Como
não havia um pai presente em sua casa e a vida era muito complicada nesse
tempo, o António não possuía brinquedos como aliás eu também tinha poucos,
apesar de ter pai em casa, assim como a maior parte das crianças de
então, principalmente os filhos de camponeses pobres como nós. Porém, nesse ano pelo Natal, o padre Joaquim Caetano arranjou, não me lembro já muito bem como nem de onde, alguns brinquedos para serem distribuídos pelas crianças mais necessitadas que frequentavam a catequese. O António nunca lá punha os pés por ser um miúdo muito rebelde, por a catequista lhe não ser simpática, talvez também por ser um rapazote mais crescidito e com pretensões a sentir-se já dono do seu nariz.
Consequência
direta: o António não teve direito a receber nada, apesar de ainda andar na
escola.
Sucedeu porém que depois de todos os brinquedos distribuídos, sobraram
ainda alguns. E entre eles, uma pequena bola de borracha pouco maior do que uma
laranja, que o António cobiçava e lhe fazia brilhar os olhos. Primos e
amigos inseparáveis como éramos, aproveitei o acesso privilegiado que tinha a
tudo em redor do pároco por ser seu sacristão, peguei na bola sem dar cavaco a
ninguém e ofereci-lha de presente na ingénua esperança que ninguém fosse dar
por isso.
Feliz
da vida e em vez de esconder a irregular “oferta”, o sacana exibiu o troféu a
toda a gente numa atitude bacoca de desafio como que a dizer “não me deram nada mas já cá canta esta bola” originando que a notícia chegasse num ápice aos atentos ouvidos do
padre a quem não deve ter sido difícil somar um mais um para chegar à conclusão lógica
de como a bola fora parar às mãos daquele indomável rebeldezito que nunca punha
os cotos na catequese mas queria ter as
regalias dos outros que nunca faltavam.
Poucos dias depois lá fui eu “chamado
a capítulo”.
- Coelhinho, chega aqui – ordenou
o sacerdote com um ar muito carrancudo.
E a seguir perguntou a olhar-me
nos olhos, apontando para a caixa de papelão onde estavam os brinquedos que haviam sobrado:
- Onde está aquela bola verde que
estava aqui?
Não havia volta a dar...
E, numa secreta esperança de a
confissão reverter em meu benefício, respondi apavorado:
- Dei-a ao meu primo António!
- E com ordem de quem? Voltou ele
a inquirir…
- De ni-ninguém se-senhor pa-padre…
- Fo-foi só porque ele nã-não te-teve nenhum brin-brinquedo no Natal - tentei justificar acagaçado com o furibundo semicerrar de pálpebras do padre.
- Záááásss…
O estrepidoso e valente bofetão na minha face com aquela mãozorra aberta, até fez tinir o meu ouvido.
- Isto é para aprenderes a não
ser atrevido – vociferou...
(...)
José Coelho
Texto e imagem
(Excerto de "Santa Tapona" - pág. 29 - Histórias do Cota)