segunda-feira, 23 de junho de 2025

Escrito nas estrelas


Quantas vezes pensamos na nossa reforma? Não seguramente por pressa de ser velhos, mas porque achamos que merecemos lá chegar para desfrutar um pouquinho melhor uma vida de trabalho e lutas.
Quantas vezes imaginamos as mil e uma coisas que iremos fazer, longe de todos os compromissos e obrigações?
Estamos tão equivocados.
O tempo é, indiscutivelmente, o melhor de todos os mestres.
Quando somos crianças ansiamos ser adultos. Quando somos adultos queremos ser experientes para conseguirmos ascender nas nossas carreiras. E depois, quando atingimos experiência e maturidade começamos a ambicionar a reforma para um regresso tranquilo às nossas raízes.
Foi exatamente o que me sucedeu a mim.
Trabalhei desde os onze anos, lutei com unhas e dentes para as alcançar as minhas metas, defendi-me de agressões e armadilhas que me estenderam sem nunca fazer uso de qualquer violência porque não ser igual a quem me queria mal. Contentei-me em esfregar apenas na cara dessas pessoas ruins a minha competência e sucesso.
E não, não é vaidade. É orgulho. Muito orgulho da capacidade e resiliência que me ajudou a conseguir singrar na vida, construir o meu futuro e da minha família e chegar à idade de concretizar o último sonho, contra ventos e marés.
A minha mais que merecida reforma.
Estranhamente – ou talvez não – quando alcancei este sonho, fartei-me dele em três tempos.
Os primeiros meses foram de facto puro deleite. Deitava-me à hora que me apetecia sem preocupações para o dia seguinte, levantava-me quando me dava na gana sem olhar sequer para o relógio que durante décadas me acordava às seis e meia da manhã.
Apesar de nunca dormir as manhãs na cama pelo hábito de levantar cedo durante décadas, tomava o pequeno almoço e corria para o quintal onde erva nenhuma tinha autorização sequer de assomar à face da terra, quanto mais de crescer. Só faltava andar de lupa a espreitá-las para as arrancar no momento seguinte.
Depressa percebi contudo o ridículo do meu comportamento. Não se pode impedir a erva de nascer ou os campos de florir. E aos poucos, os dias começaram a ser enormes, enfadonhos.
- Rais'parta a reforma - resmungava de mim para mim. Quem dera ter de levantar-me cedo de novo para ir trabalhar!
Vá lá a gente entender-se! Nunca estamos satisfeitos com o que temos…
No monótono entardecer da minha vida rodeia-me o ensurdecedor silêncio em que tudo à minha volta se transformou. Não há um grito de gaiato a brincar pelas ruas, ou mãe alguma a bradar pelo seu Zéi como a minha bradava por mim.
Emudeceram também os apitos dos comboios nos agora inúteis carris estendidos por dezenas de quilómetros da a Beirã à Torre das Vargens ou até Valência de Alcântara no outro lado da fronteira.
Bolas!
Como pode o mundo dar cambalhotas tão grandes?
Recebi dos meus pais e avós um mundo que não era perfeito, de todo. Mas não tenho a menor dúvida que vou deixar aos meus filhos e netas outro bem mais complicado.
Quando era miúdo soube sempre o que me esperava quando crescesse. Estava escrito nas estrelas desde o dia que nascíamos.
Trabalhar, trabalhar, trabalhar...
No que houvesse, quisesse ou pudesse.
Padeiro, sapateiro, cavador, pastor, pedreiro ou carpinteiro, ferroviário, carteiro…
Que foi feito de todos esses ofícios?
E o que dizem hoje as estrelas aos nossos filhos e netos?
Cursos. Licenciaturas. Mestrados. Doutoramentos.
Para que querem eles os cursos e licenciaturas se a maior parte ao terminá-los ficam com o canudo debaixo do braço por não haver vagas e emprego nesses cursos em que se formaram?
E por isso têm de ir trabalhar para o que mais depressa lhes aparece, se aparece? Quantos desses jovens vemos nas caixas dos hipermercados, nos call centers das grandes empresas de comunicação ou outras?
Claro que não é nenhuma desonra trabalhar lá, mas para ocupar essas vagas não havia necessidade de os pais gastarem fortunas para financiar os cursos.
E por falta de oportunidades, muitos optam por emigrar em busca de soluções para as suas vidas, ainda que longe da terra e família. E a maior parte nunca mais vai voltar.
Os sinais são cada dia mais inquietantes. A escalada global da violência bélica não augura nada de bom e receio por isso que o futuro das novas gerações seja muito diverso daquele que me esperava a mim ao nascer.
E pela lógica não deveria ser assim.
Tenho plena consciência de como alcancei os meus objetivos, sem ajudas de ninguém. Que consegui tudo aquilo a que me propus apenas com o meu esforço à custa de muito trabalho, empenho e noites sem dormir.
Mas o mundo está a ficar tão complexo e perigoso que no lugar de um promissor céu azul de oportunidades, a geração atual enfrenta um horizonte carregado de negras e ameaçadoras nuvens.