terça-feira, 14 de março de 2023

Decididamente...


Decididamente este já não é o meu velho e querido país. Aquele Portugal de gente alegre e genuína nas suas maneiras de viver tão diferenciadas quanto o eram as tradições usos e costumes de cada província e região. A alegria que sempre nos caracterizou foi aos poucos sendo substituída pelos nossos semblantes fechados em consequência de inúmeras e sucessivas preocupações. O desemprego no seu sobe e desce, a precaridade laboral e os seus baixos salários, o galopante custo de vida em contraciclo com os quase sempre míseros aumentos salariais, as pandemias e as guerras, enfim, esta incerteza no dia de amanhã que se abate sobre as nossas cabeças qual cancro maligno sem remédio nem cura.

Decididamente e só não vê quem não quer porque tem ou teve, para si ou para algum dos seus, interesse, proveito ou lucro com as políticas que nas últimas décadas foram despejadas a cachão sobre as nossas cabeças, principalmente os resistentes que teimamos em continuar a viver no interior do território luso cada vez mais abandonado e sem os recursos necessários ao comum bem-estar, apesar de não ser também já muito famosa a situação daqueles que noutro tempo julgaram oportuno debandarem para o litoral ou para os grandes centros urbanos.

Decididamente é aberrante termos que assistir ao desfilar destes sucessivos escândalos públicos já quase diários, indignidades sem tamanho protagonizadas na sua esmagadora maioria por altas entidades, figuras públicas, de tal forma que acabamos por já quase nem fazer caso e encolher de ombros como se todas essas porcarias fossem normais. Que merda de sociedade foi construída nas últimas décadas, onde alguns navegam em oceanos de dinheiro que se desconfia não serem de origem lícita, enquanto outros sobrevivem no limiar da dignidade humana a "revoltear" pela calada da noite os contentores do lixo para arranjarem alguma coisa para matarem a fome?

Decididamente não aceito e não entendo que se atribuam pensões com menos de metade do valor do ordenado mínimo nacional à maior parte das pessoas que se reformam atualmente, que trabalharam e descontaram uma vida inteira. Será que essas pessoas passam a comer só já metade do que comiam, a pagar apenas metade de renda da casa, ou deixam de necessitar de roupa, de calçado, de medicamentos, a partir do dia em que se reformam? Porque é que mais de 40 anos de descontos dão direito a tão pouco, mas na política bastam 12 anos para se ter tanto? Será que os políticos quando se reformam passam a comer o dobro e a pagar também o dobro no supermercado?

Decididamente nunca entendi os cortes na saúde para poupar orçamentos de estado, enquanto muitos milhares de milhões são injetados regularmente na banca para proteger sabe-se lá que interesses. Por mais anos que eu ainda viva, nunca me irei esquecer da "briga" que tive com uma digníssima senhora doutora no banco de urgências de um hospital onde a minha mãe agonizava há várias horas com pavorosas convulsões resultantes - soubemos depois - de uma sepsis, que, como quase toda a gente também sabe, em 90% dos casos é fatal. Porém a senhora doutora entendeu dar-lhe alta, porque, disse, "aquele quadro" era normal na idade da doente, o que me fez "saltar a tampa", e já completamente "passado" lhe berrei aos ouvidos:

- Se a minha mãe fosse a mãe da senhora doutora, também a mandaria para casa neste estado?

Sabia com toda a certeza que ainda hoje me dói, que aquelas ordens eram "vindas de cima" e tinham de ser cumpridas pela senhora doutora em questão. Contenção de despesas não se compadecem com o estado por vezes crítico dos doentes como era o caso da minha mãe que, por ter 87 anos e estar a atingir o limite do seu tempo, estava a ser mandada para casa para ir morrer longe. E assim se pouparia uma injeção, uns comprimidos, quiçá talvez algum frasco de soro.

Decididamente estou hoje muito em paz com a minha consciência porque sei que pelo menos naquele dia e naquela minha furiosa falta de ética para com a senhora doutora no banco de urgências, salvei a vida da minha mãe. No momento seguinte, a senhora doutora perplexa com a minha emotiva reação mandou-me sair sem assinar os papéis da alta que era suposto eu ter de assinar, e, passados vinte minutos, um senhor enfermeiro veio ter comigo trazendo na mão um saco que continha as roupas da minha mãe, dizendo:

- A sua mãe fica internada, já está na cama 1 do SO.

Dias depois foi transferida para outro hospital a 100 km de distância, não sei se por necessidade, se por vingança pelo meu protesto, mas pelo menos recebeu os tratamentos e os cuidados que o seu estado de saúde careciam naquele crítico momento. E nós fomos de igual modo visitá-la todos os dias, mesmo àquela lonjura.

Decididamente sinto vergonha de ter nascido num país que tem parido gente capaz desta e de tantíssimas outras indignidades em nome de políticas com vista a um pretenso bem comum. Porque não poupam antes nas suas obscenas mordomias? Porque vivem os mentores destas decisões no bem-bom, no luxo e conforto onde nada falta nem aos seus filhos, nem aos seus pais, nem aos seus afilhados ou padrinhos. Quem já viu um senhor ministro, um senhor deputado, um simples senhor secretario de estado, um CEO, um Administrador ou afins, na fila de espera da urgência de um hospital público durante sete horas com uma pulseira de plástico enfiada num dos pulsos?

Decididamente não foi neste país que eu nasci, cresci, vivi a minha vida toda, trabalhei com dedicação e cumpri à letra as minhas obrigações fiscais, cívicas, profissionais e de cidadania. Honesto e íntegro até à medula em tudo aquilo que tinha de ser, fiel aos princípios e valores que recebi do berço e duvido que muitos dos fazedores destas leis e regulamentos que decidem definem e condicionam a nossa vida de uma forma geral, conheçam sequer...

José Coelho