A colocação no Posto de Portalegre depois de terminado o curso de formação de guardas que naquele tempo se chamava “alistamento” em Junho de 1979, deu-me finalmente a oportunidade de conhecer ao vivo e em direto a tão falada Reforma Agrária. Aquela – em meu entender – deplorável asneira político-partidária resultante da Revolução de Abril que opunha ferozmente os donos das herdades àqueles que irregularmente as tinham invadido e ocupado.
No meio da contenda para mediar o conflito – nem sempre de forma isenta – cabia à Guarda estar presente a fim de evitar desacatos, proteger os técnicos do Ministério da Agricultura ou seus delegados, e, em suma, fazer cumprir a Lei, mesmo que algumas vezes inevitavelmente tivesse que usar a força para o conseguir.
Para aquela missão eram diariamente escalados vários militares de cada Posto da área, que formavam uma secção ou um pelotão de manutenção da ordem pública, variando o dispositivo em função da probabilidade prevista de risco de conflito no local programado.
Eram dias muito atribulados a percorrer caminhos de terra batida aos saltos dentro dos velhos e duros Land-Rover, a comer pó e com os nervos à flor da pele, a ouvir insultos, apupos e muitas vezes até o arremeço contra nós de tudo o que lhes vinha à mão, porque aquela gente não entendia ou fazia que não entendia que estávamos ali a cumprir ordens vindas do próprio governo.
Miminhos verbais como “cabrões” ou “filhos de puta” eram o nosso dia-a-dia. Em muitas dessas entregas houve mesmo desacatos a sério, originando tomadas de posição de força e retaliação para repor a ordem que resultavam em confrontos físicos ferozes e feridos. E foi num desses apertos, na cidade de Ponte de Sor junto ao tribunal que um identificado e na altura muito conhecido ativista, ali mesmo na minha frente, olhos nos olhos, me vociferou furioso:
-
Quando a gente deixar de trabalhar, vais comer espingardas, bastões, jipes e cães-polícias,
porco fascista…
Nem sequer foram as palavras que ele proferiu o que mais me impressionou. Foi a forma enviesada de ódio puro como me olhou a faiscar nos seus olhos.
Nós estávamos instruídos, mais que recomendados e fortemente mentalizados para nunca ripostarmos individualmente. Ninguém abria a boca, fazia qualquer gesto agressivo ou tomava qualquer atitude, fosse ela qual fosse ou em que circunstância fosse, sem ser para isso dada ordem por quem detinha o comando da força no local.
Aqueles insultos deviam ser considerados como sendo dirigidos à Guarda no seu todo e não individualmente a cada um dos guardas que ali estavam no desempenho de uma missão como qualquer outra. Por isso nenhuma reação a título individual seria tolerada. A nossa função primeira era evitar conflitos e não provocá-los, muito menos ser parte deles.
Foram assim “do caraças” muitos dias, semanas e meses. No meu espírito a perturbação instalou-se algumas vezes, com tão estranha contradição. Apenas meia dúzia de semanas atrás, era eu insultado e enxovalhado pelos comandantes de pelotão por eles acharem que eu era um comunista infiltrado:
- Levante esse punho só à altura do ombro enquanto marcha, senhor Coelho. Guarde a vontade de levantar o punho mais alto lá para os comícios do seu sindicato… Vociferava o tenente a enxovalhar-me perante o pelotão inteiro.
E
o sargento que o coadjuvava, ainda era mais agressivo. Já morreram os dois faz
tempo, já pagaram. Que a terra lhes seja leve… Contudo, ainda há por aí muitos camaradas vivos e de boa saúde que podem testemunhar estas verdades todas que escrevo e que são mesmo a verdade, só a verdade, apenas a verdade.
Naquele
dia, depois de tão censurável humilhação, um excelente camarada d’armas que era de Montargil e
que nunca mais vi depois do alistamento, veio ter comigo para me dizer à sucapa, não fosse mais alguém ouvir:
-
Não sei como tu aguentas isto, Coelho. Eu já me tinha ido embora e mandava-os
foder a todos. Mas não me ia embora sem primeiro partir os cornos a um…
Agradeci-lhe
a sua bondosa solidariedade e respondi tranquilo:
-
Isso é precisamente o que eles querem, amigo! Se eu o fizesse, eles ficariam felizes
por o terem conseguido e ainda por cima o culpado ia ser eu, por desistir a meu pedido.
Não tenho medo, não fiz mal a ninguém e quem não deve não teme. Se
quiserem pôr-me na rua, terão que ter tomates e serem eles a expulsar-me, justificando
muito bem a causa legal dessa expulsão...
A duras penas, mercê de muito querer e fazendo da razão da minha força, a força da minha razão, consegui, mercê de sucessivas notas altas em todos os testes semanais, que, do primeiro até ao penúltimo, foram sempre acima dos 17 valores, catapultando-me para o primeiro lugar na classificação geral. E só não fui o primeiro classificado do curso porque, no último teste, de topografia, os meus queridos “chefes” atribuíram-me apenas 13 valores àquele teste que me tinha corrido tão bem como os anteriores, mas assim, aqueles quatro ou cinco valores premeditadamente roubados, fizeram-me baixar a média das notas para o segundo lugar. Na sua enviesada mentalidade, conseguiram dessa fraudulenta forma impedir “o comunista” de subir à tribuna a receber o galardão de primeiro classificado.
Essa foi, entre outras, a mais grave filhadeputice que me fizeram, logo no início da minha carreira nas forças de segurança.
Então e não é que, algumas semanas depois, já na tal Reforma Agrária, no justo e cabal desempenho das minhas funções profissionais, continuei a ser insultado e enxovalhado...
...mas desta vez pelos comunistas, porque era GNR?
-
Vai lá vai…
Preso
por ter cão, preso por o não ter.
Dasss…
José Coelho in Histórias do Cota
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