domingo, 18 de maio de 2025

Sei que fiz o que devia

Foto Pedro Coelho


Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais


Nascemos filhos. E esperamos ser filhos para sempre. Mimados, educados, amados. Que os nossos pais invistam doses cavalares de amor em todo o nosso caminho pela vida. Que quando a vida doer, haja um colo materno. Que quando a vida angustiar, encontremos neles um conselho sábio. E, quando isso nos falta, há sempre uma lacuna, um sentimento estranho de sermos exceção.

Mesmo adultos, esperamos reconhecer a nossa meninice nos olhos dos nossos pais. Desejamos, intimamente, atenções miúdas, como a comida favorita no dia do nosso aniversário ou uma camisola do nosso clube de futebol se estamos em casa deles.

Não estamos prontos para trocar de lugar nesta relação.

É difícil aceitar que os nossos pais envelhecem. Entender que as pequenas limitações que começam a apresentar não são preguiça nem desdém. Que não é porque se esqueceram de dar um recado que não se importam com a nossa urgência. Que pedem para repetirmos a mesma frase porque já não ouvem bem, porque às vezes, não está surdo o ouvido, mas distraído o cérebro. Demora até aceitarmos que não são já os mesmos super-heróis, que não podemos já dividir toda a nossa angústia e todos os nossos problemas porque para eles as proporções são ainda maiores e tudo se desregula: o ritmo cardíaco, a tensão, a taxa glicémica, o equilíbrio emocional.

Vamos ficando um pouco cerimoniosos por amor. Tentando poupá-los ao que é evitável. Então, sem querer, começamos a inverter os papéis de proteção. Passamos a tentar resguardar nossos pais dos abalos do mundo.

Dizemos que estamos bem, apesar da crise. Amenizamos o diagnóstico do pediatra para a infecção do neto parecer mais branda. Escondemos as incompreensões do casamento para parecer que construímos uma família eterna. Filtramos a angústia que pode ser passageira ao invés de dividir qualquer problema. Não precisam preocupar-se: estaremos bem no final do dia e no final das nossas vidas. Mas, enquanto mudamos esses pequenos detalhes na nossa relação, ficamos um pouco órfãos. Mantemos os olhos abertos nas noites insones sem podermos ir a correr chorando para a cama dos pais. Escondemos deles o medo de perder o emprego, o cônjuge ou a casa, para que não sofram sem necessidade e, aí, estamos sós nessa espera; não há colo, nem uma carícia para nos consolar.

Quanto mais eles perdem a memória, o vigor, a audição, mais sozinhos nos sentimos, sem compreender por que o inevitável aconteceu. Pode até surgir alguma revolta interior por esperarmos deles que reagissem ao envelhecimento do corpo, que lutassem mais a favor de si, sem percebermos, na nossa própria desorientação, que eles não têm a mesma consciência que nós, que não têm como impedir a passagem do tempo ou que possuem, simplesmente, o direito de se sentirem cansados.

Então pode chegar o dia em que nossos pais se transformem, de facto, em nossos filhos. Que precisemos de os lembrar que precisam de comer, de tomar os remédios ou de pagar uma conta. Que seja necessário conduzi-los nas ruas ou dar-lhes as mãos para que não caiam nas escadas. Que tenhamos que prepará-los e colocá-los na cama. Talvez até alimentá-los, levando o talher à sua boca.

E eles serão filhos piores do que nós fomos, porque se lembrarão que são os seus pais. Reagirão às suas primeiras investidas porque sabem que no fundo, você acha que lhes deve obediência. Enfraquecerão os seus primeiros argumentos e tentarão provar que ainda podem ser independentes, mesmo quando esse momento tiver passado, porque é difícil imaginarem-se sem o controle total das suas próprias rotinas. Mas cederão paulatinamente, quando a força física ou mental se reduzir e puderem encontrar no seu amor por eles, o equilíbrio para todas as mudanças que os assustam.

Não será fácil para você. Não é a lógica da vida. Mesmo que você seja pai, ninguém o preparou para ser pai dos seus pais. E se você não o é, terá que aprender as nuances desse papel para proteger aqueles que ama.

Mas, se puder, sorria diante dos comentários senis ou cante enquanto estiverem comendo juntos. Ouça aquela história já contada tantas vezes como se fosse a primeira e faça perguntas como se tudo fosse inédito. E beije-os na testa com toda a ternura possível, como quando se coloca uma criança na cama, prometendo-lhe que, ao abrir os olhos na manhã seguinte, o mundo ainda estará lá, como antes, intocável, para ela brincar.

Porque se você chegou até aqui ao lado dos seus pais, com a porta aberta para interferir em suas vidas, foi porque tiveram um longo percurso de companheirismo. E propor-se a viver esse momento com toda a intensidade só demonstrará o quanto é grande a sua capacidade de amar e de retribuir o amor que a vida lhe ofereceu.

Ana Gosling