Havia em Arêz um indivíduo muito conflituoso e agressivo com quase toda a gente. Era meio corcunda. Não sei se por ter aquela deformidade física, era de facto mau e não se dava com ninguém. Criava conflitos com toda a vizinhança por tudo e por nada e se algumas vezes as patrulhas tinham de intervir era certo e sabido que tinha de haver também sempre chatices porque ele não se coibia de responder mal e agressivamente fosse a quem fosse.
Tinha o indivíduo meia dúzia de vacas de raça turina que explorava como modo de vida, pastoreando-as por ali e vendendo depois o leite que lhe rendia algum dinheiro. Até aqui tudo bem, era uma forma de subsistência como outra qualquer. O grande e principal problema porém, era que ele não tinha terrenos nem pastos suficientes para pastorear as vacas o ano inteiro e invadia as propriedades dos vizinhos a torto e a direito indiferente aos protestos deles, maltratando-os e ameaçando-os verbalmente sempre que estes reclamavam, tendo mesmo chegado a agredir fisicamente alguns mais idosos com quem se atrevia melhor.
Foi a sua apetência para transgredir os preceitos de boa vizinhança e por achar seus, os pastos dos outros, que me levou ao confronto com ele. Após a enésima queixa de mais um vizinho, mandei, pela enésima vez também, a patrulha de intervenção avisá-lo que não podia invadir aquele terreno com as vacas. Como já se previa, o indivíduo para além de receber a patrulha com a maior insolência como era seu uso e costume, retrucou que “aquilo não eram terrenos da guarda nem do Estado e que por isso nós não tínhamos nada com isso...”
Em ato contínuo o Cabo Bugalho comandante da referida patrulha e um dos mais competentes graduados do efetivo do posto, contactou-me via rádio a dar conta da situação. Como não achei que aquela manifestação de pura ruindade pudesse conformar um crime de desobediência passível de detenção assim à priori, disse-lhe pela mesma via que o notificasse oficialmente e por escrito para comparecer no dia seguinte a determinada hora no posto para eu tentar de uma vez por todas elucidar o indivíduo que tinha que respeitar a lei e a ordem como qualquer outro cidadão
O “gajo” era bruto de facto, mas de parvo não tinha nada e no dia seguinte à hora que lhe tinha sido indicada lá estava a deitar fumo pelas ventas à minha frente no meu gabinete. Nem me deu tempo de lhe explicar nada. Começou logo por me “avisar” que era primo direito do doutor juiz – de quem eu era bastante amigo por sinal – e que me pusesse a pau que ele “tirava-me a farda”. Depois, nos mesmos modos irados, fez-me notar, como se isso não fosse visível, que era deficiente e que por isso tinha mais direitos do que as pessoas perfeitas porque essas podiam “fazer pela vida” melhor do que ele.
Ia continuar a sua verborreia mas teve azar porque eu tinha já perdido a paciência e dei-lhe um berro:
- CALE-SE…
O meu tom de voz não augurava já nada de pacífico.
Mas, velhaco como as cobras, o indivíduo não se intimidou. Qual quê! Cresceu ainda mais para mim, encostou quase o seu nariz ao meu. E provocantemente, perguntou-me num tom zombeteiro:
- Quer bater-me?
- Quer?
- Vá! Bata-me…
- Ande lá, bata-me…
Afifei-lhe um bofetão com tanta genica que o infeliz balançou.
Em seguida respondi-lhe, no mesmo tom de voz que ele utilizara:
- Não, por acaso não queria bater-lhe. Não estava minimamente nos meus planos. Mas o senhor insistiu tanto que não pude deixar de lhe fazer a vontade… Ou o senhor cuida que por ter uma pequena deficiência física pode fazer e dizer tudo quanto lhe dá na gana enquanto nós somos todos obrigados a ter muita pena do coitadinho do corcundinha? Como vê, comigo pia fininho ou saem-lhe as contas erradas...
O energúmeno empalideceu primeiro, depois ficou vermelho e a seguir ameaçou:
- Vou agora mesmo fazer queixa de si ao meu primo juiz que ele já lhe faz a folha…
Não fiquei minimamente preocupado porque conhecia suficientemente bem o senhor doutor juiz e ele conhecia-me também a mim de igual modo. Não era meu hábito negar fosse que episódio fosse. Se ele me chamasse dir-lhe-ia toda a verdade sem omitir nada e sem qualquer receio ou hesitação porque sempre assumi a responsabilidade dos meus atos fosse em que circunstância fosse.
Porém, tal não foi necessário, muito pelo contrário.
Passada meia hora o dito-cujo compareceu de novo no posto muito mais calminho mandado pelo seu primo, o qual, ao contrário do que ele esperava ouvir lhe terá respondido, conforme mais tarde me contou o próprio senhor doutor juiz:
- Se o sargento te deu uma bofetada é porque de certeza tu já merecias duas, pois eu conheço muito bem o homem. Volta lá e pede-lhe desculpa, escuta o que ele tem para te dizer que deve ser para teu bem, antes que tenhas problemas maiores e mais sérios...
E ali estava. E conversámos. E dali para a frente as chatices com ele diminuíram drasticamente.
Não tenho qualquer dúvida. Se não fosse a excelente colaboração entre a instituição que eu servia e todas as outras instituições públicas de Nisa, todo o meu trabalho e empenho, bem como o de todos os militares que comigo dedicadamente se empenhavam dia e noite, nunca teria alcançado tais resultados. E o desfecho deste episódio revela a confiança absoluta que existia entre nós, neste caso concreto, entre o Tribunal e a Guarda.
Outros tempos... Que bons e velhos tempos esses! E que falta fazia que continuasse a ser assim.
José Coelho in Histórias do Cota
(Excerto)