Ao passar um dia por Portalegre a tratar de assuntos do seu interesse nas proximidades do quartel do comando da companhia “calhou” ao meu vizinho de toda a vida ser visto, abordado e logo convidado para ir lá dentro petiscar e beber uns copos.
Contou-me ele mesmo isto tudo pessoalmente e tim-tim por tim-tim, conforme o estou a descrever hoje.
Mas enganaram-se mais uma vez.
Primeiro porque não havia rigorosamente nada a revelar que me pudesse por qualquer forma prejudicar. Depois porque o vizinho cuja casa era paredes meias com a nossa conhecia-me desde que nasci e podia, com quase tanta propriedade como o meu pai, falar sobre mim com conhecimento de causa. E finalmente porque de ingénuo não tinha nada e sentiu-se indevida e manhosamente “apalpado” pelo tenente e pelos guardas.
Limitou-se, por isso, a dizer-lhes o que sabia e era exatamente o contrário do que eles queriam ouvir:
- O José Coelho?
- É uma família de gente boa. Vi-o nascer, conheço-o bem e sei o que ali está. Vai se um bom guarda, podem crer!
Rimo-nos os dois divertidos quando ele me contou isto em sua casa no fim de semana depois de ter acontecido. E continuou:
- Ó Zé! Põe-te a pau que eles querem fazer-te a folha…
Estava mais que provado que eu andava a ser alvo de uma perseguição cerrada, odiosa, orquestrada, mal-intencionada e sobretudo injusta. Mas sem qualquer receio continuava a lutar com as armas que tinha. A consciência tranquila e um feroz empenho que me punham a estudar até altas horas da madrugada sozinho na sala de aulas para tentar conseguir notas altas nos testes semanais.
Essa minha teimosia e a completa inocência nos imaginários “crimes” que me eram imputados, tinham revertido a situação a meu favor. As “bocas” insidiosas dos senhores tenente e sargento continuavam a espicaçar-me diariamente pois esse calvário durou do primeiro ao último dia do alistamento, mas batiam de frente na minha indiferença.
Porque quem não deve, não teme. E cobarde nunca fui.
Nem sequer os meus camaradas ligavam já àquilo. Tive a sorte e o privilégio de nunca ter sentido qualquer animosidade da sua parte, muito pelo contrário. Senti-os sempre solidários comigo em todas as suas atitudes, tendo havido até um deles - de Montargil - que num secreto desabafo, me sussurrou certa vez:
- Eu não aguentava nem metade o que tu tens aqui aguentado, Coelho. Já me tinha ido embora, mas garanto-te que primeiro partia os cornos a um deles.
No final do alistamento não fui, como me era devido, o primeiro classificado do curso. De forma maldosa passei de primeiro para segundo classificado de um dia para o outro, apesar de ter a melhor média classificativa do pelotão em todo o curso com 17,12 valores até ao penúltimo teste.
Mas o comandante do pelotão decidiu que não iria à tribuna de honra receber o prémio de melhor classificado "um comuna".
E não havendo mais por onde pegar, no último teste “por mero acaso” em vez dos dezassete valores habituais porque o teste correra-me tão bem como todos os anteriores, tive apenas 13 valores certinhos, coisa rara, mas exatamente o suficiente para baixar toda a média final e fazer-me passar do 1º para o 2º lugar.
Era assim a “categoria” de alguns "mandantes" que naquele tempo decidiam os destinos dos seus subordinados na velha e bafienta GNR dos anos 70 porque um Comandante a sério, íntegro e leal como os que tive depois, comanda pelo exemplo e sem tiques ou comportamentos de um ditador sem regras nem princípios.
Felizmente, pouco depois, com a chegada ao comando da GNR de oficiais generais bem mais novos, com uma visão completamente diferente e oposta à caduca ditadura do antigo regime, fez toda a diferença para melhor...
José Coelho - Histórias do Cota (excerto)
Foto:
Grupo final do 6º Curso de Formação de Sargentos 1984/1985
no Centro de Instrução da GNR na Ajuda - Lisboa do qual fiz parte.