouriço ou morcela, cozidos com os grãos ou feijões para fazerem melhor tempero e darem ainda mais gosto.
Seguia-se a sesta até às três da tarde, desde o início de maio até finais de julho. Mais uma pausa para descanso e mais outra bucha por volta das seis da tarde, hora da merenda. E às nove da noite, era a ceia. É necessário ter-se em conta que desde a alvorada às seis da manhã até às dez/onze da noite que se ia para a cama, eram quinze/dezasseis horas a pé e a trabalhar no duro todo o dia.
Andei por lá nessas lides até aos treze anos. Por ser demasiado longe, só podia vir a casa ver a família, trazer a roupa suja e levar roupa lavada, de quinze em quinze dias.
Salvou-me daquele isolamento o melhor amigo de toda a minha vida.
O meu pai.
Não fora para me castigar que ele não me havia metido ainda na sua equipa. Era por o seu trabalho ser bem mais duro e pesado que o que eu tinha como guardador de gados e ganhão. Para além de ser um agricultor de mão cheia, tinha também o meu pai o ofício de cabouqueiro, a arte de transformar blocos de granito de toneladas de peso em rachão para os alicerces de obras, calçada para calcetar as ruas ou brita para os mais diversos usos.
Sendo subempreiteiro de engenheiros-empreiteiros responsáveis por obras públicas, tinha a sua equipa de artesãos com cinco ou seis homens da sua idade e com os quais trabalhava dia a dia ombro a ombro, como mais um deles.
A estreia de aprendiz de cabouqueiro foi assaz dolorosa.
O meu serviço consistia em aproveitar as lascas mais pequenas sobrantes do rachão e transformá-las em brita mais miúda, agarrado a uma pequena marreta de cabo fino e comprido.
Ao fim de quatro dias, as palmas das duas mãos não tinham pele. Eram uma só ferida. Para conseguir pegar no cabo da marreta tinha de envolver as mãos em trapos. Aguentei, porque voltar para o Monte dos Pavios e vir a casa só duas vezes por mês, seduzia-me muito menos do que as chagas nas mãos, que, entretanto, calejaram.
Foi, posso afirmá-lo, comer o pão que o diabo amassou.
Mas por lá andei até ir para a tropa.