quinta-feira, 22 de junho de 2023

Fazer o bem, não olhar a quem

Foto no Belize - Cabinda - Angola - Ano de 1973 

Duas meninas da mesma idade das minhas irmãs. Uma já moçoila como a minha Luz, e a outra ainda de tenra idade como a Joaquina, a aguardarem boleia para o Buco-Zau nas viaturas do MVL que depois de descarregarem tudo o que era destinado ao nosso quartel no Belize tinham seguido para norte a levar mantimentos aos outros camaradas aquartelados em Caio Guembo, Sanga Planície e Miconje.

Pouco depois chegaram, vindas da sanzala, as duas pequenas. E sentaram-se nas escadas do edifício da Secretaria da CCS mesmo em frente à porta do posto de rádio onde eu me encontrava de serviço às Transmissões nessa manhã.

Vieram demasiado cedo porque a espera pela coluna de reabastecimento seria seguramente longa dada a distância e complexidade do percurso de ida e volta.

As horas foram passando e chegou a hora do almoço que o cozinheiro de dia mandava sempre por um dos faxinas ao refeitório levar a quem estava de serviço sem poder abandonar o seu posto como era o meu caso.

Lembro-me como se tivesse sido ontem, mesmo passados já mais de cinquenta anos. A ementa, como sempre, não era famosa. Uma posta de pescada cozida, com três ou quatro batatas e um ovo.

Naquele fim de mundo poderia até ser considerada um luxo de refeição porque era a possível. E apesar de modesta ninguém se queixava, cientes todos da distância que nos separava da civilização.

Quantas vezes, enjoados do reiterado peixe cozido e daqueles estilhaços de frango com arroz que mais parecia cola, nós matávamos a fome com os dulcíssimos abacaxis ou bananas monumentais do Maiombe, como nunca mais vi, nem comi, na minha vida.

Entretanto, quando ia começar a almoçar, dei de caras com aqueles quatro olhitos das duas pequenas a olharem para o meu prato. Não consegui meter uma batata sequer para a boca. Estavam ali havia mais de quatro horas e era imprevisível quantas mais iriam ter de esperar pela coluna que as iria levar para sul.

Não tive quaisquer dúvidas que estariam cheias de fome e de sede debaixo daquele pegajoso calor tropical. Nem pensei duas vezes. Chamei-as, sentei-as na mesa do posto de rádio e ofereci-lhes o almoço.

Olharam-me, olharam uma para a outra várias vezes inquietas ou amedrontadas mas acabaram por fazer o que eu lhes dizia e comeram tudo.

Fiquei muito mais saciado com a gratidão que vi naqueles dois rostinhos negros, do que se tivesse almoçado uma boa carne de porco à alentejana.

Foi o que vi sempre fazer à minha mãe e aprendi com ela.

Repartir. Repartir. Repartir.

Apesar de ter sido sempre tão humilde a minha família, sabiam repartir quanto fosse preciso e estivesse ao seu alcance. O que ali aconteceu naquele dia não me fez sentir nem herói, nem santo.

Apenas foi feito o que era necessário fazer.

Quando chegou a hora da mudança de turno e fui substituído por outro camarada radiotelefonista, as pequenas ainda lá continuavam. Mas antes de ir à minha vida e elas à delas, pedi ao camarada fotógrafo da CCS que nos fotografasse porque queria um dia poder mostrar aquelas duas meninas também às minhas irmãs.

E mostrei.

E arranjei um desgosto à caçula Joaquina Coelho quando lhe disse que a pequenita africana era parecida com ela – no tamanho – e ela desatou num pranto porque percebeu que era parecida por ser também morena e com o cabelo encaracolado, mas não queria ser assim tão escura!

Perguntem-lhe se isto não foi verdade…


José Coelho