Imagem da Procissão dos Passos no ano de 2015
Foto José Coelho
Tradição, dizem. Cultura ancestral de um povo, penso eu. Coisas que mexem conosco. Coisas que cá encontrámos quando nascemos. Coisas que vão continuar muito depois de nos irmos. Religiosidade ou devoção. Fé para alguns. Para outros, se calhar a maioria, apenas curiosidade, embora digam que respeitam. Para muitos, não é nada. Não lhes diz coisa nenhuma. Rezas de padres e de gente beata, afirmam de sua justiça.
Ainda assim poucos serão os que não gostam dos usos e costumes desta época que remontam ao tempo dos Judeus habitantes da Judiaria de Castelo de Vide onde até edificaram a sua Sinagoga. E gostam particularmente da Semana Santa que se inicia nos Ramos para terminar na Páscoa, também apelidada na Vila pelos mais velhos, por Festa de Flores.
Até aqueles a quem "estas coisas" nada dizem, gostam. Porque é a altura do ano que vem a "famíla" de longe. A tal "famíla" que só ruma à terra-mãe na Páscoa e no Natal, para virem comer o "sarapaté" e o "guisade de borrégue" da primavera, ou as filhóses mais o "bacalhá co as couves" do inverno. Porque lá onde eles moram não há os chocalhos n'áleluia, nem os "miúdos do borrégue" e o sangue cozido para o "sarapaté". Nem mólhinhos ou pézinhos de tomatada. Já o "bacalhá co'as couves" em Lisboa "tamém s'arranjem" mas "nã sã" a mesma cousa...
E, sem essas belas iguarias... Olha lá ôu... Nã haveria "páscua" nem natal de "jête"...
Nas terras grandes estas tradições não têm os aromas nem os sabores que têm nas terras pequenas com'á nossa. Nas terras grandes ninguém se conhece. Uma pessoa pode morar anos a fio no segundo andar de um prédio que nunca chega a saber quem mora no rés do chão. Ou nos andares de cima. É tudo frio e distante. Quase sempre. Haverá, porventura, uma ou outra exceção.
E quem vive no lado oposto d'avenida é ainda muito mais desconhecido. Não é como a gente na vila e n'aldeia, que basta uma pessoa morar ao cimo ou ao fundo da rua p'ra se chamar logo de "vezinho". Só têm uma coisa melhor, as terras grandes. Como ninguém se conhece, não há "cusquice". Cada um faz o que quer sem ter ninguém a mirar, muitas vezes com má fé, cada passo e cada gesto.
E a comentar:
- Olha lá, viste o q'aquela fez!?
- Ouviste o q'aquela disse?
- Atão e tu já sabes que...?
Pois...
Não há bela sem senão!
Mas eu estava a escrever sobre a Quaresma. E este ano, como no anterior, rumarei à terra do meu Pai, porque lá é dia de feira. Dos Ramos. E numa feira há sempre coisas em conta. E já que estamos por lá, vamos ver a procissão. Dos Passos. Aquela que leva à frente o homem com vestes castanhas sempre a sacudir as matracas.
- Traca-traca-traca-traca!
- Traca-traca-traca-traca!
- Traca-traca-traca-traca!
Atrás, no enorme andor, o rosto em sofrimento do Senhor c'o a cruz às costas. Crentes e não crentes, toda a gente nas esplanadas se levanta das cadeiras quando o séquito se aproxima. E um silêncio respeitoso muito pouco habitual desce sobre todo o cenário. Só se ouve, lá à frente, o monótono traca-traca-traca-traca. Atrás do andor, a banda que acompanha a multidão, tece hinos religiosos tocados a meio tom. Com o rufar dos tambores, as pessoas vão cadenciando o passo. E uma rara sonoridade de simultâneos ecos paira no ar:
O traca-traca-traca-traca, das matracas;
O fom-fom-chifom-fom-fom, da banda;
E o esquerdo-direito-esquerdo-direito do calçado dos devotos no empedrado da rua!
É bonito de se ver e de se ouvir, sim senhor. E comovente também, para pessoas sensíveis. Serão já incontáveis as gerações que assistiram a estas cerimónias, ano após ano.
Atrever-me-ia a afirmar que há séculos...
José Coelho