terça-feira, 3 de junho de 2025

Retalhos da (minha) vida militar

Quem me conhece bem sabe que não faço uso de mentiras e sou frontal, que digo sempre o que tenho a dizer cara a cara, seja o que for e a quem for. A propósito disso, vou recordar a situação que vivi certo dia quando era comandante de posto.

Pela sua verticalidade militarista, o digníssimo comandante do nosso batalhão em Évora era o terror de quase todos os comandantes de posto. Existia até um código estabelecido para avisar que o referido senhor se encontrava na zona a rondar os postos, no cabal desempenho de uma das suas muitas obrigações.

Assim que o alerta se difundia, a maioria dos cabos comandantes “arranjava” logo maneira de se ausentar. Tinham imediatamente de ir tratar de algum assunto ao tribunal da comarca, ou tinham de ir também rondar as suas patrulhas no exterior. Qualquer pretexto servia de desculpa para não terem de “enfrentar a fera” deixando para o plantão ao posto – porque esse não podia de lá sair – a tarefa de o atender.

Eu fazia exatamente o contrário. Se não estava no posto quando surgia o alarme, regressava imediatamente ao mesmo para ser eu a recebê-lo, atendê-lo e enfrentá-lo se preciso fosse. Efetivamente, algumas vezes chocámos de frente, porque nunca me intimidou.

Um desses embates foi numa ronda dele quando se procedia à construção da lareira da sala onde se ministrava a instrução semanal.

Os mestres da obra procediam ao corte dos tijolos refratários com uma rebarbadora que obviamente expelia pó em todas as direções. O comandante, depois de ter feito uma minuciosa busca de algo para criticar, o encontrou algum daquele pó vermelho pousado por ali. E logo exclamou:

- Isto está sujo…

Sem me intimidar, retorqui:

- Desculpe meu comandante, mas esse sujo não se deve a desleixo do pessoal mas ao pó dos tijolos que a rebarbadora faz a cortá-los, como o meu comandante pode verificar neste preciso momento.

Surpreso talvez com a minha ousadia, perguntou agastado:

- Coelho, posso falar?

E eu:

- O meu comandante pode falar tudo o que entender, mas também tem de ouvir, para poder ser também justo nas afirmações que faz!

Olhou-me demoradamente e replicou:

- Já vi que não te atrapalhas…

- No dia que a sua presença me atrapalhar meu comandante, vou-me embora da Guarda. Se não devo atrapalhar-me para poder enfrentar os bandidos na rua, muito menos devo fazê-lo por medo de si.

Não obtive mais nenhum comentário e a ronda continuou. Porém, ao assinar o livro de ronda antes de partir, deixou lá escritas as coisas do costume mas a rematar acrescentou: Havia pó e não era das obras.

- Sacana vingativo! Pensei indignado.

Horas mais tarde relatei o sucedido ao senhor oficial meu chefe direto que não pudera estar presente naquela tarde.

Mas ele respondeu-me:

- Está enganado acerca do nosso comandante, sargento Coelho, ele tem uma grande consideração por si!

Incrédulo, retorqui:

- Vê-se isso perfeitamente na atitude dele hoje, meu capitão. Viu o pó que a rebarbadora fazia na frente do seu nariz, enchia toda a sala e pousava em cima de nós. Mas como não deve ter gostado do meu reparo “castigou-me” deixando escrito que o posto tinha pó e não era das obras. Foi uma maldadezinha desnecessária, mas quem manda pode!

- Vou contar-lhe uma coisa que não pensava contar porque foi parte da conversa que tive com o nosso Comandante no dia que fui fazer a minha apresentação a Évora para vir assumir o comando desta secção. Nessa conversa, referindo-se a si, o Comandante disse:

- Tem sorte Ochoa. É lá que está o melhor comandante de posto deste batalhão.

Aquela revelação nada me envaideceu, muito pelo contrário. Acho até que me deixou ainda mais confuso acerca da personalidade daquele distinto senhor. Porém, quando pedi para deixar o comando do posto para ir para mais perto da minha terra, providenciou a atribuição do maior e mais completo diploma de louvor de toda a minha carreira, pelo desempenho das minhas funções.

Até hoje continuo grato aos dois e fiel aos meus princípios.

José Coelho

Imagem: Capacete de Cavalaria para o Grande Uniforme.

(Os postos das sedes de comando dos Destacamentos são mistos, com militares de Cavalaria e de Infantaria)