Caminho de contrabandistas - Foto by José Coelho
(...)
Eu e a minha irmã mais velha fomos também contrabandistas ainda que em
pequena escala e por conta exclusiva dos nossos pais que nos mandavam levar
para Espanha certos produtos – 3 ou 4 dúzias ovos por exemplo – em troca de coisas que trazíamos na volta para
cá, essencialmente comida, latas de azeite, toucinho a
granel ou pão. Também uma boa parte dos enxovais das minhas irmãs – louças de
pirex, esmaltes, sertãs e outros utensílios de cozinha – vieram de Espanha por
essa via. Aos poucochinhos. Hoje trazíamos o tacho, para a semana a cafeteira,
depois a frigideira…
Porém,
os profissionais das madrugadas caminhavam curvados pelo peso de, no mínimo, 30
kg de carga, acompanhados sempre pelo receio de serem detetados pelos guardas
fiscais portugueses ou pelos carabineiros espanhóis. Com os olhos tinham que
vigiar o caminho e com os ouvidos escutar atentamente qualquer ruído que os
pudesse alertar da proximidade dos fardados para que não lhes saltassem ao
caminho, pois, se tal acontecesse, era largar a carga, desatar a fugir e
esconderem-se logo que pudessem. Perdiam o fôlego, perdiam a carga, perdiam a
jorna da noite, perdiam também o esforço de muitas horas de caminho. Mas outras
viriam! O que interessava era não se deixarem “ganfar” pelos guardas
porque seriam imediatamente presos e teriam problemas sérios.
Era
assim por todas estas aldeias e lugarejos da raia! Beirã, Cabril, Bica,
Pereiro, Barretos, Vales, Vale de Milho, Ranginha, Cabeçudos, Relva da
Asseiceira, Aires, Tapadão de Mato e muitos outros, porque nesse tempo era tudo
habitado onde quer que houvesse uma casinha, por mais isolado que fosse o
lugar. Ao escurecer formavam-se os grupos no local de encontro que só eles
sabiam, traçavam-se os percursos, vigiavam-se os movimentos dos guardas e
desaparecia-se na noite para se ganhar o preço previamente negociado. Assim que os mais novos tinham forças para “alombarem”
com as cargas e pernas para caminharem as longas distâncias, entravam para o
grupo. Era assim com eles, porque assim tinha sido com os seus pais e avós,
assim seria provavelmente também mais tarde com os seus filhos quando os
tivessem.
Mulheres
contrabandistas também as havia e muitas, se bem que com cargas mais leves. E também
elas atravessavam rios e ribeiros nas noites de chuva ou de bom tempo para
ajudarem no sustento das casas se fosse preciso. Muitas vezes vi a minha mãe e
as minhas tias enrolarem-se em peças da “pana” a que hoje chamamos bombazina
para assim passarem, debaixo da roupa, metro a metro, peças inteiras do tecido
que iam trazendo aos poucos das lojas do outro lado do rio, como a loja do
Batão, a do Bravo, ou a do Pinadas, e que assim eram fornecidas diretamente aos
alfaiates das aldeias para as transformarem em calças, casacos ou fatos
completos muito apreciados nesse tempo por serem mais quentes e durarem muito
mais tempo que os tecidos portugueses.
Vi também, com os dois olhos que Deus me deu e a terra irá comer, alguns vizinhos guardas fiscais e até alguns guardias-civis espanhóis também, a ajeitarem um quilo do café em grão “Guapa” em cada um dos bolsos laterais do casaco da sua farda, na loja do sr. João Batista e na loja da Ti Zabel, minutos antes de embarcarem nos comboios que iam patrulhar entre a estação da Beirã e a de Valência de Alcântara. Eles próprios faziam também contrabando – eu vi, como já afirmei, ninguém me contou – provavelmente porque os seus ordenados não seriam por aí além muito famosos.
Vi também, com os dois olhos que Deus me deu e a terra irá comer, alguns vizinhos guardas fiscais e até alguns guardias-civis espanhóis também, a ajeitarem um quilo do café em grão “Guapa” em cada um dos bolsos laterais do casaco da sua farda, na loja do sr. João Batista e na loja da Ti Zabel, minutos antes de embarcarem nos comboios que iam patrulhar entre a estação da Beirã e a de Valência de Alcântara. Eles próprios faziam também contrabando – eu vi, como já afirmei, ninguém me contou – provavelmente porque os seus ordenados não seriam por aí além muito famosos.
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Do Livro Histórias do Cota