terça-feira, 2 de julho de 2019

Meu vício de ler...

Lírio selvagem - Foto José Coelho


SAUDADE


Tu és o cálix;
Eu, o orvalho!
Se me não vales,
Eu o que valho?

Eu se em ti caio
E me acolheste
Torno-me um raio
De luz celeste!

Tu és o colo
Onde me embalo,
E acho consolo,
Mimo e regalo:

A folha curva
Que se aljofara,
Não d'agua turva,
Mas d'agua clara!

Quando me passa
Essa existência,
Que é toda graça,
Toda inocência,

Além da raia
D'este horizonte
Sem uma faia,
Sem uma fonte;

O passarinho
Não se consome
Mais no seu ninho
De frio e fome,

Se ela se ausenta,
A boa amiga,
Ah! que o sustenta
E que o abriga!

Sinto umas mágoas
Que se confundem
Com as que as águas
Do mar infundem!

E quem um dia
Passou os mares
É que avalia
Esses pesares!

Só quem lá anda
Sem achar onde
Sequer expanda
A dor que esconde;

Longe do berço,
Morrendo á mingua,
Pais diverso...
Diversa língua...

Esse é que sabe
O meu tormento,
Mal se me acabe
Aquele alento!

Ah, nuvem branca
Ah, nuvem d'oiro!
Ninguém me estanca
Amargo choro;

E assim que passes
Mesmo de largo...
Vê n'estas faces
Se há pranto amargo.

Tu és o norte
Que me desvias
De ir dar á morte
Todos os dias;

A larga fita
Que d'alto monte
Cerca e limita
O horizonte!

Tu és a praia
Que eu solicito!
Tu és a raia
D'este infinito!

Se ha uma gruta
Onde me esconda
Á força bruta
Que traz a onda;

Á força imensa
D'esta corrente
D'alma que pensa,
Alma que sente;

Se há uma vela,
Se há uma aragem,
Se há uma estrela,
N'esta viagem...

É quem eu amo,
A quem adoro!
E por quem chamo!
E por quem choro!


João de Deus, in 'Ramo de Flores'