quinta-feira, 5 de junho de 2025

Faz o bem, não olhes a quem

Belize - Cabinda - Angola - Ano de 1973 

Duas meninas da mesma idade das minhas irmãs, naquele tempo. Uma já moçoila como a minha Luz, e a outra mais novinha como a Joaquina, à espera de boleia nas viaturas que semanalmente vinham de Cabinda trazer os mantimentos e tudo o mais que era destinado ao nosso quartel no Belize e tinham de seguir depois para norte a levarem o mesmo aos camaradas aquartelados em Caio-Guembo, Sanga Planície e Miconje na fronteira com o Congo.

Chegaram, vindas da povoação do Belize nas proximidades do quartel, as duas pequenas. Sozinhas. Eram irmãs, tímidas e com ar desconfiado. Sentaram-se nas escadas do edifício da Secretaria da CCS, na parada do quartel onde iriam estacionar todas as viaturas do MVL e mesmo em frente ao posto de rádio no qual eu me encontrava de serviço nessa manhã. 

Por causa da guerra, o trânsito rodoviário era escasso, quase reduzido às colunas militares com as respetivas escoltas fortemente armadas para reabastecimento das unidades sedeadas pelo Alto Maiombe. E os sobas fiotes das sanzalas das redondezas, à falta de outros meios de transporte que se pudessem utilizar, pediam aos comandantes militares que autorizassem boleia a quem necessitava deslocar-se para outras povoações mais distantes, apesar do risco iminente de poderem ser atacadas pelos guerrilheiros do MPLA ou da UPA durante o percurso.

Provavelmente receando que pudesse haver outros "passageiros" interessados na viagem, as pequenas chegaram demasiado cedo para "apanharem vez". Mas a espera pela coluna de reabastecimento ia ser seguramente longa, dada a enorme distância e complexidade do percurso de ida e volta. Assim as horas foram passando e chegou o almoço que o cozinheiro de dia mandava sempre por um dos faxinas ao refeitório, a quem estava de serviço e sem poder abandonar o seu posto, como era o meu caso.

Lembro-me como se tivesse sido ontem, passados já mais de cinquenta anos. A ementa, como sempre, não era famosa. Pescada descongelada cozida, com três ou quatro batatas e um ovo cozido, tudo regado com um fio de azeite. E duas metades de pêssego de conserva. Naquele fim de mundo poderia ser considerada um luxo de refeição porque estávamos a 230 km do mar, rodeados por milhões de hectares de impenetrável floresta.

Apesar de modesta na confecção e dos escassos ingredientes, ninguém se queixava, cientes todos da distância que nos separava da civilização. As arcas frigoríficas do depósito de géneros do quartel funcionavam com motores a petróleo, bem como os geradores da eletricidade que nos iluminava à noite.

Quantas vezes, enjoados já da reiterada ementa de peixe descongelado cozido com batatas e ovo porque outros legumes não havia, ou daqueles estilhaços de frango com arroz que mais parecia cola, nós matávamos a fome com os dulcíssimos abacaxis ou com as monumentais bananas nativas do Maiombe, como nunca mais vi nem comi, na minha vida. 

Entretanto, naquele dia quando ia começar a almoçar, dei de caras com aqueles quatro olhitos das duas pequenas a olharem arregalados para o meu prato. Não consegui meter uma batata sequer para a boca. Estavam ali havia mais de quatro horas e era imprevisível quantas mais iriam ter de esperar pela coluna que as iria levar.

Não tive quaisquer dúvidas que estariam cheias de fome e de sede debaixo daquele pegajoso calor tropical. E não pensei duas vezes. Dividi as batatas, o ovo e a pescada já sem espinhas em duas porções mais ou menos iguais no prato de inox, fiz o mesmo com as duas metades de pêssego na tijela também inox, enchi o copo com água e chamei-as, sentei-as na mesa do posto de rádio e indiquei-lhes o almoço.

- É para vocês, disse-lhes mais gesticulando do que falando, porque o meu idioma português não era nada parecido ao fiote delas.

Olharam para mim desconfiadas, depois olharam uma para a outra várias vezes, inquietas ou amedrontadas, mas a fome devia ser maior do que o medo e acabaram por fazer o que eu lhes dizia. 

Comeram tudo e beberam água.

E eu juro veementemente que fiquei muito mais saciado e feliz com a gratidão que percebi naqueles dois rostinhos negros, do que se tivesse almoçado um bom cozido à portuguesa. Fiz exatamente o que sempre também vi fazer à minha mãe.

Repartir.

Apesar de tão humilde a minha família sabia repartir quanto fosse preciso e estivesse ao seu alcance. O que ali aconteceu naquele dia não me fez sentir nem herói nem santo, porque apenas fiz o que era justo e necessário perante aquela situação.

Quando chegou a hora da mudança de turno e fui substituído por outro camarada radiotelefonista, as pequenas ainda lá continuavam. Mas antes de ir à minha vida e elas à delas, pedi ao camarada fotógrafo da CCS que nos fotografasse aos três porque queria um dia poder mostrar aquelas duas meninas às minhas irmãs.

E mostrei.

E arranjei um desgosto à caçula Joaquina Coelho quando lhe disse que a pequenita africana era como ela – no tamanho – e ela desatou num pranto porque percebeu que era como ela por ser também morena e com o cabelo encaracolado, mas não queria ser de um moreno tão carregado!

Perguntem-lhe, quando a virem, se isto não foi mesmo verdade…


José Coelho