Hoje vou escrever tudo o que sei acerca deste "abrigo de pastores" onde viveram os meus avós e tios maternos e eu próprio almocei, jantei e dormi com os meus primos, algumas vezes. Os ""sôchos" do avô-pastor José Lourenço e do tio Francisco Lourenço pelos barreirões e tapadas do Matinho na raia de Espanha.
Nunca irei desistir de dar a conhecer os usos e costumes ancestrais da minha terra e nunca vi - o que não quer dizer que não exista - nada escrito acerca deste cómodo abrigo, porque são muito raras se não quase inexistentes as fotografias deles. Por isso fiquei encantado ao encontrar a que ilustra este escrito, pese embora ela revele um sôcho mais tosco e pequeno do que aqueles onde "moravam" os meus familiares.
Parece à primeira vista um barraco mal engendrado. Mas não era. Pelo contrário. Era um espaço calculado ao pormenor, quente no inverno e fresco no verão, cómodo, confortável e muito bem executado pelas suas hábeis mãos.
Fazendo uso de varas verdes flexíveis, montavam duas armaduras côncavas, uma para o lado direito, outra para o lado esquerdo. E mais uma outra em arco, para fechar o centro, unir as outras duas e fazer a entrada. Só depois de todo montado se fazia a porta com a medida exata que ia isolar por completo o interior do abrigo.
Depois de firmemente ligadas com arames as varas que compunham o esqueleto das estruturas, eram as mesmas meticulosamente cobertas, primeiro com uma camada de palha de centeio a fazer de forro, depois por sua vez a palha era recoberta com várias camadas de giestas verdes sobrepostas, bem acamadas e solidamente seguras às varas interiores com mais arames de fardo. Ficavam de tal modo impermeabilizadas que não entrava uma pinga de água, mesmo quando chovia semanas inteiras.
Seguidamente era escolhido um local no centro da área onde o rebanho iria pastar e pernoitar nos meses seguintes, de modo que pastor e cães de guarda estivessem sempre por perto. Montavam-se os três componentes do sôcho nesse local previamente aplanado com a entrada virada para nascente e de costas para o temporal e ventos agrestes, abria-se à enxada uma vala mais funda que o interior do socho em toda a sua volta, para drenar a chuva que escorria da cobertura e impedir que alagasse o interior do sôcho.
O espaço era normalmente dividido em três zonas: De um lado da entrada ficava a cama do pastor e da sua mulher feita com uma boa camada de restolho seco sobre o chão de terra. Ao centro e em frente da porta, era a cozinha por ser a zona mais alta do sôcho que permitia quase ficar-se de pé e fazer lume para se cozinhar nos dias de chuva. Do lado oposto ficava a cama dos filhos e das visitas como eu que quando lá ia tínhamos que dormir todos juntos.
No verão cozinhava-se ao ar livre numa lareira improvisada em algum afloramento rochoso abrigado do vento, nas imediações do sôcho. Comia-se de prato no colo, cada um sentado em "cadelas" de 3 pernas feitas de ramos da limpeza das azinheiras. À noite, a luz era de candeia.
Quer eu, quer a minha esposa, fomos algumas vezes visitar, comer e dormir com o tio Francisco no sôcho onde ele morava na tapada dos Carrascos, por cima da caseta do Matinho, no lado direito do Ramal de Cáceres. E a avó Amélia toda a sua vida cozinhou num sôcho construído pelo avô José Lourenço ao lado da casa onde moravam, para poupar na sujidade da chaminé da cozinha, que gostava de ter sempre imaculadamente caiada de branco.
São memórias que não esquecemos pela sua singularidade e pelo misticismo de um tempo que, parecendo já tão longínquo, aconteceu, de facto, nas nossas vidas. Falta agora outra explicação que me parece pertinente e curiosa também, principalmente para quem não conhece esta espécie de abrigo ancestral que não foi inventado pelo meu avô ou tios mas sim foi passado de geração em geração, infelizmente quase esquecido já da nossa memória coletiva.
Porquê sôcho, porquê sócha.
Sendo a sua finalidade idêntica, faziam porém toda a diferença. A sócha era um "lar" fixo, de forma circular, com paredes de pedra, com porta e fechadura, onde nasceram, viveram e morreram gerações inteiras em tempos não muito remotos.
O sôcho era um abrigo ambulante para os pastores estarem perto dos rebanhos, feito de três ou quatro peças de material leve que podia facilmente ser desmontado e transportado para outro local da herdade e ali montado de novo sem qualquer problema, sempre que os gados mudavam de pastagens.
Hoje na nossa região já não há sôchos porque também já não há rebanhos e muito menos pastores profissionais como havia antigamente. Mas por esse Alentejo imenso ainda há guardadores de gado que têm de pernoitar por perto. Porém, já não usam os sôchos. Hoje os guardadores de gado habitam nos antigos montes ou numas casinhotas feitas em chapa e com duas rodas, que atreladas a um trator são deslocadas de um para outro sitio em melhores condições de mobilidade.
Vi algumas na zona de Monforte e Fronteira, no alto dos cabeços, só não imagino o quanto devem ser quentes aquelas chapas ao sol do verão, ou geladas nas longas noites de inverno.
Muito mais coisas sei e gostaria de deixar registadas mas receio que ninguém queira já saber destes usos e costumes dos nossos antepassados que eu tanto respeito e prezo.
Imagem:
Sôcho de pastores de rebanhos com dois ferrados da ordenha a secarem ao ar depois de limpos. A pastora de galochas, faz lembrar a minha Avó Amélia também ela assim baixinha e franzina.