Fotografia de Valter Bento
Fazer da cal o bilhete de identidade. Comer o primeiro u de
Augusto. Às Marias chamar Bias. Petiscar ao fim do dia. Acreditar em Deus e no
Partido Comunista. São coisas de alentejanos.
Explicar Deus como “alguém que manda” nisto. Casar pela
Igreja. Baptizar os filhos. Ser indiferente à missa. Não faltar à procissão.
Desprezar a confissão. Cantar ao Menino pelos Reis. Chamar magana à morte.
Dizer dos familiares que lhe morreram: “o meu pai que Deus tem” ou “a minha
Joaquina que Deus tem”. Tirar o chapéu diante do cemitério. Temer as trovoadas
como os gauleses do Astérix. Benzer o pão antes de entrar no forno. Não
derramar azeite. São coisas de alentejanos.
Estar apaixonado quando está triste. “Andar atrás de” quando
está apaixonado. Chamar boda ao casamento e ao copo d’água função. Anteceder os
nomes dos filhos do pronome possessivo meu ou minha: o meu João, a minha Ana.
Da mulher dizer apenas “a minha”, ignorando-lhe o nome. Não ter trambelho para
os trabalhos domésticos. Enforcar-se quando se vê viúvo. São coisas de
alentejanos.
Ver cair a geada. Chamar charoco ao frio e busaranho ao vento
gelado. Dizer que está aspereza quando há temporal. Ao Sol chamar “o astro”,
como se fosse o único no céu. Ao calor chamar calma. Viver com o Suão. Chamar
às planuras descampados. Cerros aos outeiros. À floresta arvoredo.
Olhar o horizonte e saber ter vagar. Dizer: estou à espera de
me ir embora. Declarar com solenidade: devagar que tenho pressa. Abalar no
comboio da Cuba. A Lisboa chamar aldeia grande. Ter parentes na Brandoa. São
coisas de alentejanos.
Estar de roda do lume. Sentar no chão para conversar. Parar
no largo ao olhinho do sol. Ter sempre a navalhinha petisqueira no bolso das
calças. Condutar o pão, o vinho e a vida. Beber só em companhia. Cantar quando
os outros também cantam. À seca chamar desgraça. Querer a barragem de Alqueva.
São coisas de alentejanos.
Porque sim!
Pedro Ferro, in Público, 9 de Outubro de 1995