quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Ser capaz de ser feliz

Foto da autoria da neta Francisca em 15 de agosto de 2024



Nunca o meu sorrir foi forçado. Nunca na minha vida esbocei sequer um sorriso com vontade de chorar, como já ouvi pessoas dizerem que o fazem. Se rio é porque estou feliz e no meu íntimo reina a serenidade. É porque estou bem. Não faço favores desses a ninguém. Em mim tudo é genuíno, ou nem sequer existe. De igual modo também não sei disfarçar a tristeza, a preocupação ou a indignação. Se alguma coisa me perturba, a minha expressão facial dizem que muito mal-encarada, revela e não deixa dúvidas que estou preocupado ou mal disposto.

Nunca deixei de dizer cara a cara e fosse a quem fosse, o que tinha de ser dito. Lamber botas, dar palmadinhas nas costas de qualquer pessoa para logo a seguir ir dizer mal dela não faz o meu género, porque a má-fé e a cobardia nunca habitaram o meu coração. A quem gosta de mim tento sempre retribuir em dobro. E quem não gosta, ponha no bordo do prato. Estou-me nas tintas.
Aprendi a lutar pelo que queria desde muito pequeno. De pezitos descalços e calças remendadas que luxos não havia e a tia Florinda não dava baldas, nem poupava nas nalgadas quando eram precisas para nos ensinar que quem mandava era ela.
Fizeram-me tão bem!
Ainda assim não deixei de levar sempre "a minha" avante. Com apenas cinco anos, uma tarde fugi à Mestra, a querida senhora Vicência Olivença, para me apresentar na Sociedade Recreativa num dia em que começaram os ensaios das crianças da catequese para um serão recreativo que se fazia todos os anos na Beirã para a população.
Eu não andava ainda na catequese porque também ainda não frequentava a escola, mas queria lá saber disso. Se as outras crianças podiam lá estar eu também tinha de poder. E como ninguém me chamou fugi à mestra e fui lá ter.
Com tal sorte que a D. Mimi e o Sr. Cardoso acharam que eu era capaz de ficar bem no papel de um Beirão de Monsanto a interpretar uma cantiga ao desafio com uma das netas da vizinha Joaquina Servo que era da minha idade e altura. E de tal modo aquilo correu bem que logo naquele primeiro arremedo de ensaio assinámos contrato artístico com a produção do evento.
Devia ser hilariante porque toda a gente ria à gargalhada. Eu era baixote e a miúda também, vestidos de Beirões e com o sotaque de Monxanto a condizer, aquilo correu mesmo bem. O pior foi a cara indignada da Mestra Vicência quando terminou o ensaio. Dera pela minha falta e sabendo que havia ali atividades com crianças logo imaginou para onde eu me tinha escapulido sem a sua licença.
E não achou graça nenhuma.
Fui agarrado por uma orelha até sua casa e à noite queixa formal à mãe Florinda que me proibiu de voltar a por os pés na Sociedade sob pena de levar uma sova. Valeu-me a diplomacia da senhora D. Mimi e do Sr Cardoso que lá conseguiram convencer Mãe e Mestra a deixarem-me participar.
Depois...
Toda a minha vida foi uma luta constante para alcançar metas, como a vida de todos aqueles que tiveram a sina de nascerem pobres. A vida dura do campo e mais tarde a de cabouqueiro nas pedreiras com o meu pai, não me seduziam nem um pouco. Não me sentindo mais corajoso ou ousado do que qualquer outro gaiato da minha idade, sabia com toda a certeza que iria ser capaz de arranjar uma vida melhor.
Pesei sempre na balança da prudência todas as possibilidades, sem nunca subestimar as naturais dificuldades. Foram infinitas as inquietações. Os medos. As noites mal dormidas. Mas tudo valeu a pena porque infinitos foram depois os momentos da mais profunda felicidade por cada conquista, por cada obstáculo vencido, por cada "porra, consegui!".
Poetizando um pouco...
"O tempo passou e veio a idade,
como vem a noite ao cair da tarde".
Mas com a idade vieram outras coisas inesperadas, absolutamente dispensáveis e com as quais tenho de conviver agora no silêncio dos meus dias. Acabaram-se as lutas que foram sendo substituídas pela simplicidade de aprender a viver um dia de cada vez.
E não sendo possível melhor, que ao menos se mantenha assim.
Neste cair de tarde da minha vida com a noite a aproximar-se, continuo apesar do já longo caminho percorrido o mesmo petiz de pés descalços que corria rua abaixo para fugir à mestra, que agora já não corre mas continua a descê-la em passo tranquilo e já pode ir para onde quer sem que ninguém lhe ralhe ou o prenda por uma orelha.
Não foi fácil.
Muito pelo contrário.
A minha mais sincera gratidão vai direta para a maravilhosa Família em cujo seio nasci e a quem devo tudo o que sou. Depois à Vida pelo tanto que me deu, bom e mau. Guardo no coração sempre em primeiro lugar as memórias mais felizes, mas foram sem dúvida os tombos e as dificuldades que me ensinaram a lutar, a resistir e a nunca desistir. Porque felizmente em momento algum perdi de vista aquele que me parece ser o objetivo principal na vida de qualquer um de nós:
O de sermos capazes de ser (e porque não de fazer também os outros) felizes...