sábado, 4 de março de 2023

É tão fácil ser feliz...

Imagem Google

Porque nasci no seio da humildade, habituei-me a não dar grande importância aos bens materiais e a ser feliz com o que tenho. A minha mãe coitada nunca tinha a certeza do que iria fazer para a ceia no dia seguinte, sendo a sua única certeza o pouco que teria por onde escolher. Sopa com produtos da horta mais um bocadinho de pão com conduto que muitas vezes se resumia a uma omelete ou a um punhado de azeitonas, pois os enchidos tinham de se guardar para as merendas do dia seguinte. 

Muita gente deve achar impossível que se possa ser feliz assim sem quase nada. Mas nós éramos. Muito felizes mesmo. Na nossa casa a única coisa que havia em abundância era alegria e boa disposição, de manhã à noite. A minha mãe cantarolava facilmente quer a preparar as nabiças do jantar, quer a lavar a roupa no tanque ou mesmo quando sentada ao sol no quintal a remendar algumas calças surradas pelo uso. 

Um rádio a pilhas Grundig, fazia as delícias dos nossos serões, com o programa diário de discos pedidos da Rádio Badajoz, cujas músicas no acordeon da Maria Albertina ou outra remexida qualquer davam imediatamente azo a divertidas sessões de baile na nossa cozinha, felizes e despreocupados como nunca mais soubemos ser, apesar de a vida de todos nós ter evoluído para melhor.

Ou, pelo menos, foi isso que nós pensámos. Só não sei muito bem, não tenho hoje assim tanta certeza, se "isto agora" é realmente melhor do que o que era "dantes"...

Já velhinha e completamente invisual, muitas vezes ouvi a tia Florinda trautear as modas dela sentadinha no sofá da nossa sala. E quando ouvia alguma música sua conhecida na televisão, automaticamente os seus pézitos começavam a bater no chão ao compasso dos acordes. 

E eu ficava deliciado a observá-la. 

Coisas tão simples que quase passavam despercebidas na altura, mas que a saudade vai buscar hoje para me dizer que sim, que apesar de ter sido toda a vida pobrezinha e que apesar de "o Senhor lhe ter tirado a luz dos seus olhos" como ela dizia, ainda assim, a minha mãe foi uma criatura feliz. Tranquila, conformada, feliz com tudo o que Deus lhe dava.

Acho que herdei esse estado de espírito dela e estou-lhe muito grato por isso. Sou completamente desapegado do dinheiro e de outros bens materiais que para muita gente que conheço são quase imprescindíveis. Visto qualquer trapinho desde que goste, sem me preocupar minimamente se é de marca ou da moda e tanto sou capaz de comprar numa tenda do mercado como numa loja chique, desde que aquilo que quero se encontre numa ou noutra. 

Não troco um jantar em casa com a família, por outro no melhor restaurante com quaisquer outras pessoas e aprecio muito mais umas migas estremenhas com sardinhas fritas do que uma mariscada. Em resumo, nasci no meio da maior simplicidade, sempre fui feliz no meio dela e é assim que gosto de viver. Como fui criado. E se depender de mim, assim quero um dia morrer, se Deus o quiser também.

A vida é já tão complicada e imprevisível, para que havemos nós de a complicar ainda mais, tornando muitas vezes difícil o que é simples?

Sentado na varanda a ler as Histórias da Justiça que me ofereceu pessoalmente o seu Autor e meu digníssimo Amigo que muito estimo e considero, vou simultaneamente prestando atenção ao casal de pintassilgos a namorarem num ramo do limoeiro. Provavelmente já andam a escolher o discreto galho onde irão fazer o ninho para receberem a nova prole, algures porque logo, logo, está aí a primavera. 

Todos os anos, desde que aqui moro, eles fazem o ninho na nossa latada, ou nas roseiras, ou mesmo nas forcas mais altas das oliveiras. Olha! Sobre a ensolarada parede do quintal, uma pequena lagartixa corre que se desunha. E a rola turca canta e encanta pousada numa das chaminés da casa. Ou será um rolo, a chamar pela sua companheira?   

Ah valente! Assim mesmo é que é. Canta, amigo, canta, que a vida é demasiado breve.

Já sem a frondosa figueira para se esconderem entre os seus ramos, os estouvados melros caçam besouros e larvas na terra fresca das acelgas que andei a sachar e a mondar ontem e hoje. E um numeroso bando de barulhentos pardais apresenta-se todas as manhãs pelos beirados a espreitarem onde vai a dona da casa sacudir a toalha de mesa do nosso pequeno almoço, cheia de deliciosas migalhas.

Decididamente, a vida é muito simples. E a paz existe. Às vezes cerca-nos mesmo por todos os lados. Basta olharmos ou estarmos atentos àquilo que nos rodeia. 

E que não é pouco...


José Coelho