quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Domingo e Família combinavam sempre tão bem



Em tempos ainda não muito distantes a grande mesa da nossa sala de jantar ficava tão rodeada de gente que as suas oito cadeiras nunca eram suficientes e tínhamos de acrescentar mesa e lugares para o dobro, às vezes mais.
E como era salutar e reconfortante esse convívio com todos os entes queridos.
Ainda assim, mesmo sendo já muito menos os comensais, um domingo sem alguma família cá em casa já nem parece domingo. Tento, a todo o custo, não deixar extinguir a tradição que herdei do senhor meu Pai de tão grata memória, a quem nada dava mais felicidade e alegria do que ter à sua volta o filho e as filhas, a nora e os genros, as netas e os netos e demais família, ainda que as suas posses fossem modestas e a comida não fosse, porque não podia mesmo ser, muito diferente do que era nos restantes dias da semana.
Legumes e frutos da horta, aves do galinheiro ou carnes do fumeiro e da salgadeira.
Importante porém e muito mais do que qualquer iguaria que se pusesse nos pratos para se comer, era mesmo o facto de estarmos juntos. Tudo o resto, com toda a certeza, estava sempre bom e era mais do que o suficiente. Foi nessa escola de valores e tão benéfica simplicidade que aprendi a priorizar mais o amor fraterno do que a qualquer outro bem material.
Foi também em razão desse implícito exemplo paterno que formei no meu espírito a certeza da importância vital que a união familiar pode ter na moldagem do carácter dos nossos filhos e netos, assim como na transmissão aos mesmos desses imprescindíveis valores e princípios fundamentais.
Porque, naturalmente, quem aprende a amar e a respeitar os seus, aprende também sem dificuldade a amar e a respeitar os outros.

Sei que é uma batalha em vias de extinção porque no atual conceito da vida em sociedade e para conseguirem fazer face às inúmeras despesas do dia-a-dia, os pais têm de trabalhar os dois. E isso veio alterar por completo os velhos preceitos da vivência familiar.
As crianças que antes eram criadas apenas na intimidade e conforto do seio familiar pelos pais e quase sempre também com a preciosa ajuda dos avós, são atualmente entregues aos cuidados de instituições públicas que têm pessoal devidamente qualificado para as acolher e delas cuidar desde muito tenra idade, mas, a meu ver, pouco ou nada têm de comum com o ancestral colinho dos pais e avós.
Inevitavelmente os mesmos motivos que levam à separação prematura de filhos e pais estendem-se depois aos avós que não podem já também contar com qualquer apoio dos filhos no limiar das suas vidas e têm de terminar os seus dias em instituições - infelizmente nem sempre qualificadas - que deles tratam, mas são também completamente diferentes do normal ambiente familiar.
É o que temos e há que aceitá-lo, concordemos ou não.
Ainda assim, enquanto puder, irei tentar manter aquilo que aprendi a esse respeito e tanto me enriqueceu com incontáveis momentos de felicidade, rodeado quase sempre por todos aqueles que incondicionalmente amei mas já partiram, que amo porque ainda os tenho e vou continuar a amar até ao último dia da minha vida.
Tenham, se puderem um tranquilo resto de semana.

Texto e foto

O hábito faz o monge

Ainda não foi acesa mas já está pronta para iniciar a sua função

 

Feita de encomenda e por medida em granito branco primorosamente esculpido por sábias mãos de uma célebre família de canteiros de Gáfete e tenha embora um ar algo mais fino, é tão eficiente como a sua rústica antecessora. E, tal como ela, nunca expeliu um bafo de fumo sequer, para fora da sua zona de combustão, por mais insignificante que fosse. Para certificá-lo basta observar as paredes da sala de uma brancura imaculada que seria impossível assim permanecerem se houvesse fugas indesejadas, por mínimas que fossem.
Herdei dos meus pais e avós este gosto pelo lume de chão ao vivo e ao natural. E estou convicto que os meus dois filhos o herdaram também, pois tal como o pai não o trocam por quaisquer outros aquecimentos mais modernos e menos geradores de cinzas ou sobrantes.
O hábito faz o monge? Talvez. O meu avô José (de quem herdei o nome) não dispensava sentar-se ao seu lume durante todo o outono e inverno, entrando até muitas vezes pela primavera dentro. E à minha avó Amélia, nunca lhe conheci fogão ou fogareiro, fosse a carvão, a petróleo ou a gás. Tudo o que cozinhava (e que comidinhas tão boas fazia) fosse inverno ou verão, era sempre e só em lume de chão a lenha, numa sertã ou nas panelas e caçarolas de barro.
Por seu lado, mal se mudou para a nossa casa aos 80 anos para viver conosco até ao fim da sua vida, o avô Faustino, pai do meu pai (não conheci a minha avó Adelina porque faleceu antes de eu a poder conhecer) imediatamente marcou, como território seu, o canto direito da nossa chaminé com o seu banquinho de madeira, já que o outro, o esquerdo, foi toda a vida o do dono da casa meu saudoso pai.
Um de um lado, outro do outro, não causavam, porém, qualquer problema, porque o espaço entre os dois era mais que suficiente para lá cabermos ainda todos, já que a chaminé ia de canto a canto da cozinha, tendo sido deixado apenas espaço para uma pequena despensa. Era aquela a zona vip da casa. Ali cozinhava a minha mãe todas as nossas refeições e ali se reunia a família todas as noites para se aquecer e confraternizar num harmonioso conforto e paz, geradores de uma felicidade genuína.
Assim aprendemos que para ser feliz não é preciso muito.
Quando cada um de nós, os quatro irmãos, constituímos as nossas famílias pelo matrimónio, levámos conosco, obviamente, aqueles hábitos simples e saudáveis. E mais tarde, os nossos filhos, também. Eu não troco o lume da lareira por nenhum outro aquecimento. Há lá melhor calorzinho que este? Assim que a gente entra em casa vindo do frio da rua é como que entra para o céu. Somos acolhidos por um ambiente tão confortável e naturalmente aquecido, que é capaz de revigorar qualquer espírito por mais gelado que venha.
Os meus filhos, idem. O Pedro com a esposa e a filha vivem num agradável apartamento na cidade, mas têm também na sala uma excelente lareira aberta com lume de chão não muito diferente da minha, que acendem diariamente durante todo o inverno. E o filho Manel idem, pese embora a dele seja fechada com estufa de vidro, daquelas que aproveita o calor da combustão e o ventila para a sala e para os quartos no primeiro andar, aquecendo assim toda a casa.
O lume aceso na lareira e a chaminé da casa a fumegar ao vento é algo que habita a minha memória e me transporta inevitavelmente ao tempo e aos costumes com que me criei, cresci e fiz homem porque todos os lares habitados eram aquecidos com lareiras acesas, cujo odor se difundia pela aldeia inteira fervilhante de gente e vida.
Cheirava a famílias, quase todas numerosas.
Embora essa realidade aos poucos se tenha praticamente extinguido, significa para mim, entre muitas outras coisas, o que vivi. A saudade imensa de um tempo que se foi. Dos vizinhos, amigos e conterrâneos que fizeram parte do que hoje sou. E, mais do que qualquer outro sentimento, significa inevitavelmente a minha família que já partiu.
Infelizmente já são muitos mais os que faltam do que os que ainda restamos.
Quando olho para o fumo branco que sai da minha chaminé em cada inverno, peço-lhe sempre que suba até conseguir chegar ao céu e lhes entregue a minha saudade junto com o infinito amor que continuo a sentir por todos eles.

José Coelho
Texto e foto

domingo, 27 de outubro de 2024

Gente a sério

Foto Pedro Coelho

Amo gente digna. Não falo de gente sem pecados, nem isenta de erros. Falo de gente limpa de coração, que nos trata com verdade e respeito, que pensa no outro e não trata a vida de ninguém com leviandade. Gente de caráter, gente honesta e leal. Gente em que posso confiar de olhos fechados. Que sorri sem falsidade e vejo nos seus olhos que fica feliz com minha felicidade. Gente que sabe ser companheira. Amo e como amo gente que entende o que é dignidade.
*Rachel Carvalho*

O povo é sábio


Não me importa de quem fala
nem de quem de mim falou.
Quem fala fica quem é,
eu fico sempre quem sou.
Cancioneiro popular de Alpalhão
(Recolha de Mário Mendes)

A Senhora de (quase todos) os Beiranenses


Eucaristia Vespertina do XXX Domingo do Tempo Comum na Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Carmo. 

Foto José Coelho - 26. 10. 2024 — em Beirã.

Irremediavelmente

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Bom fim de semana

Foto José Coelho

Nunca te esqueças de olhar em volta por mais apressados que sejam os teus dias. O mundo tem belezas ímpares e por vezes andamos tão embrenhados em pensamentos inúteis, em preocupações, em angústias, que nos esquecemos de apreciar as coisas belas da vida. 

Não é o pôr-do-sol que vai terminar com os nossos problemas, é certo. Mas quando foi a última vez que paraste para o ver? É um espetáculo tão belo que pode, pelo menos, colocar um sorriso no teu rosto por breves instantes. 

Quando foi a última vez que paraste para brincar com uma criança? São tão puras e sinceras que o seu sorriso pode fazer-nos acreditar que vale a pena viver. 

Quando foi a última vez que te sentaste na relva e descalças-te os sapatos? Ou que caminhaste descalço à beira-mar? 

Não tens tempo, dizes tu... Mas basta um minuto para te sentires renovado.

Se não tirares um minuto por dia para olhar em volta e apreciar as coisas simples e belas deste mundo, todos os problemas te parecerão maiores. Se tirares um minuto, não estarás a perder tempo: estarás a deixar a tua alma respirar.

Às vezes deixamos as coisas para amanhã porque hoje estamos demasiado ocupados a resolver problemas... 

Quem nos garante que o amanhã chegará? 

Aproveita o hoje. Não vivas apenas. 

Aproveita a vida. 

E aproveita cada minuto da companhia dos que estão contigo.


Nami - Palavras feitas de vento

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Obrigado, Vida



Caminho agora já muito menos, principalmente pelos ermos onde não passa ninguém durante meses, anos talvez, porque não é seguro nem recomendável andar sozinho por lugares desabitados e tão longínquos aos 70 e tal anos a saltar paredes, a subir e descer calhaus, a furar por baixo do mato para conseguir avançar. 

Um pé mal posto, uma queda imprevista, sei lá... 

Dizia a minha prudente mãe que "à má hora, não ladram cães", o que queria dizer que as coisas ruins nunca avisam antes de acontecer e por isso mais vale prevenir.

Mas tenho saudades. 

Dos ciclópicos amontoados graníticos que se sucedem uns após outros até à linha do horizonte. Dos sobreiros e giestais que tantas vezes me acolhiam no seu silêncio cúmplice para ouvirem os meus desabafos sempre que precisei. 

Porque esses lugares  eram o cofre seguro dos meus mais íntimos segredos, de lá voltei para casa sempre com o coração em paz.

Bastava-me apenas ficar atento ao sussurro das folhas dos sobreiros a serem tocadas pela suave brisa dos entardeceres, ao tranquilo arrulhar das rolas bravas, ao monótono canto do cuco e da poupa, ao afinado gorjeio dos rouxinóis que ainda continuam a morar nas orlas frescas do Ribeiro da Cavalinha e na Fonte da Murta.

A vida tem princípio e fim. Sei, tenho consciência, que o meu tempo, agilidade, força, energia e capacidades, estão a diminuir a cada dia que passa. Não fui tão feliz quanto desejei, mas fui feliz o suficiente para afirmar que valeu a pena ter nascido. 

Não tive tudo quanto quis e precisava ter, mas tive o suficiente para olhar hoje para trás e dizer com absoluta serenidade: 

- Obrigado Vida! 

Como toda a gente, tive bom e tive mau. Como toda a gente, ri quando fui feliz, chorei quando algo ou alguém me maltrataram. Como (quase) toda a gente tentei sempre não prejudicar ninguém, não ter inveja do que os outros tinham e eu não podia ter, ajudei em tudo o que esteve ao meu alcance quem me pediu ajuda, ou voluntariamente quando foi necessário.

Ajudei até, tomem nota, quem não merecia e nunca mereceu. Mas como essas pessoas não trazem escrito na testa que não prestam, agi de boa fé.  

E sim, escrevi propositadamente entre parêntesis (quase) porque sempre conheci e continuo a conhecer ainda hoje, pessoas velhacas que vivem para infernizar a vida de outras pessoas, são invejosas, mentem, enganam, vigarizam e ofendem até mãe e pai se preciso for.

Humano que sou, errei também, sim. Tantas vezes! Mas com toda a certeza, nunca o fiz com intenção deliberada de prejudicar, magoar, ofender ou maltratar fosse quem fosse. E pedi desculpas sempre que foi necessário, assim como emendei esses erros sempre que pude e foi possível emendá-los.

Resumindo:

Tive apenas o que pude e consegui ter, aceitei e agradeci sempre o que me foi concedido, mas nunca, nunca, nunca, deixei de lutar nem de sonhar que iria ser capaz de alcançar mais e melhor. 

E fui...


José Coelho 
Texto e foto

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Sejam felizes

Atento, descontraído e em paz, no meu canto!

Não foi boa ideia pensar em voz alta


Um dos flagelos que atormentava os agricultores da zona de Nisa era a presença assídua de javalis selvagens que viviam no habitat seguro das extensas manchas florestais e matagais daquele Concelho e pela calada da noite invadiam searas, milheirais, várzeas, pomares e vinhas, para saciarem a fome derrotando extensas áreas de cultivo e causando enormes transtornos e prejuízos.

Eram incontáveis as queixas de quantos se dirigiam ao posto ou até me abordavam por ali nas minhas rondas aos campos, a solicitarem auxílio. Não só eu tentava elucidá-los sobre o caminho a seguir como também formalizava muitas dessas queixas por solicitação dos mesmos, elaborando os respetivos autos de notícia ou de denúncia que enviava à DGF.

Raramente obtinha qualquer resposta e a única solução ou pelo menos a mais fácil de todas era encaminhar os prejudicados para as associações de caçadores locais, para que, junto delas, vissem da possibilidade de as mesmas organizarem montarias na zona das suas explorações agrícolas a fim de dizimarem pelo menos alguns desses predadores da noite.
Foi na sequência desta situação que conheci um pacato e muito honesto pequeno agricultor da aldeia da Velada que tinha uma horta relativamente grande e muito bem tratada numa das clareiras da mata de eucaliptos nas cercanias da Estrada Nacional 10 que liga Nisa a Vila Velha de Ródão.
Passei por lá casualmente e fui encontrar o agricultor “montesinho” – em Nisa apelidam-se todas aquelas aldeias circundantes da sede do concelho, por “montes” e, consequentemente, os seus habitantes são os “montesinhos” – muito desolado porque os javalis lhe tinham destruído a horta.
Dei-lhe as indicações do costume e perguntei-lhe se queria apresentar denúncia para eu elaborar o respetivo auto, ao que o homem imediatamente acedeu. Tomei as necessárias notas, identifiquei-o e lá o deixei desolado com a devastação nas cebolas, nos pimentos no milho e nas abóboras.
Passou um mês ou talvez menos quando ele me apareceu no posto em pessoa solicitando-me que fizesse o favor de ir com ele à horta para ver com os meus próprios olhos a sua seara de trigo já meio madura completamente acamada e espezinhada. E lá fomos. O que vi era desolador! Até doía só de olhar… E o pobre “montesinho” quase chorava de frustração, enquanto ia dizendo:
- Ninguém quer saber dos pobres. Tanto trabalho perdido. Que vou eu fazer com uma coisa destas?
Penalizado e sem saber o que mais lhe dizer ou fazer, porquanto já tinha feito o que humanamente me era possível no sentido de o ajudar, murmurei, de mim para mim:
- Se isto fosse meu eu sei como resolvia! Uma espera todas as noites, limpava dois ou três javalis a tiro e calava-me muito bem caladinho como faz por aí muito boa gente, já que ninguém toma medidas para acudir a isto…
Regressei ao posto pouco depois algo indignado também pela inércia e apatia das entidades competentes, para ajudarem estas pessoas. Se fossem apanhados a matar um javali eram logo detidos e presentes ao juiz por ser uma espécie protegida por lei, porém, tinham de sujeitar-se a ficarem sem o fruto do seu trabalho de um ano inteiro pelo excesso de espécimes que se reproduziam às dezenas num só ano.
No dia seguinte, manhã cedo ainda estando eu a tomar o pequeno-almoço, alguém tocou a campainha.
Fui ver o que seria de tão urgente que nem podia esperar mais uns minutos pela minha hora normal. E lá estava o pacato agricultor com um saco ao ombro, a pedir para falar comigo.
- Desculpe de vir incomodar tão cedo, mas fiz o que o senhor disse que faria se fosse eu. Fiz uma espera aos javalis esta noite e matei dois a tiro. Para lhe agradecer venho trazer-lhe um bocado para o senhor comer com a sua família!
Não era costume em mim que nunca fui muito de me atrapalhar, mas aquilo deixou-me atónito, atarantado, pelo caricato da situação e ingenuidade do indivíduo. Embaraçado até mais não poder com a delicadeza daquele codilho, respondi antes de quase lhe fechar a porta na cara:
- Ó homem de Deus suma-se daqui com isso e não diga a ninguém nem o que me ouviu dizer, nem o que o senhor fez, ou ainda vamos os dois presos…
Consigo ainda imaginar a cara estupefata do “montesinho” para além também da divertidíssima expressão facial do plantão que obviamente percebeu o imbróglio!
E não há muito tempo que um dos meus grandes amigos da Velada me confidenciou entre risos que ainda hoje se divertem algumas vezes a recordar essa história que correu pelos “montes” e ficou célebre.
“E diz o sargento da guarda muito atrapalhado para o outro… Ó homem suma-se daqui com isso c’ainda vamos os dois presos…”

José Coelho in Histórias do Cota
Foto da net - Desconheço o autor

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo

SALMO RESPONSORIAL DO XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM

Regresso ao meu aconchego

A Escola Primária que recebeu o meu filho mais velho em 1985
Atualmente é a Biblioteca Municipal de Nisa
Foto José Coelho


Terminado em junho de 1985 o Curso de Promoção de Sargentos, o regresso a casa foi, como não podia deixar de ser, uma alegria. Os filhos tinham crescido imenso e eram agora já dois homenzinhos à minha espera para fazermos os passeios de que tanto gostávamos a pé pelos subúrbios da vila quando eu tinha tempo livre.

Sabia tão bem sentir-me definitivamente junto deles! A mais ninguém podia dedicar o sucesso alcançado senão àqueles dois pequenitos, pois fora sempre a pensar neles que arranjara forças para superar o desânimo motivado quase sempre por serem tão limitadas as minhas habilitações literárias e os currículos dos cursos tão complexos.
Passados os cinco dias de fim de curso concedidos pelo Exmº Comandante-Geral da GNR, regressei ao posto a que pertencia onde permaneci algumas semanas até à promoção a segundo-sargento para a consequente nova colocação. Sentia-me a mais afortunada das criaturas.
Não me amedrontava o futuro. Durante os três anos de formação tinha-me dedicado e aprendido muito, aproveitado cada conselho recebido, cada ensinamento ministrado e estava mentalmente disposto a segui-los na íntegra.
Também não me envaideci com alguns elogios que por ali ia agora ouvindo vindos principalmente de quem antes me tinha algumas vezes dificultado a vida, prova mais que evidente do cinismo oportunista de algumas pessoas que infelizmente existem em todos os lugares e em todas as profissões.
Devo esclarecer que tratava com particular deferência aqueles de quem porventura tinha algumas razões de queixa porque entendia ser essa era a melhor forma de lhes fazer perceber o quanto éramos diferentes. Os amigos quando o são, não precisam de graxa. E a vingança é uma arma que repudio e nunca utilizei na minha vida. Posso afirmá-lo de consciência tranquila.
Entretanto as minhas relações pessoais com as autoridades civis foram sempre de mútuo respeito e completa disponibilidade. No jantar que ofereci quando fui promovido, o ilustre senhor presidente da câmara – figura muito conhecida e estimada ainda hoje na Vila – disse-me alto e em bom som, perante todos os convidados presentes, que no dia seguinte ia a Lisboa tratar de assuntos da câmara ao Ministério da Administração Interna, mas esperava trazer de lá também a garantia da minha colocação no comando do posto de Castelo de Vide.
Embora não lhe tivesse podido dizer logo ali, por ser um assunto de serviço reservado e restrito apenas ao meu conhecimento, tal não iria acontecer, porque os planos do comando territorial de Portalegre eram outros, conforme já me tinha sido dado conhecimento e alguns dias depois se verificou.
Sabia que ficaria colocado na Companhia de Portalegre por ter conseguido a segunda melhor classificação desta subunidade, uma vez que o terceiro classificado já fora transferido para Lisboa em virtude de só haver duas vagas a preencher na nossa zona. Avis e Nisa.
Poucos dias depois fui convocado para receber a guia de marcha para a nova colocação como comandante de posto. E tive a sorte de me acompanhar o bom camarada e amigo classificado em primeiro lugar que imediatamente me concedeu o privilégio de poder escolher o posto que melhor jeito me desse, pois em virtude de ele ser solteiro não lhe fazia qualquer diferença ir para um ou para o outro.
Esse camarada foi o meu companheiro de carteira durante os três anos que frequentámos os dois cursos, primeiro no de cabos, depois no de sargentos. Por isso não tenho qualquer dúvida que fui para Nisa graças à sua generosidade que reconhecidamente agradeci e nunca mais esqueci, porque sabendo que eu era casado e tinha dois filhos pequenos entendeu e bem, que seria muito mais fácil a minha família adaptar-se mais perto da nossa família.
E lá fomos os quatro, com o coração cheio de esperança e boas intenções ao encontro da nossa nova vida na bonita vila de Nisa terra bordada de encantos, onde a população nos acolheu e tratou desde a primeira hora e até ao último dia, como se fôssemos Nisorros. Foram as melhores pessoas que tivemos o privilégio de conhecer em toda a nossa vida. Inquestionavelmente. Trinta anos passados ainda lá temos queridas e boas amizades…

José Coelho In Histórias do Cota
(Excerto)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Consciência tranquila


Maduro o suficiente para não guardar rancor, mas com uma memória excelente para não esquecer.

Foto Pedro Coelho
- 25. 05. 2024

Quando o outono venha, procura lenha


Segunda entrega de combustível para o aquecimento do nosso inverno. É tão natural que até aquece duas vezes! Já tenho com que me entreter...

domingo, 20 de outubro de 2024


Tristes são as pessoas que celebram as derrotas dos outros, porque não têm nenhuma vitória de que possam orgulhar-se.

Foto José Coelho

sábado, 19 de outubro de 2024

O que importa (mesmo) são as pessoas


O comentário que uma distinta senhora amiga colocou numa foto feita cá casa em 24.12.2022 motivou-me para mais uma crónica acerca da nossa família, dos nossos afetos e das nossas celebrações tradicionais que infelizmente são cada vez menos participadas por tantas serem já na mesa, as cadeiras vazias.
O melhor espólio dos meus natais foi, é e continuará a ser, até que a minha memória o permita, a Família, por de todos eles me recordar e por em todos ter reinado sempre a harmonia, o amor fraterno, a alegria e esta união que foi passada de bisavós para os avós, dos avós para os pais e dos pais para nós, seus filhos.
Se hoje temos uma mesa de consoada requintada e farta, nem sempre foi assim. Noutros tempos as possibilidades eram diminutas e nós éramos tantos em volta da mesa que só lá cabiam os pratos, uma colher ou um garfo, os copos e os alguidares com a comida. As bebidas eram água do cântaro de barro para os mais pequenos e para as mulheres, um jarro com vinho comprado na taberna para os homens.
Foi toda a vida a Noite Maior da nossa família com exceção do ano 1967 pois nessa bendita noite o avô Faustino Coelho, pai do meu pai que conosco vivia, faleceu poucas horas depois de termos consoado todos na santa paz do Senhor.
Viúvo, cantoneiro reformado e com quase 80 anos, vivia sozinho em Castelo de Vide onde toda a sua vida morou. O seu filho mais novo, o tio Abílio Coelho vivia no Brasil, a filha do meio a tia Francisca Coelho, vivia em Angola, a filha mais velha, a tia Maria D’Alegria Coelho vivia em Lisboa. Perto dele, na Beirã e a escassos 12 quilómetros, vivia o seu filho primogénito, o António Coelho meu querido pai que compadecido da sua solidão foi buscá-lo para vir viver conosco o resto dos seus dias, precisamente no dia 24.12.1964, três exatos anos antes.
Há coisas inexplicáveis.
Passado o luto a família retomou o hábito de consoar como sempre tinha feito, não sem alguma tristeza a ensombrar os primeiros dois ou três anos seguintes porque o avô Faustino era um velhinho meigo, bondoso, muito nosso amigo e afeiçoámo-nos todos muito a ele. Tive de ceder-lhe a minha cama e passar a dormir num beliche no mesmo quarto porque não havia outro, mas convivemos sempre muito pacificamente. Cedo percebi de quem herdara o meu pai tanta doçura e bondade. Eram iguais.
O tempo passou.
Eu e as minhas irmãs crescemos, casámos e voámos do ninho. Mas todos os natais continuámos a reunirmo-nos na Casa-Mãe já com filhos ao colo a fazerem as delícias dos avós babados e muito mais agarrados aos netos do que tinham sido aos filhos, coisa que só entendemos quando mais tarde assumimos também o papel de avós dos nossos netos.
Porque saímos quatro mas passámos a entrar oito, combinámos logo uns com os outros que devíamos repartir todos os gastos.
E assim se fez sempre.
Um comprava o bacalhau, outro comprava as galinhas, o outro comprava as bebidas e a outra tomava conta dos doces. Para a tia Florinda ficavam só as filhoses porque levavam apenas farinha e óleo, já o patriarca António Coelho punha as belíssimas batatas e as couves tronchudas da sua grande horta. Partilhar, como sempre lhes vimos fazer, repartir despesas, porque a vida custava a todos.
O importante nunca foram as comidas, as bebidas ou os doces. Importante era estarmos todos juntos e felizes. Depois vinha a Avó Amélia e o Avô José Lourenço, algumas vezes algum irmão e cunhada da nossa mãe, esta ou aquela tia ou primo também.
Até uma senhora desconhecida com um bebé ao colo que foi apeada do comboio Lusitânia e deixada ao frio às cinco da manhã na Estação da Beirã por não ter o passaporte em ordem. Assim que soube disso, a Mãe Florinda foi ver dela à estação e trouxe-a para casa para lhes dar abrigo e alimento.
Nesta casa, embora pequena, coubemos sempre todos. Os de cá, ou quem por bem viesse.
Houve ainda outro Natal diferente mas do mesmo modo feliz. O de 1980.
Eu era já militar da GNR e não podia vir consoar à Beirã porque ia estar de serviço até às oito da noite. E depois no dia de Natal iria entrar novamente às duas da tarde.
A nossa casa, no Cipresteiro, em Castelo de Vide, era exígua. Uma pequena cozinha e uma salinha comum no rés-do-chão, um quarto de casal, outro pequeno quarto com mais uma cama e uma diminuta casa de banho no primeiro andar. Era nova, arranjadinha e bonita, mas pequena.
O que aconteceu então? Já que Maomé não podia ir à montanha, veio a montanha a Maomé. A família decidiu que iriamos mesmo consoar em Castelo de Vide.
E se bem pensaram, melhor o fizeram.
Quando eu cheguei do serviço, tinha a casa cheia como um ovo, as couves e o bacalhau a cozerem já no fogão e tudo encaminhado.
Uns comeram na mesa da sala, outros no sofá com um pano e o prato no colo e os copos na mesinha de apoio, outros sentados nos degraus da escada de acesso ao primeiro andar também com um pano de cozinha e o prato no colo. Só eu e a marida conseguíamos circular para os servir a todos.
E correu muito bem. Quando as pessoas querem, essas coisas boas acontecem.
Depois cada um regressou a sua casa do mesmo modo que tinham ido, porque louça e comida havia que chegasse para todos, mas camas e espaço para os acomodar era de todo impossível.
Foi giro, ninguém passou fome ou se queixou!
Por isso existem estas memórias deliciosas de uma família que foi sempre assim. Unida. Quem conheceu a minha mãe sabe quanto era bondosa, de sorriso fácil e genuíno. E o meu saudoso pai, único Amigo verdadeiro que tive na vida, sendo carrancudo como eu – gosto tanto de ser parecido com ele – era um doce de pessoa em bondade e honestidade.
Nunca se importaram com a vida dos outros porque nunca foram alcoviteiros. Viviam na sua casinha, faziam a sua vidinha, cumpriam as suas obrigações e eram estimados por toda a gente. Ainda hoje ouço dizer bem deles de vez em quando.
Por isso digo sempre que essa é a minha mais valiosa herança e todos os dias da minha vida agradeço. Foi o seu exemplo que me formou e incutiu este caráter, esta minha maneira de ser, de me comportar, de estar na vida.
Porque o que realmente importa mesmo são as pessoas e os afetos.
Tudo o resto é secundário.
Foto da Consoada de 2003