quinta-feira, 5 de junho de 2025

Visitar memórias é atenuar saudades


Muito se diz e se escreve sobre o bem ou o mal que podem fazer as saudades do passado a quem não consegue ou não quer esquecê-lo. Incluo-me no número das pessoas que gostam de as sentir. De tudo. Do que tive e do que já perdi. Não é um saudosismo de faca e alguidar, não é tão pouco e de modo algum, qualquer tendência psico depressiva.
É apenas e só isso. Saudades.
Sei que não sou único e nem sequer raro, porque conheço muita gente que comunga deste meu sentimento. Qual é o problema de termos saudades do nosso tempo de criança ou adolescência, da nossa vida com os nossos pais e avós, do dia em que casámos ou daquele em que nasceram os nossos filhos e netos?
Dos nossos hábitos e costumes, das nossas festas ou das nossas dores, daquele dia ou noite em fomos felizes ou infelizes porque aconteceu isto ou aquilo. Que mal faz, que prejuízo pode trazer-nos fechar os olhos e reviver mentalmente esses momentos, já que a nossa memória, enquanto sã, tem capacidade de as guardar intactas?
Recuso-me a aceitar que ter saudades dos meus queridos pais e avós possa causar-me algum dano. Que visitar os lugares que frequentei na sua companhia, até mesmo na Tapada da Lagem Alta onde um escorpião me ferrou num dedo gordo de um pé aos quatro anos de idade, enquanto a minha mãe sachava milho nas redondezas.
Quantas vezes já lá passei e olhei para a grande pedra muda que lá continua e de onde eu pulava, apesar das advertências da Mãe Florinda: - Não andes a pular das pedras que há p’raí alacraus… Até já a fotografei e tudo. Naquela hoje deserta paisagem, cerro os olhos e consigo “ver” a minha mãe ainda ali no meio do milho com a tia Maria José Meia e a tia Ana Galinhas.
A nostalgia não é doença.
É um sentimento inócuo e benfazejo que nos dá colo nessas viagens ao passado. Ainda na caminhada de ontem percorremos um sítio onde os meus pais faziam sementeiras de sequeiro de feijão-frade – por aqui mais conhecido por feijões pretos – e senti pena por ver que o telhado da casa já desabou.
No lado oposto do caminho, também a Casa da Meirinha começa a dar sinais de ruína. Mais dois ou três invernos e o telhado vai abaixo. Ali moravam famílias das quais já poucos se lembram. Mas lembro-me eu. Os últimos, foram os pais de um dos meus melhores amigos de infância que faleceu precocemente com vinte anos quando eu estava na guerra em Angola.
Nunca imaginei quando nos despedimos em março de 1972 que não voltaríamos a ver-nos.
Que mal pode fazer-me ter saudades desse grande amigo, cinquenta anos depois? Chorei baba e ranho no meio daquela mata do Maiombe, como se chora a partida de um querido irmão, quando a minha mãe me informou por aerograma a inesperada notícia.
Porque era isso que nós éramos. Irmãos na amizade profunda que nos unia desde tenra idade, a seguir na escola primária e depois na nossa mocidade. Nesse tempo não se sabia tanto como agora por isso só disseram que ele “morreu do coração”. E estava tudo dito.
Ter saudades, acho eu, é sinal evidente de ter havido uma vida feliz. E ser feliz, em meu modesto entender, nunca foi ter tudo, pois ao contrário disso, eu não tive foi quase nada, como todos os outros filhos de camponeses que mal ganhavam para comer.
Ainda assim, nunca passei fome. O que havia, não sendo muito, era no entanto suficiente.
Dificuldades ainda hoje existem e para muita gente. Tanta ou mais do que antigamente, por uma razão que faz toda a diferença. No tempo da pobreza – é ainda assim que hoje o referimos – ganhava-se pouco, trabalhava-se “à jorna”, ou seja ao dia, recebia-se “à semana” ou seja ao sábado, o horário de trabalho era “de sol a sol” e descansava-se apenas aos domingos.
A grande diferença porém, é que havia mais trabalho do que trabalhadores porque quase toda a gente começava trabalhar a partir dos dez anos de idade. Não existia essa fineza da “proteção à infância”, muito pelo contrário. Começar a trabalhar ainda gaiato dava logo outro estatuto e importância a qualquer um. Ou uma. Porque se os rapazes como eu iam guardar ovelhas, as raparigas iam “servir” como criadas, dos senhores fulanos de tal.
E deixava-se logo de ser considerado gaiato para se ser promovido a aprendiz no seu ofício. As virtudes mais louvadas desse tempo era ser-se honesto e trabalhador.
De lá para cá, as coisas mudaram de tal modo que na imparável roda do tempo há hoje mais gente desempregada e a viver de subsídios de toda a espécie, do que do seu vencimento em função de um emprego fixo e seguro. A vida é uma roda. E as rodas rolam. E a rolar se voltam a unir o ponto de chegada ao ponto da partida.
Por isso se diz e eu acredito que a vida nos devolverá sempre tudo o que fizermos. De bom ou de mau.
Vai daí, dou por mim muitas vezes a pensar que se eu tenho a felicidade de guardar no coração tantas e tão doces memórias, quero sinceramente que os meus filhos e netas consigam ser também felizes como eu fui, para na sua velhice guardarem memórias tão gratas que necessitem de as ir visitar de vez em quando.

José Coelho
Texto e foto