segunda-feira, 16 de junho de 2025

Coisas que venceram o tempo



Viver numa aldeia como a minha raiana Beirã tem muitas limitações e inconvenientes, mas tem também algumas vantagens, como por exemplo podermos colher e degustar frutos de época sem qualquer perigo de contaminação por químicos. Quando muito, haverá a possibilidade desses frutos conterem algum "marisco" hospedeiro que também precisa alimentar-se e tem direito à vida.

E como dizia o meu avô Zé Lourenço, "mal do bicho que vai para a barriga de outro".

Caminho pelos campos em redor e sei exatamente onde ficam as hortas onde continuam a lutar valentemente pela sua sobrevivência algumas já bastante velhinhas árvores de fruto plantadas por mãos de gente boa que conheci e recordo com saudade.

Na horta do Cancho de Ruivo há pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias raças que são mais velhas "ca’mim". Aproveitando a frescura que lhes proporciona a velha fonte e o enorme tanque de granito – obra dos famosos canteiros de Gáfete que construíram também a lindíssima capela mortuária do nosso cemitério, toda de granito branco – continuam a sobreviver e a dar frutos ano após ano, mesmo já “abafadas” pelas silvas.

Pelas margens do ribeiro da Cavalinha desde a Beirã até ao Rio Sever já não se vislumbra sequer a terra de muitas dessas antigas e férteis hortas porque foram sendo invadidas pelo mato, mas em alguns locais ainda se enxergam videiras já bravas, pereiras, figueiras de várias raças, nogueiras, macieiras e até romãzeiras.

Junto às “casetas” onde habitavam as famílias dos “assentadores” que meticulosa e diariamente tinham a seu cargo a manutenção da via férrea do Ramal de Cáceres, como por exemplo a do Maxial que já nem telhado tem e a poucos metros de distância onde faziam a horta que os alimentava o ano inteiro, continuam teimosamente de pé, as figueiras, cerejeiras, marmeleiros e pereiras.

Mais admirável ainda é que continuem a resistir às décadas de abandono, algumas das flores plantadas pelas mãos daquelas donas de casa, esposas e mães d'outrora, pois até essas continuam a vencer o tempo e a florir ano após ano sem se deixarem morrer.

Na “caseta” do Maxial que referi num dos parágrafos anteriores, lá continuam as roseiras de várias castas, sendo uma delas a de Alexandria, que diz quem sabe, dá a rosa mais perfumada de todas as rosas, perpetuada numa quadra de cariz popular que reza assim:
A rosa para ser rosa,
tem de ser de Alexandria.
A mulher para ser formosa,
tem de chamar-se Maria.

No pico da primavera é admirável o bucólico quadro que exibe em simultâneo as tristes ruínas da já esventrada casa, num contraste completamente oposto à vida e beleza de todas aquelas roseiras floridas em seu redor a exalarem perfume.

Ano após ano, década após década, indiferentes ao abandono a que estão condenadas.

Neste “escrito” em que apenas queria “ajuizar” as consequentes limitações mas também as vantagens de se viver longe da “civilização” acabei por me deixar envolver pelo melancólico silêncio da tarde e a visitar muitos dos bonitos lugares outrora habitados da minha freguesia que acabei de descrever...