quarta-feira, 27 de junho de 2018

Excertos...

Caminho de contrabandistas - Foto by José Coelho

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Eu e a minha irmã mais velha fomos também contrabandistas ainda que em pequena escala e por conta exclusiva dos nossos pais que nos mandavam levar para Espanha certos produtos – 3 ou 4 dúzias ovos por exemplo – em   troca de coisas que trazíamos na volta para cá, essencialmente comida, latas de azeite, toucinho a granel ou pão. Também uma boa parte dos enxovais das minhas irmãs – louças de pirex, esmaltes, sertãs e outros utensílios de cozinha – vieram de Espanha por essa via. Aos poucochinhos. Hoje trazíamos o tacho, para a semana a cafeteira, depois a frigideira…

Porém, os profissionais das madrugadas caminhavam curvados pelo peso de, no mínimo, 30 kg de carga, acompanhados sempre pelo receio de serem detetados pelos guardas fiscais portugueses ou pelos carabineiros espanhóis. Com os olhos tinham que vigiar o caminho e com os ouvidos escutar atentamente qualquer ruído que os pudesse alertar da proximidade dos fardados para que não lhes saltassem ao caminho, pois, se tal acontecesse, era largar a carga, desatar a fugir e esconderem-se logo que pudessem. Perdiam o fôlego, perdiam a carga, perdiam a jorna da noite, perdiam também o esforço de muitas horas de caminho. Mas outras viriam! O que interessava era não se deixarem “ganfar” pelos guardas porque seriam imediatamente presos e teriam problemas sérios.

Era assim por todas estas aldeias e lugarejos da raia! Beirã, Cabril, Bica, Pereiro, Barretos, Vales, Vale de Milho, Ranginha, Cabeçudos, Relva da Asseiceira, Aires, Tapadão de Mato e muitos outros, porque nesse tempo era tudo habitado onde quer que houvesse uma casinha, por mais isolado que fosse o lugar. Ao escurecer formavam-se os grupos no local de encontro que só eles sabiam, traçavam-se os percursos, vigiavam-se os movimentos dos guardas e desaparecia-se na noite para se ganhar o preço previamente negociado.  Assim que os mais novos tinham forças para “alombarem” com as cargas e pernas para caminharem as longas distâncias, entravam para o grupo. Era assim com eles, porque assim tinha sido com os seus pais e avós, assim seria provavelmente também mais tarde com os seus filhos quando os tivessem.

Mulheres contrabandistas também as havia e muitas, se bem que com cargas mais leves. E também elas atravessavam rios e ribeiros nas noites de chuva ou de bom tempo para ajudarem no sustento das casas se fosse preciso. Muitas vezes vi a minha mãe e as minhas tias enrolarem-se em peças da “pana” a que hoje chamamos bombazina para assim passarem, debaixo da roupa, metro a metro, peças inteiras do tecido que iam trazendo aos poucos das lojas do outro lado do rio, como a loja do Batão, a do Bravo, ou a do Pinadas, e que assim eram fornecidas diretamente aos alfaiates das aldeias para as transformarem em calças, casacos ou fatos completos muito apreciados nesse tempo por serem mais quentes e durarem muito mais tempo que os tecidos portugueses.

Vi também, com os dois olhos que Deus me deu e a terra irá comer, alguns vizinhos guardas fiscais e até alguns guardias-civis espanhóis também, a ajeitarem um quilo do café em grão “Guapa” em cada um dos bolsos laterais do casaco da sua farda, na loja do sr. João Batista e na loja da Ti Zabel, minutos antes de embarcarem nos comboios que iam patrulhar entre a estação da Beirã e a de Valência de Alcântara. Eles próprios faziam também contrabando – eu vi, como já afirmei, ninguém me contou – provavelmente porque os seus ordenados não seriam por aí além muito famosos.

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                                                               Do Livro Histórias do Cota