quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Uma nova história do Cota


Quem me conhece minimamente sabe com toda a certeza que não faço uso de mentiras, que sou frontal, que digo sempre o que tenho a dizer cara a cara, seja o que for e a quem for, além de que não faço também prática do detestável costume de andar às palmadinhas nas costas de ninguém a fingir uma amizade que não sinto para logo a seguir quando me voltam as costas ficar a cortar-lhe na casaca, como tanta gente faz.
É muito certo aquele ditado que diz "cada um dá o que tem". Por cá continuo no meu tranquilo dia a dia completamente indiferente a todas essas veleidades. Sempre que for preciso dou a cara, falo sem medo e sem má-fé, continuando, como sempre fiz, a dizer tudo aquilo que tiver de ser dito.
Quando fui comandante do posto de Nisa, havia um comandante do batalhão de Évora que era o terror de quase todos os comandantes de posto. Existia até um código estabelecido para avisar que o referido senhor se encontrava na zona a rondar, no cabal desempenho de uma das suas muitas obrigações como comandante.
Assim que a “notícia” se espalhava, a maioria “arranjava” logo forma de se ausentar. Tinham imediatamente de ir tratar de um assunto ao tribunal da comarca, ou tinham de ir também rondar as patrulhas que patrulhavam no exterior. Qualquer pretexto servia de desculpa para não terem de “enfrentar a fera” deixando para o plantão ao posto – porque esse coitado não podia de lá sair – a tarefa de o atender.
Ao contrário deles, eu fazia exatamente o inverso. Se ocasionalmente não estava no posto quando surgia o alarme, regressava imediatamente ao mesmo para ser eu a receber, atender e enfrentar se preciso fosse, o digníssimo comandante. E algumas vezes chocámos de frente, porque nunca me intimidou. Um desses embates foi quando se procedia à construção da lareira na sala onde se ministrava a instrução semanal que era também simultaneamente um pequeno bar.
Os mestres da obra procediam ao corte dos tijolos refratários com uma rebarbadora que obviamente fazia pó. Depois de ter realizado uma procura minuciosa em busca de algo para criticar, o comandante encontrou algum pó vermelho sobre o frigorífico do bar. E logo exclamou:
- Isto está sujo…
Sem me deixar intimidar, retorqui:
- Desculpe meu comandante, isso não é um sujo de desleixo mas pó dos tijolos que a rebarbadora faz ao cortá-los como o meu comandante pode verificar neste preciso momento.
E ele, se calhar surpreso com a minha ousadia, perguntou com ar agastado:
- Coelho, posso continuar a falar?
E eu…
- O meu comandante pode falar tudo o que entender, mas também precisa de ouvir para ser justo naquilo que afirma!
O distinto Coronel olhou-me demoradamente e continuou:
- Já vi que não te atrapalho…
- Não, meu comandante. No dia que tiver medo do meu comandante vou-me embora da Guarda porque se não devo ter medo de enfrentar os bandidos na rua, muito menos devo ter medo de si.
Não obtive mais nenhum comentário e a ronda continuou. Porém, ao assinar o livro de ronda antes de partir, deixou também escrito:
Blá,blá,blá, pardais ao ninho – as coisas do costume – mas acrescentou: o posto tem pó e não é das obras.
- Sacana vingativo! Pensei indignado. Quando horas mais tarde relatei o sucedido ao oficial meu chefe direto que não pudera estar presente naquela tarde, ele respondeu-me:
- Está enganado acerca do nosso comandante, Coelho, ele tem uma grande consideração por si!
Incrédulo, retorqui:
- Vê-se isso perfeitamente na atitude dele hoje, meu capitão. Ele viu o pó que enchia toda a sala e pousava até em cima de nós quando o mestre da obra usava a rebarbadora, mas não gostou do meu reparo e “castigou-me” deixando escrito que o posto tinha pó e não era das obras. Foi uma maldade desnecessária, mas quem manda pode!
Vou dizer-lhe uma coisa que não contava dizer-lhe porque foi parte da conversa que tive com o nosso Coronel no dia que fui fazer a minha apresentação a Évora para vir comandar esta secção. Nessa conversa e referindo-se a si, o nosso comandante disse-me: Tem sorte em ir para Nisa pois tem lá o melhor comandante de posto do batalhão.
A revelação não me envaideceu minimamente, achei-a até francamente exagerada e acho que me deixou ainda mais confuso acerca da personalidade daquele distinto senhor. Porém, quando decidi deixar o comando do posto de Nisa em outubro de 1992 para ir comandar o posto de Castelo de Vide, mandou que me fosse atribuído o maior e mais elogioso louvor de toda a minha carreira.
Ainda hoje sou grato aos dois.
É assim que entendo que as coisas devem funcionar numa sociedade minimamente decente e bem formada e por isso o pratico todos os dias da minha vida, sem qualquer dificuldade.

27. 09. 2023

Imagem:
- Capacete de Cavalaria para o Grande Uniforme.
(Nisa é um Posto misto com militares de Cavalaria e de Infantaria)