Muito novo tomei consciência do quão dura é a vida por ter nascido
numa família humilde onde os princípios básicos elementares como a honestidade e a integridade
de carácter constituíram sempre a mais exigente e inquebrável regra. Foi a
minha mãe a nossa principal educadora, também ela
educada pela sua progenitora a saudosa avó Amélia, santa velhinha que me ajudou
a criar. Formada assim na
escola da vida pela mão da mais virtuosa mestra, foi por isso mesmo também a
pessoa certa que nos soube transmitir os mesmos valores e princípios que recebera do berço.
Lembro-me também com enorme carinho do avô José Lourenço, o mais
paciente e bondoso ser humano que me foi dado conhecer até hoje, trajando quase
sempre umas calças e casacos remendados pela minha avó que
tudo aproveitava até poder. Só nos casamentos das filhas mais novas e
ainda no de alguns netos, inclusive no meu, o vi aperaltado com um impecável
fato de cerimónia e gravata. Sei que nunca deveram nem um centavo a ninguém. Com as
suas modestas jornas e mais tarde com as suas ainda mais modestas pensões,
conseguiam amealhar, tostão a tostão, algumas poupanças, o suficiente para
terem uma vida minimamente digna e tranquila.
Íntegros até à medula e por isso por toda a gente respeitados e
estimados, era mais fácil o dinheiro não chegar para roupas novas do que
faltar para as suas obrigações como a renda da casa ou outras. Sei que nunca
passaram fome, mas comiam quase só do que a horta e o galinheiro produziam, até
porque, para além da jorna de justo ao mês, o meu avô recebia para além do ordenado ajustado em dinheiro, também
alguns géneros alimentares designados por “comedias” que consistiam em centeio em grão, feijão frade, queijos secos
e azeite. Comedías eram as “coisas
de comer” e por isso lhes chamavam assim.
Antes de conhecer e de casar com o meu pai, um dia por mês todos os meses, a minha mãe, filha mais
velha de oito irmãos, 4 raparigas e 4 rapazes, tinha de carregar com o talego do centeio em grão à cabeça e calcorrear a pé os seis quilómetros
que separavam o sítio do Muro onde moravam, até ao moinho do Tira-calças no rio
Sever, quase ao pé das Amendoeiras, onde o centeio em grão era moído e se
transformava na farinha que de novo à sua cabeça regressava ao
Muro, para a minha avó amassar semanalmente e fazer o pão que comiam.
O Muro era um sítio
afastado de qualquer povoação no meio dos canchais da raia onde viviam apenas
três ou quatro famílias. Tinham de, por isso, ser autosuficientes.
Felizmente nesse tempo não havia ermos porque por todo o lado moravam
camponeses, pastores ou mesmo assentadores do caminho de ferro pelas casetas
junto à linha férrea desde a estação da Beirã até à ponte sobre o rio Sever.
Lembro ainda também, como não, do asseio e arrumação esmerada da
casinha da minha avó na Cavalinha, quando ficaram só já os
dois velhotes, depois de os filhos todos irem cada um à sua vida exceto o mais
novo, o tio Raimundo que nunca casou e que, por ser guardador de cabras justo
ao mês, só ia a casa aos sábados.
Aquelas paredes, varanda e poiais imaculadamente
brancos pela insistente cal, a cantareira de barros na cozinha meticulosamente
alinhada, o cântaro sempre cheio de água fresca, os alumínios areados e brilhantes
como espelhos, em resumo, a agradável sintonia que de tudo emanava e nos
transmitia uma doce sensação de paz, de genuína tranquilidade e bem-estar.
Nunca mais comi comidinha tão saborosa como aquela que a minha
avó cozinhava numa sócha ao lado da casa em lume de chão, em panela de barro ou
na sertã. A sócha fora feita pelo meu avô para poupar a brancura da lareira
da cozinha da casa, porque a avó não gostava de a ver mascarrada pelo lume e pelo fumo.
Quando decidiram formar família, os meus progenitores debatiam-se com os
mesmos problemas comuns a toda a gente pobre daquela época – famílias numerosas
e escassez de meios de subsistência – exceto o da renda ao senhorio, porque a
casa era deles. O meu sensato pai quando herdou dezoito
contos de reis de uma tia-avó meio rica, não se deixou deslumbrar com a fartura
de dinheiro nas mãos – dezoito contos de reis em 1948 eram uma pequena fortuna –
e, em vez disso, gastou até ao último centavo na compra de um terreno e na construção deste seu ninho familiar.
Quatro
pequenas divisões. Uma cozinha com uma bela lareira onde passávamos os serões,
uma sala e dois quartos. O dinheiro já não deu para as portas interiores mas
a minha mãe resolveu o problema com umas cortinas de chita em cada uma, para o
resguardo possível da sua privacidade, até conseguirem ir colocando as portas.
Era modesta mas era deles.
Aqui nasci já eu e as minhas duas irmãs mais novas, a Luz e a
Joaquina. A Adelina, a mais velha que já não está entre nós, nasceu três anos e meio antes
de esta casa estar construída. Hoje é o meu lar. Tive de ficar com ela por vontade e
empenho absolutos do meu pai. O tempo levou-os já a todos, entretanto. Avós,
pais, e muitos outros entes queridos que moldaram a pessoa que sou. Entretanto foi necessário ampliar e modernizar a casa, mas fiz questão de manter intactas as
primitivas quatro pequenas divisões dentro do novo projeto.
Só
a bela lareira alentejana que existia na cozinha original teve de mudar de sítio e de
feitio porque essa divisão foi promovida a sala de estar.
Sou tão profundamente grato à memória de todos eles, santo Deus. Tudo
quanto me ensinaram me fez falta e ajudou a vencer obstáculos para conquistar metas. Por isso sinto esta incurável saudade. Não tive uma vida fácil quase desde que nasci, é verdade, mas tive uma
vida decente, de muitas lutas e obstáculos sempre com muita dignidade vencidos e que me conduziram ao sucesso pessoal e profissional que me propus alcançar.
Uma vida intensa, mas feliz.
José Coelho