quarta-feira, 18 de junho de 2025

Amizades improváveis que solidificam


O veículo automóvel do dono do Café Peninsular de Castelo de Vide, tinha sofrido durante a noite um assalto de onde lhe haviam roubado o auto-rádio. E havia um suspeito bastante amador ou incauto pois tinha deixado o tablier do mesmo repleto de impressões digitais. Em consequência disso telefonei para a Diretoria da Polícia Judiciária de Tomar a que pertence aquela comarca e de lá me foi dito ser de todo impossível naquele dia que a equipa de peritagem ali se deslocasse por estar empenhada noutra missão que iria demorar ainda algumas horas. Perguntaram se seria possível guardar a viatura em local fechado e seguro para preservar todos os vestígios até que eles pudessem lá ir.

Assim se fez.

No dia seguinte já depois do almoço chegou a equipa que levámos ao veículo de onde facilmente recolheram várias impressões digitais, muitas delas perceptíveis até a olho nu. De seguida foi mandado comparecer no posto o suspeito a quem a mesma equipa da PJ recolheu também as impressões digitais e palmares, depois foi só analisar ambas.

Tal como já se previa a sua leitura revelou-se imediatamente positiva.

Em consequência porque contra factos não há argumentos, logo ali o suspeito se declarou culpado e indicou o destino que havia dado ao rádio que já vendera por tuta e meia a outro amigo da sua claque que foi também chamado a comparecer no Posto e a trazer consigo o auto-rádio ilicitamente adquirido, tendo os dois sido constituídos arguidos como era de lei, um pelo roubo e o outro pela receptação.

Quero aqui fazer um pequeno aparte acerca da eficácia da lei e das competências que eram cometidas à Guarda nessa época – anos 80 – mercê de uma total confiança mútua então existente entre o Ministério Público, os Juízes de Comarca e os chamados Órgãos de Polícia Criminal (OPC) que eram a GNR, a PSP, a Guarda Fiscal, a Polícia Judiciária, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e o pessoal da ASAE em que, cada parte interveniente num qualquer processo desta natureza, assumia a sua responsabilidade. E não me consta que tenha havido alguma vez abusos de autoridade ou quaisquer outros problemas, o que fazia com que a justiça tivesse uma eficácia completamente diferente da que tem hoje.

Neste caso concreto o rádio até tinha um valor pouco relevante mas o que qualificava o furto eram os outros fatores previstos no Código Penal de então que tem vindo a ser sucessivamente alterado para pior, acho eu.

Esses fatores eram:  Ter sido cometido em veículo automóvel. Ter sido cometido de noite ou em lugar ermo. Ter sido praticado por arrombamento, escalamento ou chave falsa. Bastava apenas um desses fatores para transformar de imediato um furto simples num furto qualificado com substancial agravamento da respetiva pena e que, só “per si” determinava que da participação enviada a juízo tivesse de ser enviado também um duplicado para a Diretoria da Polícia Judiciária da área da comarca que assumia imediatamente, com exclusiva competência, a sua investigação e por isso a avocava, chamando a si todo o processo.

Era tão simples e tão fácil por isso mesmo administrar a justiça naquele tempo. Quanto mais têm mexido na sua suposta simplificação, mais a têm complicado e tornado confusa, retirando manifestamente competências aos OPC em benefício da burocracia e das injustiças gritantes que frequentemente são notícia nos OCS. Felizmente eu já estou fora porque iria com certeza sofrer com este meu feitio perfeccionista e com a maneira como as coisas hoje se processam. Por um lado, eu seria incapaz de fingir que não via uma infração só para não ter chatices, por outro lado, seria muito duro para mim ver sair primeiro que os criminosos do tribunal, felizes da vida e impunes.

Mas voltando àquele dia, o “chefe” da equipa forense que veio recolher e decifrar as impressões digitais precisamente no dia que estava marcado o jantar celebrativo da minha recente promoção a sargento, era um jovem Subinspetor da minha idade - 33 anos. Quando toda aquela maratona terminou eram horas de jantar e a ementa escolhida ia ser a célebre sopa de peixe do rio no Tio Canchão em Montalvão.

Sem hesitar, porque a equipa da PJ tinha de jantar também antes de regressar a Tomar, convidei-os para nos acompanharem o que eles de bom grado aceitaram, tendo sido em simultâneo uma excelente oportunidade para os apresentar também às individualidades públicas ali presentes.

Sem obviamente se revelar o porquê, é sempre bom mostrar-lhes que as “suas” autoridades policias andam vigilantes e atuantes onde é preciso.

Foi de tal modo bem servido – quem não se lembra da tasca do Tio Canchão em Montalvão e da sua superior maneira de confecionar o peixe do rio? –  que para além da feliz celebração a que se destinava aquele salutar convívio, resultou ainda no início de mais uma excelente amizade daquelas que permanecem até aos dias de hoje, já os dois aposentados e com os netos ao colo, a recordarmos tranquilos as muitas outras histórias de polícias e ladrões cuja investigação e bons resultados partilhámos regularmente nos anos seguintes…

José Coelho