Duas meninas da mesma idade das minhas irmãs. Uma já moçoila como a minha Luz, e a outra ainda de tenra idade como a Joaquina, a aguardarem boleia para o Buco-Zau nas viaturas do MVL que depois de descarregarem tudo o que era destinado ao nosso quartel no Belize tinham seguido para norte a levar mantimentos aos outros camaradas aquartelados em Caio Guembo, Sanga Planície e Miconje.
Pouco
depois chegaram, vindas da sanzala, as duas pequenas. E sentaram-se nas escadas
do edifício da Secretaria da CCS mesmo em frente à porta do posto de rádio onde
eu me encontrava de serviço às Transmissões nessa manhã.
Vieram
demasiado cedo porque a espera pela coluna de reabastecimento seria seguramente
longa dada a distância e complexidade do percurso de ida e volta.
As
horas foram passando e chegou a hora do almoço que o cozinheiro de dia mandava sempre
por um dos faxinas ao refeitório levar a quem estava de serviço sem poder
abandonar o seu posto como era o meu caso.
Lembro-me
como se tivesse sido ontem, mesmo passados já mais de cinquenta anos. A ementa, como
sempre, não era famosa. Uma posta de pescada cozida, com três ou quatro batatas
e um ovo.
Naquele
fim de mundo poderia até ser considerada um luxo de refeição porque era a
possível. E apesar de modesta ninguém se queixava, cientes todos da distância
que nos separava da civilização.
Quantas
vezes, enjoados do reiterado peixe cozido e daqueles estilhaços de frango com
arroz que mais parecia cola, nós matávamos a fome com os dulcíssimos abacaxis ou
bananas monumentais do Maiombe, como nunca mais vi, nem comi, na minha vida.
Entretanto,
quando ia começar a almoçar, dei de caras com aqueles quatro olhitos das duas
pequenas a olharem para o meu prato. Não consegui meter uma batata sequer para
a boca. Estavam ali havia mais de quatro horas e era imprevisível quantas mais
iriam ter de esperar pela coluna que as iria levar para sul.
Não
tive quaisquer dúvidas que estariam cheias de fome e de sede debaixo daquele
pegajoso calor tropical. Nem pensei duas vezes. Chamei-as, sentei-as na mesa do
posto de rádio e ofereci-lhes o almoço.
Olharam-me,
olharam uma para a outra várias vezes inquietas ou amedrontadas mas acabaram
por fazer o que eu lhes dizia e comeram tudo.
Fiquei
muito mais saciado com a gratidão que vi naqueles dois rostinhos negros, do que
se tivesse almoçado uma boa carne de porco à alentejana.
Foi
o que vi sempre fazer à minha mãe e aprendi com ela.
Repartir.
Repartir. Repartir.
Apesar
de ter sido sempre tão humilde a minha família, sabiam repartir quanto fosse
preciso e estivesse ao seu alcance. O que ali aconteceu naquele dia não me fez sentir
nem herói, nem santo.
Apenas foi feito o que era necessário fazer.
Quando
chegou a hora da mudança de turno e fui substituído por outro camarada
radiotelefonista, as pequenas ainda lá continuavam. Mas antes de ir à minha
vida e elas à delas, pedi ao camarada fotógrafo da CCS que nos fotografasse
porque queria um dia poder mostrar aquelas duas meninas também às minhas irmãs.
E
mostrei.
E
arranjei um desgosto à caçula Joaquina Coelho quando lhe disse que a pequenita
africana era parecida com ela – no tamanho – e ela desatou num pranto
porque percebeu que era parecida por ser também morena e com o cabelo
encaracolado, mas não queria ser assim tão escura!
Perguntem-lhe
se isto não foi verdade…
José Coelho