António Maria Coelho
Pai.
A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro
quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos
olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Seguindo
regras, tudo me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai.
Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que
finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é
agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o
dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por
seres a sua pele. Pai eu queria ver-te aqui no nosso quintal, a regar as
árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te,
rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz,
espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre
mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua
voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras
sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E,
de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que
te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.
José
Luís Peixoto, in “Morreste-me” (excerto)