segunda-feira, 23 de junho de 2025

O que nos faz grandes


Ser pessoa de verdade nunca saiu de moda. Não é o que vestimos, temos ou sabemos que nos definem, mas sim a forma como tratamos as pessoas.

A educação não se compra, o carácter não se empresta e a humildade não se finge. Têm-se, ou não. Não adianta ter tudo por fora e ser vazio por dentro.
Não adianta ter diplomas na parede e arrogância no olhar. O que fica na memória das pessoas não é o que conquistamos mas sim o bem que fazemos, o respeito que deixamos e a verdade que transportamos no coração. É isso que nos faz grandes.

Escrito nas estrelas


Quantas vezes pensamos na nossa reforma? Não seguramente por pressa de ser velhos, mas porque achamos que merecemos lá chegar para desfrutar um pouquinho melhor uma vida de trabalho e lutas.
Quantas vezes imaginamos as mil e uma coisas que iremos fazer, longe de todos os compromissos e obrigações?
Estamos tão equivocados.
O tempo é, indiscutivelmente, o melhor de todos os mestres.
Quando somos crianças ansiamos ser adultos. Quando somos adultos queremos ser experientes para conseguirmos ascender nas nossas carreiras. E depois, quando atingimos experiência e maturidade começamos a ambicionar a reforma para um regresso tranquilo às nossas raízes.
Foi exatamente o que me sucedeu a mim.
Trabalhei desde os onze anos, lutei com unhas e dentes para as alcançar as minhas metas, defendi-me de agressões e armadilhas que me estenderam sem nunca fazer uso de qualquer violência porque não ser igual a quem me queria mal. Contentei-me em esfregar apenas na cara dessas pessoas ruins a minha competência e sucesso.
E não, não é vaidade. É orgulho. Muito orgulho da capacidade e resiliência que me ajudou a conseguir singrar na vida, construir o meu futuro e da minha família e chegar à idade de concretizar o último sonho, contra ventos e marés.
A minha mais que merecida reforma.
Estranhamente – ou talvez não – quando alcancei este sonho, fartei-me dele em três tempos.
Os primeiros meses foram de facto puro deleite. Deitava-me à hora que me apetecia sem preocupações para o dia seguinte, levantava-me quando me dava na gana sem olhar sequer para o relógio que durante décadas me acordava às seis e meia da manhã.
Apesar de nunca dormir as manhãs na cama pelo hábito de levantar cedo durante décadas, tomava o pequeno almoço e corria para o quintal onde erva nenhuma tinha autorização sequer de assomar à face da terra, quanto mais de crescer. Só faltava andar de lupa a espreitá-las para as arrancar no momento seguinte.
Depressa percebi contudo o ridículo do meu comportamento. Não se pode impedir a erva de nascer ou os campos de florir. E aos poucos, os dias começaram a ser enormes, enfadonhos.
- Rais'parta a reforma - resmungava de mim para mim. Quem dera ter de levantar-me cedo de novo para ir trabalhar!
Vá lá a gente entender-se! Nunca estamos satisfeitos com o que temos…
No monótono entardecer da minha vida rodeia-me o ensurdecedor silêncio em que tudo à minha volta se transformou. Não há um grito de gaiato a brincar pelas ruas, ou mãe alguma a bradar pelo seu Zéi como a minha bradava por mim.
Emudeceram também os apitos dos comboios nos agora inúteis carris estendidos por dezenas de quilómetros da a Beirã à Torre das Vargens ou até Valência de Alcântara no outro lado da fronteira.
Bolas!
Como pode o mundo dar cambalhotas tão grandes?
Recebi dos meus pais e avós um mundo que não era perfeito, de todo. Mas não tenho a menor dúvida que vou deixar aos meus filhos e netas outro bem mais complicado.
Quando era miúdo soube sempre o que me esperava quando crescesse. Estava escrito nas estrelas desde o dia que nascíamos.
Trabalhar, trabalhar, trabalhar...
No que houvesse, quisesse ou pudesse.
Padeiro, sapateiro, cavador, pastor, pedreiro ou carpinteiro, ferroviário, carteiro…
Que foi feito de todos esses ofícios?
E o que dizem hoje as estrelas aos nossos filhos e netos?
Cursos. Licenciaturas. Mestrados. Doutoramentos.
Para que querem eles os cursos e licenciaturas se a maior parte ao terminá-los ficam com o canudo debaixo do braço por não haver vagas e emprego nesses cursos em que se formaram?
E por isso têm de ir trabalhar para o que mais depressa lhes aparece, se aparece? Quantos desses jovens vemos nas caixas dos hipermercados, nos call centers das grandes empresas de comunicação ou outras?
Claro que não é nenhuma desonra trabalhar lá, mas para ocupar essas vagas não havia necessidade de os pais gastarem fortunas para financiar os cursos.
E por falta de oportunidades, muitos optam por emigrar em busca de soluções para as suas vidas, ainda que longe da terra e família. E a maior parte nunca mais vai voltar.
Os sinais são cada dia mais inquietantes. A escalada global da violência bélica não augura nada de bom e receio por isso que o futuro das novas gerações seja muito diverso daquele que me esperava a mim ao nascer.
E pela lógica não deveria ser assim.
Tenho plena consciência de como alcancei os meus objetivos, sem ajudas de ninguém. Que consegui tudo aquilo a que me propus apenas com o meu esforço à custa de muito trabalho, empenho e noites sem dormir.
Mas o mundo está a ficar tão complexo e perigoso que no lugar de um promissor céu azul de oportunidades, a geração atual enfrenta um horizonte carregado de negras e ameaçadoras nuvens.

domingo, 22 de junho de 2025

Faz boa letra


O teste de topografia em que indevidamente fui desclassificado correra-me muito bem. Tenho ainda hoje e passados todos estes anos - porque as injustiças nunca se esquecem - a noção exata do que fiz. Não deixara nem uma só pergunta sem resposta, logo, era impossível uma classificação tão baixa, até porque e por sensatez, nunca, em teste algum, respondi a nenhuma pergunta sem ter a certeza de aquela ser a resposta correta.

Se alguma dúvida ensombrava o meu espírito passava à frente deixando a resposta em branco e continuava a responder às questões que se seguiam até à última. Só depois voltava de novo atrás para tentar responder àquelas que deixara em branco, porque, inúmeras vezes, as questões seguintes tinham alguma coisa a ver com as anteriores e isso ajudava a um melhor raciocínio.
Quis muitos anos depois o destino que a última década da minha carreira profissional fosse passada como instrutor de futuros guardas onde tive oportunidade de ver em pormenor, quão justos e imparciais eram sempre os critérios para corrigir e classificar quaisquer testes escritos, em todas as provas dos cursos de formação. Cada um deles era concebido para o seu todo resultar numa média aritmética de valores na escala de zero a vinte, distribuindo-se os mesmos equitativamente pelas questões a resolver, raramente ultrapassando a fasquia de 1,5 valores cada resposta certa.
Corrigi centenas deles nesses dez anos e sei por isso que naquele em que fui passado de 17 para 13 valores inesperadamente, e tendo como tenho até hoje a convicção exata daquilo que fiz, jamais poderia haver uma quebra de 4 valores, exatamente os que eram aritmeticamente necessários para que outro camarada – que nada teve a ver com isso – passasse de 2º para 1º classificado.
Fiquei assim a saber as filhadeputices de que muita gente é capaz. Fiquei também a saber o que se sente quando somos injustiçados, perseguidos e caluniados por pessoas que não demonstram em nada serem melhores do que nós, sendo a razão da sua força apenas os galões ou divisas que ostentam nos ombros ou os cargos que ocupam e dos quais fazem, demasiadas vezes, indevido e impune uso.
Quem dera que muitos dos novos e inexperientes guardas ou polícias colocados longe da família e das suas bases de apoio, após os cursos de formação por esse país fora, conseguissem ser fortes o suficiente para aguentarem a pressão tremenda das injustiças de que são vítimas, como eu felizmente consegui aguentar. E capazes de agir também como eu consegui agir sempre de cabeça fria, ainda que, sabe Deus à custa de quantas almofadas húmidas de choro pela calada da noite.
Preocupa-me imenso o que vejo e ouço nos telejornais acerca do suicídio inexplicável de tantos homens das forças de segurança e estremeço sempre que me lembro de tudo aquilo que eu próprio passei. Por isso tentei sempre ser mais um amigo com quem os guardas podiam sempre contar, do que apenas o seu omnipotente "chefe" que escalava o serviço e tinha de gerir com eficácia a missão de garantir a segurança das populações a nosso cargo.
Mas porque a ingratidão existe e nunca conseguiremos agradar a todos, há também pessoas que mais depressa condenam qualquer falha nossa, do que agradecem o bem que lhes foi feito. Ainda assim, as manifestações de apreço e de sincera amizade que me são dirigidas algumas vezes por velhos camaradas passados mais de vinte anos na reforma, ajudam-me a acreditar que cumpri o meu dever.
Aos que me recordam e estimam ainda, a minha sincera gratidão. A quem ajudei e se esqueceu disso, tenha a certeza que se o tempo voltasse atrás eu voltaria a ajudá-los de novo, mesmo sabendo que iriam esquecer-se. Cada pessoa é como é e cada um dá o que tem para dar.
O homem que tive a sorte de de ser meu pai dizia frequentemente:
- Faz boa letra, filho. E o diabo que a leia...
Foto:
AIP/GNR/PORTALEGRE

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Bom fim de semana


Foto José Coelho
20. 06. 2025

Bem-vindo


Solstício de Verão 2025: O Primeiro Dia de Verão e Dia Mais Longo do ano. Sábado, 21 de junho.
Nascer do sol na Beirã 

Filhadeputices (fora as mães que não têm culpa)


Ao passar um dia por Portalegre a tratar de assuntos do seu interesse nas proximidades do quartel do comando da companhia “calhou” ao meu vizinho de toda a vida ser visto, abordado e logo convidado para ir lá dentro petiscar e beber uns copos.

Estava presente – e não por acaso – no improvisado “lanche” o tenente meu comandante de pelotão. Embebedaram deliberadamente o meu vizinho, no intuito de assim conseguirem “sacar-lhe” algumas informações "cabeludas" que pudessem depois ser usadas contra mim.
Contou-me ele mesmo isto tudo pessoalmente e tim-tim por tim-tim, conforme o estou a descrever hoje.
Mas enganaram-se mais uma vez.
Primeiro porque não havia rigorosamente nada a revelar que me pudesse por qualquer forma prejudicar. Depois porque o vizinho cuja casa era paredes meias com a nossa conhecia-me desde que nasci e podia, com quase tanta propriedade como o meu pai, falar sobre mim com conhecimento de causa. E finalmente porque de ingénuo não tinha nada e sentiu-se indevida e manhosamente “apalpado” pelo tenente e pelos guardas.
Limitou-se, por isso, a dizer-lhes o que sabia e era exatamente o contrário do que eles queriam ouvir:
- O José Coelho?
- É uma família de gente boa. Vi-o nascer, conheço-o bem e sei o que ali está. Vai se um bom guarda, podem crer!
Rimo-nos os dois divertidos quando ele me contou isto em sua casa no fim de semana depois de ter acontecido. E continuou:
- Ó Zé! Põe-te a pau que eles querem fazer-te a folha…
Estava mais que provado que eu andava a ser alvo de uma perseguição cerrada, odiosa, orquestrada, mal-intencionada e sobretudo injusta. Mas sem qualquer receio continuava a lutar com as armas que tinha. A consciência tranquila e um feroz empenho que me punham a estudar até altas horas da madrugada sozinho na sala de aulas para tentar conseguir notas altas nos testes semanais.
Essa minha teimosia e a completa inocência nos imaginários “crimes” que me eram imputados, tinham revertido a situação a meu favor. As “bocas” insidiosas dos senhores tenente e sargento continuavam a espicaçar-me diariamente pois esse calvário durou do primeiro ao último dia do alistamento, mas batiam de frente na minha indiferença.
Porque quem não deve, não teme. E cobarde nunca fui.
Nem sequer os meus camaradas ligavam já àquilo. Tive a sorte e o privilégio de nunca ter sentido qualquer animosidade da sua parte, muito pelo contrário. Senti-os sempre solidários comigo em todas as suas atitudes, tendo havido até um deles - de Montargil - que num secreto desabafo, me sussurrou certa vez:
- Eu não aguentava nem metade o que tu tens aqui aguentado, Coelho. Já me tinha ido embora, mas garanto-te que primeiro partia os cornos a um deles.
No final do alistamento não fui, como me era devido, o primeiro classificado do curso. De forma maldosa passei de primeiro para segundo classificado de um dia para o outro, apesar de ter a melhor média classificativa do pelotão em todo o curso com 17,12 valores até ao penúltimo teste.
Mas o comandante do pelotão decidiu que não iria à tribuna de honra receber o prémio de melhor classificado "um comuna".
E não havendo mais por onde pegar, no último teste “por mero acaso” em vez dos dezassete valores habituais porque o teste correra-me tão bem como todos os anteriores, tive apenas 13 valores certinhos, coisa rara, mas exatamente o suficiente para baixar toda a média final e fazer-me passar do 1º para o 2º lugar.
Era assim a “categoria” de alguns "mandantes" que naquele tempo decidiam os destinos dos seus subordinados na velha e bafienta GNR dos anos 70 porque um Comandante a sério, íntegro e leal como os que tive depois, comanda pelo exemplo e sem tiques ou comportamentos de um ditador sem regras nem princípios.
Felizmente, pouco depois, com a chegada ao comando da GNR de oficiais generais bem mais novos, com uma visão completamente diferente e oposta à caduca ditadura do antigo regime, fez toda a diferença para melhor...

José Coelho - Histórias do Cota (excerto)
Foto:
Grupo final do 6º Curso de Formação de Sargentos 1984/1985
no Centro de Instrução da GNR na Ajuda - Lisboa do qual fiz parte.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O apelo da terra mãe


Resolvemos, muitas vezes, eu e a minha companheira de vida há já 49 anos, calçar as sapatilhas para rumarmos aos campos desertos da nossa Beirã e desfrutarmos não só do ar puro como também da sedutora beleza que desponta por toda a parte.
Desde que me conheço que percorro estes campos saltando paredes, subindo canchos, embrenhando-me pelos matagais acompanhado apenas pelo cantar da passarada e murmúrio do vento no arvoredo. É um mundo muito meu, capaz de atenuar qualquer desassossego.
Tudo o que nos rodeia é a paz e harmonia da natureza com suas cores e odores.
Na Primavera o vistoso amarelo das maias das giestas negrais ao desafio com a alvura das maias das giestas alveirinhas, os odorosos rendilhados das flores dos pilriteiros – carapeteiros – inundam o ambiente com o seu inebriante e característico perfume para o qual contribui ainda também a abundância de rosmaninho associado a uma infinita variedade de lírios e outras flores silvestres.
Não há templo mais belo nem mais harmonioso no mundo, não há outro lugar onde nos sintamos tão próximos do Criador e parte do Universo.
Foi por aqui que os meus avós viveram e foram felizes, os meus pais se conheceram. Por estes campos a minha avó, mãe, tias e primas mondaram trigo, sacharam milho, cantaram quando felizes ou choraram quando tristes, semeando neste chão muitas gotas do seu suor e cansaço ou as lágrimas dos seus olhos magoados por alguma dor.
Estes campos e paisagens fazem parte de mim como a minha própria sombra. Por isso sou rústico como eles. Desde sempre, nos momentos mais complicados da minha vida me refugiei na sua benfazeja solidão em busca de paz de espírito, ou de equilíbrio emocional, ou ainda daquelas respostas complicadas que só o silêncio nos consegue dar.
Passei horas caminhando sem destino por estes cabeços e vales sem dar conta do passar do tempo, outras vezes sentado no cimo de algum cancho a ouvir o estalar do restolho pela correria de algum javali, raposa ou saca-rabos que desde que me conheço sempre abundaram por estas paragens.
Lá longe onde o sol castiga mais quando senti receio não voltar para casa, prometi a mim mesmo que se voltasse nunca mais de cá sairia. E quase cumpri essa promessa. Mas tive de ausentar-me de novo para poder cumprir a minha missão de chefe de família já que aqui não foi possível cumpri-la.
Mas voltava amiúde.
E assim que pude, regressei de vez. Tudo está hoje muito diferente porque quase tudo a vida levou. Entes queridos, vizinhos, até os quotidianos de outrora se extinguiram inexplicavelmente.
Restam pouco mais do que as memórias, mas mesmo essas se irão apagando irreversivelmente. E aquele silêncio que antigamente só se “ouvia” nas profundezas da raia, invadiu casas e ruas de todos os povoados desta região, passando a viver dia e noite paredes meias com o que resta dos seus habitantes.
Ainda assim naquilo que depender apenas de mim é aqui que desejo terminar os meus dias.
Quero continuar a deslumbrar-me com cada por do sol que em nenhum outro lugar do mundo são tão magníficos. A ouvir o terno trru-trru das rolas turcas em cada alvorada. A encantar-me com a ousadia dos melros, pintassilgos e outros “vizinhos” alados que teimam em fazer os ninhos nas árvores do nosso quintal sem receio de serem incomodados.
Se depender de mim. Porque o amanhã ninguém sabe...
Texto e foto

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Amizades improváveis que solidificam


O veículo automóvel do dono do Café Peninsular de Castelo de Vide, tinha sofrido durante a noite um assalto de onde lhe haviam roubado o auto-rádio. E havia um suspeito bastante amador ou incauto pois tinha deixado o tablier do mesmo repleto de impressões digitais. Em consequência disso telefonei para a Diretoria da Polícia Judiciária de Tomar a que pertence aquela comarca e de lá me foi dito ser de todo impossível naquele dia que a equipa de peritagem ali se deslocasse por estar empenhada noutra missão que iria demorar ainda algumas horas. Perguntaram se seria possível guardar a viatura em local fechado e seguro para preservar todos os vestígios até que eles pudessem lá ir.

Assim se fez.

No dia seguinte já depois do almoço chegou a equipa que levámos ao veículo de onde facilmente recolheram várias impressões digitais, muitas delas perceptíveis até a olho nu. De seguida foi mandado comparecer no posto o suspeito a quem a mesma equipa da PJ recolheu também as impressões digitais e palmares, depois foi só analisar ambas.

Tal como já se previa a sua leitura revelou-se imediatamente positiva.

Em consequência porque contra factos não há argumentos, logo ali o suspeito se declarou culpado e indicou o destino que havia dado ao rádio que já vendera por tuta e meia a outro amigo da sua claque que foi também chamado a comparecer no Posto e a trazer consigo o auto-rádio ilicitamente adquirido, tendo os dois sido constituídos arguidos como era de lei, um pelo roubo e o outro pela receptação.

Quero aqui fazer um pequeno aparte acerca da eficácia da lei e das competências que eram cometidas à Guarda nessa época – anos 80 – mercê de uma total confiança mútua então existente entre o Ministério Público, os Juízes de Comarca e os chamados Órgãos de Polícia Criminal (OPC) que eram a GNR, a PSP, a Guarda Fiscal, a Polícia Judiciária, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e o pessoal da ASAE em que, cada parte interveniente num qualquer processo desta natureza, assumia a sua responsabilidade. E não me consta que tenha havido alguma vez abusos de autoridade ou quaisquer outros problemas, o que fazia com que a justiça tivesse uma eficácia completamente diferente da que tem hoje.

Neste caso concreto o rádio até tinha um valor pouco relevante mas o que qualificava o furto eram os outros fatores previstos no Código Penal de então que tem vindo a ser sucessivamente alterado para pior, acho eu.

Esses fatores eram:  Ter sido cometido em veículo automóvel. Ter sido cometido de noite ou em lugar ermo. Ter sido praticado por arrombamento, escalamento ou chave falsa. Bastava apenas um desses fatores para transformar de imediato um furto simples num furto qualificado com substancial agravamento da respetiva pena e que, só “per si” determinava que da participação enviada a juízo tivesse de ser enviado também um duplicado para a Diretoria da Polícia Judiciária da área da comarca que assumia imediatamente, com exclusiva competência, a sua investigação e por isso a avocava, chamando a si todo o processo.

Era tão simples e tão fácil por isso mesmo administrar a justiça naquele tempo. Quanto mais têm mexido na sua suposta simplificação, mais a têm complicado e tornado confusa, retirando manifestamente competências aos OPC em benefício da burocracia e das injustiças gritantes que frequentemente são notícia nos OCS. Felizmente eu já estou fora porque iria com certeza sofrer com este meu feitio perfeccionista e com a maneira como as coisas hoje se processam. Por um lado, eu seria incapaz de fingir que não via uma infração só para não ter chatices, por outro lado, seria muito duro para mim ver sair primeiro que os criminosos do tribunal, felizes da vida e impunes.

Mas voltando àquele dia, o “chefe” da equipa forense que veio recolher e decifrar as impressões digitais precisamente no dia que estava marcado o jantar celebrativo da minha recente promoção a sargento, era um jovem Subinspetor da minha idade - 33 anos. Quando toda aquela maratona terminou eram horas de jantar e a ementa escolhida ia ser a célebre sopa de peixe do rio no Tio Canchão em Montalvão.

Sem hesitar, porque a equipa da PJ tinha de jantar também antes de regressar a Tomar, convidei-os para nos acompanharem o que eles de bom grado aceitaram, tendo sido em simultâneo uma excelente oportunidade para os apresentar também às individualidades públicas ali presentes.

Sem obviamente se revelar o porquê, é sempre bom mostrar-lhes que as “suas” autoridades policias andam vigilantes e atuantes onde é preciso.

Foi de tal modo bem servido – quem não se lembra da tasca do Tio Canchão em Montalvão e da sua superior maneira de confecionar o peixe do rio? –  que para além da feliz celebração a que se destinava aquele salutar convívio, resultou ainda no início de mais uma excelente amizade daquelas que permanecem até aos dias de hoje, já os dois aposentados e com os netos ao colo, a recordarmos tranquilos as muitas outras histórias de polícias e ladrões cuja investigação e bons resultados partilhámos regularmente nos anos seguintes…

José Coelho

Bom aluno


A maturidade ensinou-me que às vezes é melhor ficar em silêncio, mesmo quando temos muito a dizer.

18. 06. 2025

Do meu Mestre favorito


Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram.
Mal eu surgi, cansado, na distância.

Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.

Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.

Miguel Torga.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Encerrar os ciclos


Não é bom visitarmos os lugares que amamos e onde no passado fomos muito felizes porque vamos com a ideia errada de irmos ao encontro daquele tempo.

Mas aquele tempo já lá não está. Mais vale por isso ficarmos com a imagem gravada na nossa lembrança e aceitar que deixámos de pertencer a esses lugares, assim como eles também já não são nossos.

(Casa em ruínas da Avó Amélia)

Mudança de rumo


Agosto de 1978. Uma vez mais a minha mulher e filho foram até à Barroca Grande – Minas da Panasqueira para passarem comigo o mês de agosto por ser o das férias da fábrica onde ela trabalhava há já vários anos.
Hospedados em casa do meu capataz na mina, José Mouro, a cuja família nos afeiçoámos, como se da nossa se tratasse. E como já vinha sendo hábito, a seguir, em setembro, voltava eu com eles para nossa casa de férias também, por ser essa a única fórmula possível de conseguirmos passar dois meses seguidos juntos, desde que tínhamos casado.
E foi nesse ano que, não sei como nem por quem, a minha mãe e a sua nora souberam que estava aberto concurso para admissão de guardas à GNR.
Cada uma delas à vez, foram “buzinando” aos meus ouvidos que aquela sim era uma vida decente, pois a de mineiro era viver como as toupeiras debaixo do chão sem ver a luz do dia, isto e aquilo.
Mais para deixar de as ouvir do que por convicção, lá fui tratar da papelada necessária ao Posto da GNR de Santo António das Areias onde fui atendido pelo guarda Pouca Roupa – hoje já falecido – na altura comandante interino porquanto o cabo estava de baixa por motivo de doença.
Preenchido e entregue o requerimento nunca mais me preocupei com aquilo, e aqui para nós, sinceramente, nunca tencionei enveredar por tal carreira pois não me via de novo fardado e muito menos de polainas nas pernas com uma espingarda às costas a patrulhar caminhos.
Regressei por isso em outubro às Minas e logo pus o meu chefe e grande amigo ao corrente do que tinha feito, confidenciando-lhe que fizera aquilo mais para calar a mulher e a mãe do que com intenção de mudar de vida.
Para meu espanto ele ficou um grande bocado calado a pensar. E respondeu-me:
- Amigo Zé Manel! Tenho mesmo muita pena que te vás embora porque nos afeiçoámos a ti, não só eu e a minha família, mas também todos os teus camaradas mineiros e amigos, o teu primo João e a família, o Antero e a sua família, o Zé Maria, o Pinto e todo o pessoal das Preparações que muito te estimam todos. Mas empenha-te nisso a sério e tenta entrar. A mina não te leva a lado nenhum. Vais é apanhar silicose e morrer novo como todos nós. Andas para aqui desterrado e longe da família, uma vez que a tua mulher não quer para cá vir morar. Por isso, pensa muito bem. É um futuro mais certo, mais limpo e menos arriscado...
Olhei-o com enorme gratidão pela clareza do raciocínio. Aquilo foi mais o sensato conselho de qualquer pai para um filho seu, do que de um chefe para um subordinado como nós éramos na altura.
E, como a Vida nunca parou de me surpreender, o requerimento para ingresso na GNR que preenchera em setembro foi deferido em pouco mais de quinze dias. Quando voltei a casa no fim de semana seguinte fui chamado ao posto de Santo António das Areias para ser notificado a ir prestar as provas de admissão em novembro seguinte.
Fui, prestei provas escritas e físicas sem qualquer dificuldade e logo notificado para me apresentar no Comando de Portalegre em 22 de janeiro de 1979 - pouco mais de um mês depois - para frequentar a escola de guardas.
Assim que regressei ao trabalho na Mina na segunda-feira seguinte entreguei cópia da notificação na Secção de Pessoal da Beralt Tin & Wolfram a solicitar rescisão do meu contrato de trabalho no prazo legal, afim de serem processados em tempo os honorários que me fossem devidos.
Fi-lo com infinita pena porque sentia no meu íntimo que se estava a encerrar um dos melhores capítulos da minha vida e que nunca mais iria encontrar amigos tão leais e verdadeiros como os que ali tivera o privilégio de conhecer.
Era uma mudança de rumo por mim decidida mas que me entristecia bastante não pela qualidade do trabalho, muito pelo contrário, porque o serviço do mineiro seja em que mina for é um serviço sujo sempre desempenhado nas profundezas da terra entre lama, humidade, poeiras suspensas, máquinas e escuridão.
Porém, a forma como fora acolhido pelos meus conterrâneos quando ali chegara cinco anos antes, a estabilidade financeira que se instalara na minha vida graças ao muito bem remunerado salário mensal, as sinceras amizades que se estabeleceram entre mim, a minha família e os mineiros mais as suas famílias também, bem como a minha enorme gratidão pelo conjunto de todas essas circunstâncias, tinham tocado no mais fundo do meu ser.
Não foi por isso nada fácil dizer-lhes adeus...
- Foto:
O meu Capacete do Grande Uniforme de Infantaria da GNR.