domingo, 26 de março de 2023

Família - Raízes, ramos e folhas

Tudo o que mais amo na vida, está contido nesta foto

Muito novo tomei consciência do quão dura é a vida por ter nascido numa família humilde onde os princípios básicos elementares como a honestidade e a integridade de carácter constituíram sempre a mais exigente e inquebrável regra. Foi a minha mãe a nossa principal educadora, também ela educada pela sua progenitora a saudosa avó Amélia, santa velhinha que me ajudou a criar. Formada assim na escola da vida pela mão da mais virtuosa mestra, foi por isso mesmo também a pessoa certa que nos soube transmitir os mesmos valores e princípios que recebera do berço.

Lembro-me também com enorme carinho do avô José Lourenço, o mais paciente e bondoso ser humano que me foi dado conhecer até hoje, trajando quase sempre umas calças e casacos remendados pela minha avó que tudo aproveitava até poder. Só nos casamentos das filhas mais novas e ainda no de alguns netos, inclusive no meu, o vi aperaltado com um impecável fato de cerimónia e gravata. Sei que nunca deveram nem um centavo a ninguém. Com as suas modestas jornas e mais tarde com as suas ainda mais modestas pensões, conseguiam amealhar, tostão a tostão, algumas poupanças, o suficiente para terem uma vida minimamente digna e tranquila. 

Íntegros até à medula e por isso por toda a gente respeitados e estimados, era mais fácil o dinheiro não chegar para roupas novas do que faltar para as suas obrigações como a renda da casa ou outras. Sei que nunca passaram fome, mas comiam quase só do que a horta e o galinheiro produziam, até porque, para além da jorna de justo ao mês, o meu avô recebia para além do ordenado ajustado em dinheiro, também alguns géneros alimentares designados por “comedias” que consistiam em centeio em grão, feijão frade, queijos secos e azeite. Comedías eram as “coisas de comer” e por isso lhes chamavam assim.

Antes de conhecer e de casar com o meu pai, um dia por mês todos os meses, a minha mãe, filha mais velha de oito irmãos, 4 raparigas e 4 rapazes, tinha de carregar com o talego do centeio em grão à cabeça e calcorrear a pé os seis quilómetros que separavam o sítio do Muro onde moravam, até ao moinho do Tira-calças no rio Sever, quase ao pé das Amendoeiras, onde o centeio em grão era moído e se transformava na farinha que de novo à sua cabeça regressava ao Muro, para a minha avó amassar semanalmente e fazer o pão que comiam. 

O Muro era um sítio afastado de qualquer povoação no meio dos canchais da raia onde viviam apenas três ou quatro famílias. Tinham de, por isso, ser autosuficientes. Felizmente nesse tempo não havia ermos porque por todo o lado moravam camponeses, pastores ou mesmo assentadores do caminho de ferro pelas casetas junto à linha férrea desde a estação da Beirã até à ponte sobre o rio Sever.

Lembro ainda também, como não, do asseio e arrumação esmerada da casinha da minha avó na Cavalinha, quando ficaram só já os dois velhotes, depois de os filhos todos irem cada um à sua vida exceto o mais novo, o tio Raimundo que nunca casou e que, por ser guardador de cabras justo ao mês, só ia a casa aos sábados. 

Aquelas paredes, varanda e poiais imaculadamente brancos pela insistente cal, a cantareira de barros na cozinha meticulosamente alinhada, o cântaro sempre cheio de água fresca, os alumínios areados e brilhantes como espelhos, em resumo, a agradável sintonia que de tudo emanava e nos transmitia uma doce sensação de paz, de genuína tranquilidade e bem-estar. 

Nunca mais comi comidinha tão saborosa como aquela que a minha avó cozinhava numa sócha ao lado da casa em lume de chão, em panela de barro ou na sertã. A sócha fora feita pelo meu avô para poupar a brancura da lareira da cozinha da casa, porque a avó não gostava de a ver mascarrada pelo lume e pelo fumo.

Quando decidiram formar família, os meus progenitores debatiam-se com os mesmos problemas comuns a toda a gente pobre daquela época – famílias numerosas e escassez de meios de subsistência – exceto o da renda ao senhorio, porque a casa era deles. O meu sensato pai quando herdou dezoito contos de reis de uma tia-avó meio rica, não se deixou deslumbrar com a fartura de dinheiro nas mãos – dezoito contos de reis em 1948 eram uma pequena fortuna – e, em vez disso, gastou até ao último centavo na compra de um terreno e na construção deste seu ninho familiar. 

Quatro pequenas divisões. Uma cozinha com uma bela lareira onde passávamos os serões, uma sala e dois quartos. O dinheiro já não deu para as portas interiores mas a minha mãe resolveu o problema com umas cortinas de chita em cada uma, para o resguardo possível da sua privacidade, até conseguirem ir colocando as portas.

Era modesta mas era deles.

Aqui nasci já eu e as minhas duas irmãs mais novas, a Luz e a Joaquina. A Adelina, a mais velha que já não está entre nós, nasceu três anos e meio antes de esta casa estar construída. Hoje é o meu lar. Tive de ficar com ela por vontade e empenho absolutos do meu pai. O tempo levou-os já a todos, entretanto. Avós, pais, e muitos outros entes queridos que moldaram a pessoa que sou. Entretanto foi necessário ampliar e modernizar a casa, mas fiz questão de manter intactas as primitivas quatro pequenas divisões dentro do novo projeto. 

Só a bela lareira alentejana que existia na cozinha original teve de mudar de sítio e de feitio porque essa divisão foi promovida a sala de estar.

Sou tão profundamente grato à memória de todos eles, santo Deus. Tudo quanto me ensinaram me fez falta e ajudou a vencer obstáculos para conquistar metas. Por isso sinto esta incurável saudade. Não tive uma vida fácil quase desde que nasci, é verdade, mas tive uma vida decente, de muitas lutas e obstáculos sempre com muita dignidade vencidos e que me conduziram ao sucesso pessoal e profissional que me propus alcançar.

Uma vida intensa, mas feliz. 

José Coelho