Um dos flagelos que atormentava os agricultores da zona de Nisa era a presença assídua de javalis selvagens que viviam no habitat seguro das extensas manchas florestais e matagais daquele Concelho e pela calada da noite invadiam searas, milheirais, várzeas, pomares e vinhas, para saciarem a fome derrotando extensas áreas de cultivo e causando enormes transtornos e prejuízos.
Eram incontáveis as queixas de quantos se dirigiam ao posto ou até me abordavam por ali nas minhas rondas aos campos, a solicitarem auxílio. Não só eu tentava elucidá-los sobre o caminho a seguir como também formalizava muitas dessas queixas por solicitação dos mesmos, elaborando os respetivos autos de notícia ou de denúncia que enviava à DGF.
Raramente obtinha qualquer resposta e a única solução ou pelo menos a mais fácil de todas era encaminhar os prejudicados para as associações de caçadores locais, para que, junto delas, vissem da possibilidade de as mesmas organizarem montarias na zona das suas explorações agrícolas a fim de dizimarem pelo menos alguns desses predadores da noite.
Foi na sequência desta situação que conheci um pacato e muito honesto pequeno agricultor da aldeia da Velada que tinha uma horta relativamente grande e muito bem tratada numa das clareiras da mata de eucaliptos nas cercanias da Estrada Nacional 10 que liga Nisa a Vila Velha de Ródão.
Passei por lá casualmente e fui encontrar o agricultor “montesinho” – em Nisa apelidam-se todas aquelas aldeias circundantes da sede do concelho, por “montes” e, consequentemente, os seus habitantes são os “montesinhos” – muito desolado porque os javalis lhe tinham destruído a horta.
Dei-lhe as indicações do costume e perguntei-lhe se queria apresentar denúncia para eu elaborar o respetivo auto, ao que o homem imediatamente acedeu. Tomei as necessárias notas, identifiquei-o e lá o deixei desolado com a devastação nas cebolas, nos pimentos no milho e nas abóboras.
Passou um mês ou talvez menos quando ele me apareceu no posto em pessoa solicitando-me que fizesse o favor de ir com ele à horta para ver com os meus próprios olhos a sua seara de trigo já meio madura completamente acamada e espezinhada. E lá fomos. O que vi era desolador! Até doía só de olhar… E o pobre “montesinho” quase chorava de frustração, enquanto ia dizendo:
- Ninguém quer saber dos pobres. Tanto trabalho perdido. Que vou eu fazer com uma coisa destas?
Penalizado e sem saber o que mais lhe dizer ou fazer, porquanto já tinha feito o que humanamente me era possível no sentido de o ajudar, murmurei, de mim para mim:
- Se isto fosse meu eu sei como resolvia! Uma espera todas as noites, limpava dois ou três javalis a tiro e calava-me muito bem caladinho como faz por aí muito boa gente, já que ninguém toma medidas para acudir a isto…
Regressei ao posto pouco depois algo indignado também pela inércia e apatia das entidades competentes, para ajudarem estas pessoas. Se fossem apanhados a matar um javali eram logo detidos e presentes ao juiz por ser uma espécie protegida por lei, porém, tinham de sujeitar-se a ficarem sem o fruto do seu trabalho de um ano inteiro pelo excesso de espécimes que se reproduziam às dezenas num só ano.
No dia seguinte, manhã cedo ainda estando eu a tomar o pequeno-almoço, alguém tocou a campainha.
Fui ver o que seria de tão urgente que nem podia esperar mais uns minutos pela minha hora normal. E lá estava o pacato agricultor com um saco ao ombro, a pedir para falar comigo.
- Desculpe de vir incomodar tão cedo, mas fiz o que o senhor disse que faria se fosse eu. Fiz uma espera aos javalis esta noite e matei dois a tiro. Para lhe agradecer venho trazer-lhe um bocado para o senhor comer com a sua família!
Não era costume em mim que nunca fui muito de me atrapalhar, mas aquilo deixou-me atónito, atarantado, pelo caricato da situação e ingenuidade do indivíduo. Embaraçado até mais não poder com a delicadeza daquele codilho, respondi antes de quase lhe fechar a porta na cara:
- Ó homem de Deus suma-se daqui com isso e não diga a ninguém nem o que me ouviu dizer, nem o que o senhor fez, ou ainda vamos os dois presos…
Consigo ainda imaginar a cara estupefata do “montesinho” para além também da divertidíssima expressão facial do plantão que obviamente percebeu o imbróglio!
E não há muito tempo que um dos meus grandes amigos da Velada me confidenciou entre risos que ainda hoje se divertem algumas vezes a recordar essa história que correu pelos “montes” e ficou célebre.
“E diz o sargento da guarda muito atrapalhado para o outro… Ó homem suma-se daqui com isso c’ainda vamos os dois presos…”
Foto da net - Desconheço o autor