quarta-feira, 15 de março de 2023

Lembranças (de outras quaresmas)

Foto Maria Coelho


Passei uma grande parte da vida a ouvir a minha mãe contar-me, na sua simplicidade, coisas bonitas que ela sabia e nas quais, da mesma forma simples e livre de quaisquer dúvidas, ela acreditava. Era particularmente crente em Deus. Quando a Ele se referia chamava-lhe simplesmente "O Senhor" e benzia-se com respeito ao falar nele. Aceitava com uma fé e resignação invejáveis tudo quanto lhe acontecia no seu dia a dia. Se fosse bom, agradecia. Se fosse menos bom, dizia simplesmente que alguma coisa teria feito para o merecer. O seu primeiro gesto ao acordar e ao sentar-se na cama, era benzer-se e rezar baixinho as orações que só ela sabia. E o mesmo acontecia todas as noites, antes de se deitar.

Nunca vi nada igual em mais ninguém. Não era beata de andar a correr para a igreja mas foi a pessoa mais crente que conheci e com quem aprendi muito do que sou na minha relação com o Divino. E adorava ouvir as suas histórias. Foi ela que me ensinou como as pessoas do campo, na sua devoção, cumpriam aquilo em que acreditavam. Por exemplo, pela manhã, o modo de se saudarem uns aos outros assim que se viam pela primeira vez nesse dia, era um "salve-o Deus" ao que a outra pessoa respondia "salve Deus a vocemecê".

Como tive a sorte de a ter comigo nos últimos anos da sua vida e já reformado como ela, pude dedicar-lhe mais tempo dos meus dias, compreendê-la melhor e mais profundamente, ver e perceber determinadas particularidades que antes me passavam despercebidas. E aprendi com isso a amá-la com mais força, a respeitá-la com maior intensidade na sua maneira de ser, a agradecer continuamente a Deus por me ter concedido esta mestra que me foi indicando, no dia a dia, com o seu exemplo, os nem sempre compreensíveis caminhos da nossa fé. Sem dúvida alguma que para a minha vida de crente e para o aprofundamento da minha por vezes titubeante convicção e sem disso se dar conta, ela ministrou-me aulas mais proveitosas do que muitos dos cursos e formações que para esse efeito frequentei no Seminário de Portalegre, no Seminário de Alcains, na Casa Diocesana de Mem Soares e ocasionalmente noutros lugares da nossa Diocese.

Ainda me lembro de, em pequenino, ter sido por ela ensinado a pedir a "bença" aos meus avós. E de o fazer, porque tinha que ser mesmo assim. Era regra e ensinava da forma mais simples o respeito que nos devem merecer os pais dos nossos pais. Por isso quando ia a casa da avó Amélia e do avô Zé Lourenço, mal chegava ao pé deles tinha de pedir: 

- Avô (ou avó) dê-me a sua bença. 

Imediatamente eles me estendiam as costas da mão direita onde eu depositava um beijinho, enquanto eles respondiam:  

- Deus te abençoe, filho... 

Os avós tratam quase sempre um neto (ou neta) por filho. Hoje sei isso melhor que nunca por experiência própria. 

São extraordinários os mistérios do nosso cérebro! Quantas vezes me esqueço de coisas importantes que tenho para fazer em determinada data ou momento mas deixo-as negligentemente passar por puro esquecimento. Porém e com estranha lucidez, consigo perfeitamente lembrar-me ou mesmo reconstituir mentalmente muitas cenas destas que aconteceram há dezenas de anos.

E porque é Tempo da Quaresma, acode-me à memória ouvir a minha mãe trautear aquele canto das "Encelências" que ela sabia de cor, desde moça: 

"Ó Avé Maria, cheia d'ações de graças, Senhor é convosco, bendita sois vós... Entre as mulheres, bendito é o fruto, de o vosso ventre, que nasceu Jesus... Mas Santa Maria, sua Mãe de Deus, rogai Deus por nós, Mãe dos pecadores... Agora e na hora de a nossa morte, ó amén Jesus, Maria, José..." 

E continuava por mais sete décimas que tinham que ser todas repetidas doze vezes, sem interrupção. Seria mesmo um grande pecado se as "encelências" fossem por alguém interrompidas antes de estarem todas cantadas e repetidas as doze vezes.

Segundo dizia, era a única coisa que se podia cantar na quaresma. Os ranchos de moças dos quais ela fazia parte, repartiam entre si cada uma das décimas da extensa oração em forma de canto. Uma décima cada mondadeira, de ponta a ponta do eito, no meio daquelas searas. E contava também, numa voz vibrante pela feliz recordação de momentos que pareciam ser-lhe tão caros, que, enquanto durava a reza, só se ouvia a voz da mondadeira e o tec-tec dos sachos a picarem na terra para arrancarem as ervas. 

Também o manageiro se calava até ao fim da reza com todo o respeito para não a interromper.

E eu ficava ali ao pé dela, encantado, a ouvir estas e muitas outras das suas bonitas histórias de vida. Ainda hoje, se fechar os olhos por um momento, quase consigo ir buscar o timbre da sua querida voz e "ver" mentalmente os cenários tão bem descritos por ela. 

Havia uma outra história que ela repetia. A do dia mais santo do ano. O Dia de Corpo de Deus. Aquele em que, ao meio dia em ponto, as folhas das oliveiras do se cruzam e formam a cruz. Cheguei mesmo a ir espreitar ao quintal se aquilo era verdade, mas nunca consegui ver tal mistério. Então ela resolvia a minha dúvida sem perder a sua enorme convicção, dizendo-me, na simplicidade da sua fé, que o "milagre" das folhas das oliveiras se cruzarem não acontecia ao meio dia dos relógios, mas ao meio dia do sol. 

Lá ia eu (ou ela) sabermos quando era a "hora do sol"...

Acerca desse mesmo dia, Corpo de Deus, ainda outra crença deliciosa. A vida no campo, como toda a gente sabe, não se compadece com os dias santos ou de guarda. Os gados têm que ser tratados, o trigo mondado, as hortas regadas, os mil e um afazeres não podem esperar, têm de ser feitos. Até que, num certo dia de Corpo de Deus, há muitos anos, ouviu-se um estrondo tão grande, vindo ninguém sabe de onde, que toda a gente ficou com medo porque se entendeu ser aquilo um sinal de Deus, muito zangado pela falta de respeito para com o seu santo dia. 

Desde então, nunca mais no Monte do Matinho se trabalhou nesse feriado.

Mas há tantas, tantíssimas outras coisas que ouvi e aprendi com a minha saudosa mestra. Dariam com certeza um livro. Como podiam aquelas pessoas ser tão sábias sem saberem ler nem escrever? Como podiam também ser tão sérias que nenhuma escritura de notário tinha mais valor do que a sua honrada palavra ou compromisso? Como podiam ser tão honestas que eram incapazes das trafulhices e indignidades que hoje são o dia a dia desta sociedade podre cujo exemplo vem quase sempre de cima, de quem devia ser insuspeitável? 

Será que a cultura e o conhecimento são um veneno que vai matando aos poucos a integridade de caráter e os sentimentos fraternos nas pessoas? Não sei. Mas tantas vezes sinto que a vida era bem mais fácil de se viver e de se entender quando tudo era assim de simples, as pessoas menos cultas, menos endinheiradas, mas também menos desumanas. A autenticidade da senhora minha Mãe, a sua maneira simples de viver a vida, as suas inocentes mas firmes convicções religiosas, o seu papel exemplar de mãe, de esposa dedicada, de avó extremosa, de vizinha e amiga com quem sempre podiam contar os que com ela privavam, são, sem dúvida, o meu mais valioso espólio. 

A única e preciosa herança que tudo faço por imitar e nunca esquecer...

José Coelho