domingo, 19 de março de 2023

Nem oito, nem oitenta

  
Imagem da net
 
O padeiro vinha apreensivo. Com um ar preocupado. Tinha-se esquecido da bata branca na padaria e é obrigatório trazê-la vestida.
 
- A ASAE está lá em baixo! Disse. 

E fora multado há dias quando fiscalizado por "eles" ao parar à porta da junta de freguesia para levantar a licença do cão. 

Nem sequer lá fora vender pão. Interpelaram-no quando ia a sentar-se na viatura onde faz a distribuição todas as manhãs, porque já não há onde o deixar como dantes nas mercearias onde era depositado e ali as pessoas o iam depois comprar, por isso agora tem de ser assim de porta em porta. 

E multaram-no também porque não trazia a balança na carrinha. Ninguém nunca lhe pediu para pesar um pão, mas é obrigatório trazê-la sempre. E esquecera-se. E foi multado. E naquele dia a venda do pão não chegou para pagar a multa. E hoje não trazia a bata. Puta de sorte! Deixa ver se eles se vão embora...
 
Não tenho nada contra a fiscalização de irregularidades que visem proteger o cidadão comum de abusos ou desleixos que possam atentar contra a saúde pública e não só, até porque foi essa também uma das funções que me coube exercer durante anos no desempenho da profissão que abracei. 
 
Seria pacífico entender que as leis visam sempre o bem comum e que são criadas para esse fim. Pena é que no nosso país tenhamos uma verdadeira diarreia legislativa, como afirmava o meu professor de direito penal e processual nos cursos de formação a cabo e depois a sargento que frequentei, tal é o volume de leis, decretos e decretos-lei, que os nossos legisladores vão produzindo sucessivamente. 

A coisa é de tal ordem exagerada que muitas vezes quando uma lei é publicada no Diário da República já está a ser preparada outra lei para alterar aquela. Por isso qualquer agente policial nunca pode deixar de ler e de estar atento para sentir-se informado, seguro e apto a agir em conformidade, quando necessário.
 
Eu tinha o cuidado de ler todos os dias os diários da república e as muitas diretivas internas emanadas da cadeia hierárquica de comando para me atualizar permanentemente e poder ministrar instrução adequada uma vez por semana a todo o efetivo do Posto que comandava. 

Precisamente por isso. 

É que um comportamento não alinhado com a lei pode conformar o crime de abuso de autoridade e pode consequentemente complicar muito a vida de qualquer agente da mesma. Mas não quero perder-me em considerações genéricas porque o meu objetivo aqui é criticar aquilo que entendo e me parece absurdo, pese embora o respeito que me merece a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, vulgo ASAE que no meu tempo se chamava Inspeção-Geral das Atividades Económicas, vulgo IGAE, com quem trabalhei algumas vezes.
 
Passar do oito para o oitenta sempre foi uma característica muito nossa, infelizmente. Mas há coisas que no meu entender deveriam ser muito bem ponderadas antes de colocadas em execução. Eu sei por experiência própria que os agentes que a compõem não atuam por parâmetros pessoais e ao gosto de cada um. Cumprem a lei e cumprem também ordens superiores. 

Não creio por isso que o erro esteja na sua atuação, mas sim na inflexibilidade da aplicação da lei. E o resultado visível que não deixa margem para dúvidas é o facto de terem encerrado milhares de pequenos estabelecimentos que muito mais do que enriquecerem os seus proprietários eram praticamente um serviço de utilidade pública por estas aldeias remotas longe de quase tudo.
 
Na minha Beirã no tempo da outra senhora, chegou a haver dois talhos, um restaurante, duas casas de dormidas, dois cafés, um clube recreativo para os mais abastados, uma sociedade recreativa para os mais pobres, cinco tabernas-mercearias, uma padaria, um barbeiro, uma cabeleireira, dois alfaiates, uma carpintaria. 

A Revolução dos Cravos democratizou a sociedade Beiranense como a do resto do país, mas em pouco tempo começou um êxodo que nunca mais parou. Eu próprio tive que ir para as Minas da Panasqueira se quis ter um ordenado mensal pois por aqui só havia já a estação, a alfândega e os despachantes oficiais com os seus funcionários, porque, entretanto, as fábricas dos vizinhos Santo António das Areias e da Herdade do Pereiro foram-se extinguindo lentamente na euforia da liberdade que tudo permitia. 

Assim fechou também o Clube e a Sociedade Recreativa e foi fechando tudo o resto até ficarem apenas uma taberna, duas pequenas mercearias e um modesto mini-mercado que bastante falta faziam a esta população maioritariamente envelhecida e sem meios para se deslocar aos centros comerciais citadinos, entretanto inventados.
 
Foi a tão festejada adesão ao mercado único europeu e consequente encerramento da estação fronteiriça que nos deu o derradeiro golpe de misericórdia. Centenas de pessoas tiveram que mudar de rumo nas suas vidas e a Beirã começou a murchar como murcha uma papoila ao sol ardente do verão. 

E as pessoas, como as pétalas das papoilas, foram-se também sumindo. Mas as tais duas ou três mercearias foram ainda assim sobrevivendo e quase tenho a certeza que os seus lucros mal dariam para as suas despesas correntes, quanto mais para enriquecer quem as mantinha a funcionar. 

Ali se comprava o pão diariamente, fruta e mercearias, gás e artigos de limpeza. Dava principalmente muito jeito a pessoas sozinhas e sem transporte próprio para as comprinhas do dia a dia, até que o governo entendeu fazer cumprir as diretivas europeias por um lado, combater a fuga aos impostos por outro, numa ânsia incontida de arranjar dinheiro a todo o custo. 

E com todas essas exigências, colocando no terreno esta inusitada e acérrima fiscalização, encerrou por completo e um a um, estes pequenos estabelecimentos que se viram na obrigação de vultuosos investimentos em equipamentos caros cujo custo nunca iriam recuperar, dado o fraco volume de negócio que detinham há décadas.
 
Por não terem onde comprar um pacote de açúcar, de arroz, ou de sal, muitas pessoas em excelentes condições de cuidarem ainda da alimentação por si confecionada em suas casas, tiveram de optar por se alimentarem através do fornecimento de refeições diárias pelos centros de dia. 

Será isto cuidar das pessoas? Serão estas políticas as corretas? Será bem pensado equiparar estas aldeiazinhas do interior aos grandes centros urbanos na aplicação de tais leis? 

Será adequado que uma pequena mercearia que presta um quase serviço público seja equiparada a um Continente, Modelo ou Pingo Doce? Onde fica o bom senso, a tão proclamada proteção das pessoas deste tão maltratado interior do país? 
 
Só espero que o preocupado padeiro se tenha safo, coitado. Porque senão, foi mais um dia que não ganhou para o pão dele, para nos vir trazer o nosso... sem bata e sem balança. 

Sinceramente há coisas que não lembram... nem ao diabo!


José Coelho