O comentário que uma distinta senhora amiga colocou numa foto feita cá casa em 24.12.2022 motivou-me para mais uma crónica acerca da nossa família, dos nossos afetos e das nossas celebrações tradicionais que infelizmente são cada vez menos participadas por tantas serem já na mesa, as cadeiras vazias.
O melhor espólio dos meus natais foi, é e continuará a ser, até que a minha memória o permita, a Família, por de todos eles me recordar e por em todos ter reinado sempre a harmonia, o amor fraterno, a alegria e esta união que foi passada de bisavós para os avós, dos avós para os pais e dos pais para nós, seus filhos.
Se hoje temos uma mesa de consoada requintada e farta, nem sempre foi assim. Noutros tempos as possibilidades eram diminutas e nós éramos tantos em volta da mesa que só lá cabiam os pratos, uma colher ou um garfo, os copos e os alguidares com a comida. As bebidas eram água do cântaro de barro para os mais pequenos e para as mulheres, um jarro com vinho comprado na taberna para os homens.
Foi toda a vida a Noite Maior da nossa família com exceção do ano 1967 pois nessa bendita noite o avô Faustino Coelho, pai do meu pai que conosco vivia, faleceu poucas horas depois de termos consoado todos na santa paz do Senhor.
Viúvo, cantoneiro reformado e com quase 80 anos, vivia sozinho em Castelo de Vide onde toda a sua vida morou. O seu filho mais novo, o tio Abílio Coelho vivia no Brasil, a filha do meio a tia Francisca Coelho, vivia em Angola, a filha mais velha, a tia Maria D’Alegria Coelho vivia em Lisboa. Perto dele, na Beirã e a escassos 12 quilómetros, vivia o seu filho primogénito, o António Coelho meu querido pai que compadecido da sua solidão foi buscá-lo para vir viver conosco o resto dos seus dias, precisamente no dia 24.12.1964, três exatos anos antes.
Há coisas inexplicáveis.
Passado o luto a família retomou o hábito de consoar como sempre tinha feito, não sem alguma tristeza a ensombrar os primeiros dois ou três anos seguintes porque o avô Faustino era um velhinho meigo, bondoso, muito nosso amigo e afeiçoámo-nos todos muito a ele. Tive de ceder-lhe a minha cama e passar a dormir num beliche no mesmo quarto porque não havia outro, mas convivemos sempre muito pacificamente. Cedo percebi de quem herdara o meu pai tanta doçura e bondade. Eram iguais.
O tempo passou.
Eu e as minhas irmãs crescemos, casámos e voámos do ninho. Mas todos os natais continuámos a reunirmo-nos na Casa-Mãe já com filhos ao colo a fazerem as delícias dos avós babados e muito mais agarrados aos netos do que tinham sido aos filhos, coisa que só entendemos quando mais tarde assumimos também o papel de avós dos nossos netos.
Porque saímos quatro mas passámos a entrar oito, combinámos logo uns com os outros que devíamos repartir todos os gastos.
E assim se fez sempre.
Um comprava o bacalhau, outro comprava as galinhas, o outro comprava as bebidas e a outra tomava conta dos doces. Para a tia Florinda ficavam só as filhoses porque levavam apenas farinha e óleo, já o patriarca António Coelho punha as belíssimas batatas e as couves tronchudas da sua grande horta. Partilhar, como sempre lhes vimos fazer, repartir despesas, porque a vida custava a todos.
O importante nunca foram as comidas, as bebidas ou os doces. Importante era estarmos todos juntos e felizes. Depois vinha a Avó Amélia e o Avô José Lourenço, algumas vezes algum irmão e cunhada da nossa mãe, esta ou aquela tia ou primo também.
Até uma senhora desconhecida com um bebé ao colo que foi apeada do comboio Lusitânia e deixada ao frio às cinco da manhã na Estação da Beirã por não ter o passaporte em ordem. Assim que soube disso, a Mãe Florinda foi ver dela à estação e trouxe-a para casa para lhes dar abrigo e alimento.
Nesta casa, embora pequena, coubemos sempre todos. Os de cá, ou quem por bem viesse.
Houve ainda outro Natal diferente mas do mesmo modo feliz. O de 1980.
Eu era já militar da GNR e não podia vir consoar à Beirã porque ia estar de serviço até às oito da noite. E depois no dia de Natal iria entrar novamente às duas da tarde.
A nossa casa, no Cipresteiro, em Castelo de Vide, era exígua. Uma pequena cozinha e uma salinha comum no rés-do-chão, um quarto de casal, outro pequeno quarto com mais uma cama e uma diminuta casa de banho no primeiro andar. Era nova, arranjadinha e bonita, mas pequena.
O que aconteceu então? Já que Maomé não podia ir à montanha, veio a montanha a Maomé. A família decidiu que iriamos mesmo consoar em Castelo de Vide.
E se bem pensaram, melhor o fizeram.
Quando eu cheguei do serviço, tinha a casa cheia como um ovo, as couves e o bacalhau a cozerem já no fogão e tudo encaminhado.
Uns comeram na mesa da sala, outros no sofá com um pano e o prato no colo e os copos na mesinha de apoio, outros sentados nos degraus da escada de acesso ao primeiro andar também com um pano de cozinha e o prato no colo. Só eu e a marida conseguíamos circular para os servir a todos.
E correu muito bem. Quando as pessoas querem, essas coisas boas acontecem.
Depois cada um regressou a sua casa do mesmo modo que tinham ido, porque louça e comida havia que chegasse para todos, mas camas e espaço para os acomodar era de todo impossível.
Foi giro, ninguém passou fome ou se queixou!
Por isso existem estas memórias deliciosas de uma família que foi sempre assim. Unida. Quem conheceu a minha mãe sabe quanto era bondosa, de sorriso fácil e genuíno. E o meu saudoso pai, único Amigo verdadeiro que tive na vida, sendo carrancudo como eu – gosto tanto de ser parecido com ele – era um doce de pessoa em bondade e honestidade.
Nunca se importaram com a vida dos outros porque nunca foram alcoviteiros. Viviam na sua casinha, faziam a sua vidinha, cumpriam as suas obrigações e eram estimados por toda a gente. Ainda hoje ouço dizer bem deles de vez em quando.
Por isso digo sempre que essa é a minha mais valiosa herança e todos os dias da minha vida agradeço. Foi o seu exemplo que me formou e incutiu este caráter, esta minha maneira de ser, de me comportar, de estar na vida.
Porque o que realmente importa mesmo são as pessoas e os afetos.
Tudo o resto é secundário.
Foto da Consoada de 2003