Dez de Março. Dia do meu aniversário natalício. O carteiro trouxe algumas
cartas. Uma delas remetida pelo responsável ou dono – não sei o que é – de uma
Óptica numa das travessas de acesso à Praça dos Restauradores, na capital do
reino.
Lá dentro, agrafado a um cartão pessoal muito simples e conciso, vinha um cheque com determinada quantia. Pouco relevante o seu montante, mas muito relevante o seu contexto, por evidenciar a intrínseca honestidade de quem o emitiu e me o enviou.
Porquanto…
Só nos tínhamos visto uma vez na vida, mais precisamente a 5 de Dezembro daquele ano da graça.
A minha Maria Manuela sofre de um problema crónico de saúde e necessitamos deslocar-nos a Santa Maria periodicamente para ser avaliada em cirurgia vascular. Entretanto, aproveitamos sempre também para uns dias antes rumarmos a Setúbal e passarmos um tempinho com os filhotes caçulas, até porque, por norma, o Pedro acompanha-nos no dia da consulta.
E foi num desses dias que não sei como nem porquê se partiu inesperadamente a ponte em titânio “inquebrável” dos meus óculos. A gente só se apercebe da falta que essas coisas nos fazem quando ficamos sem elas. E assim me aconteceu a mim que pareço logo um cegueta sem o dito cujo acessório. Ou não transportasse eu em mim os malandros genes da geração Lourenço, quase todos a braços com sérios problemas de visão.
Fiquei sem conseguir enxergar nada! Nem as letras do jornal, nem as do computador ou os números do telemóvel. E em Setúbal nenhuma óptica trabalhava com a marca caríssima toda xpto e dinamarquesa, no tal titânio que segundo a publicidade que lhes é feita para justificar o seu elevado preço as apelida de inquebráveis, quase à prova de bomba.
Eis senão quando um excelente amigo dos Caçulas que trabalha nos Restauradores em Lisboa, sabendo que no dia seguinte iríamos a Santa Maria, nos indicou uma óptica onde talvez me resolvessem o problema. Assim fizemos. Mal nos despachámos da consulta médica rumámos à baixa pombalina onde sem grande dificuldade encontrámos a casa indicada.
Começámos logo por ser impecavelmente atendidos. Posto em seguida o problema, prontamente foi resolvido, uma vez que, ali sim, trabalhavam também com a marca Lindberg de fabrico dinamarquês. Foi mesmo só esperar o tempo necessário para o diligente senhor substituir a ponte partida por outra nova. Trabalho executado paguei, obviamente aliviado e já de novo “equipado” com os "quatro olhos" e muitíssimo satisfeito pois faziam-me mais falta os óculos na cara do que os euros na carteira.
Entretanto o senhor que tão impecavelmente me atendeu informou-me ainda cordialmente que os óculos eram mesmo de titânio supostamente inquebrável e não uma qualquer cópia fatela ou falsificação como eu estava a suspeitar, e que, por serem daquela prestigiada marca, ia enviar a peça partida para a fábrica na Dinamarca. Mais disse ainda que eles iriam reenviar-lhe gratuitamente a peça para substituição.
E que, logo que tal se verificasse, me iria devolver o montante que eu acabara de liquidar. Para esse efeito, solicitou-me o meu contacto telefónico, bem como o endereço postal, dos quais tomou a devida nota.
Passaram 3 meses. Nunca mais eu me lembrei de tal coisa, até ao dia em que através de chamada telefónica o senhor da óptica de quem eu nem sabia sequer o nome – e agora sei porque vinha no cheque – pediu a confirmação dos meus dados a fim de emitir o cheque com o valor a devolver, tal como havia previsto e prometido.
Nos tempos que correm, em meu entender, tal atitude é uma completa excepção à regra! Jamais eu pensei que alguma vez aquele dinheiro me iria ser devolvido, não só pela raridade da situação, como também pelo facto de não nos conhecermos de lado nenhum, pois se não fosse a necessidade de consertar os óculos, nunca nos teríamos cruzado nas nossas vidas.
São estes louváveis e extremamente belos comportamentos humanos que me surpreendem pela positiva e me fazem gostar de ser gente, porque acredito sinceramente que haverá mais pessoas com esta lisura de carácter e indiscutível idoneidade, merecedoras da nossa confiança e do mais profundo respeito.
Fiquei tão sensibilizado que no minuto seguinte estava a escrever àquele ilustre senhor a agradecer o seu honrado gesto mais valioso para mim do que propriamente o montante do cheque, apesar de não ser assim também uma quantia tão pequena, tão pequena, que a tornasse insignificante.
Eram algumas dezenas de euros.
E foi, sem dúvida alguma, das mais inesperadas prendas de aniversário que recebi em toda a minha vida, quer pelo seu elevado valor moral, quer por ter sido protagonizada por alguém que me era completamente desconhecido.
Dou graças a Deus por me ter concedido a oportunidade de conhecer este Ser Humano portador de tão valiosos princípios. São mestres assim que me incentivam e que tento sempre imitar, pois foi também entre pessoas desse calibre e craveira que cresci, aprendi, e me fiz gente.
Obrigado, desconhecido senhor. Foi uma honra sem tamanho ter-me cruzado consigo pelo caminho da vida...
José Coelho in Histórias do Cota