quarta-feira, 10 de julho de 2019

A Festa da Beirã (ou festa do pau caiado)...

Programa original digitalizado por mim

Com data fixa a 16 de julho de cada ano, a sua preparação começava a bulir logo nos fins de maio, princípios de junho. A Comissão de Festas composta por um punhado de pessoas de todas as forças vivas da terra, CP, Alfândega, Despachantes Oficiais e seus respectivos colaboradores, comerciantes e trabalhadores rurais, quase todos transitados dos anos anteriores e acrescida esporadicamente por um ou outro novo elemento, convocava as reuniões preparatórias na Sociedade Recreativa para se debater o programa da festa e distribuir as diversas actividades por grupos de pessoas como o peditório para festa e para quermesse por todos os povoados vizinhos, quem iria tratar da ornamentação das ruas, da montagem do palco, quermesse e bar no recinto da festa, etc, etc.. 

Iniciava-se desde logo a feitura de centenas de rifas e de bandeirinhas de papel colorido coladas depois em novelos de cordel com uma massa de farinha e água e que depois de secas eram enroladas nuns grandes pedaços de cartão. Dezenas de postes de madeira de pinho guardados todo o ano no “casão dos Vivas” eram transportados pouco a pouco para as ruas para serem caiados pelas senhoras um a um a pincel com cal branca, matéria barata e abundante nas caleiras da Escusa. Daí nasceu o “apelido” de “festa do pau caiado” que dava jus a muitas piadas carregadas de brejeirice entre a rapaziada moça do burgo e arredores. 

À medida que iam ficando prontos, os paus imaculadamente brancos eram cravados de x em x metros nos dois lados das ruas principais da aldeia previamente ornamentados já com duas bandeirolas de pano, azuis e brancas. Depois eram pregadas em zigue-zague as tais centenas de metros de cordel com bandeirinhas coloridas de papel, intercaladas por miríades de lâmpadas elétricas que davam à aldeia um ar solene de traje de gala.

Havia ainda também algumas faixas de pano branco com frases litúrgicas - Bendita És Tu entre as mulheres, ou outras - pelas ruas por onde iria passar a Senhora do Carmo no seu imponente andor todo coberto de flores naturais e iluminado por quatro portentosos candelabros eléctricos ligados a uma bateria e carregado em ombros por oito homens de cada vez que se iam revezando por outros tantos à vez. Era uma das maiores festas do concelho, equiparada ao S. Marcos de Santo António das Areias em 25 de Abril e à Senhora da Estrela, Padroeira do Concelho de Marvão, em 8 de Setembro.

As décadas de 50 e 60 foram as duas décadas de ouro da Beirã em termos de população, emprego e actividade comercial. Era uma comunidade muito viva e quase auto-suficiente com um mercado semanal à segunda-feira onde se vendia de tudo. Produtos frescos das hortas e pomares, aves vivas e ovos, enchidos e queijos caseiros de altíssima qualidade. Ah! E o leite de vaca ou de cabra era fresco, diário, em vários pontos de venda. De todos os lugares da freguesia vinham hortelãos vender os produtos das suas hortas e frutas, assim como alguns feirantes vinham também vender roupas e calçado nas suas carrinhas.

Além deste mercado semanal havia ainda o diverso comércio local com cinco ou seis tabernas-mercearias, dois talhos, uma padaria, dois alfaiates, dois barbeiros, um carpinteiro, mestres-de-obras, um restaurante, duas pensões, a Loja Grande que era uma espécie dos actuais mini-mercados onde se vendia de tudo, duas escolas – uma para os rapazes outra para as raparigas – um cartório do Registo Civil, uma Sociedade Recreativa onde quase todas as semanas havia bailes e cinema na grande sala de espectáculos e na qual também se podia assistir tranquilamente às emissões diárias da RTP.

Havia ainda um Clube Recreativo semi-privado só acessível a sócios com quotas pagas em dia e que eram seleccionados/aprovados pela direcção do mesmo após requererem a sua inscrição. Era o “Clube dos ricos” como comummente se comentava entre a malta “menos rica”. Nesse tempo a Beirã era talvez uma das aldeias mais emblemáticas e desenvolvidas do Concelho de Marvão. O intenso tráfego ferroviário de mercadorias e passageiros entre Portugal e Espanha e vice-versa, promoviam todo esse desenvolvimento.

A sua população, em virtude dos inúmeros Serviços que aqui tinham sede – ferroviários, pessoal aduaneiro, guarda-fiscal, Pide/DGS, despachantes oficiais e seus colaboradores – era oriunda um pouco de todos os cantos de Portugal. Havia gente das Beiras, do Minho e Trás-os-Montes, do Douro, do Baixo e Alto Alentejo e do Algarve. Aqui colocados em serviço, aqui se estabeleciam e aqui nasceram muitos dos seus filhos que depois aqui cresceram, frequentaram a escola e catequese em saudável convivência e vizinhança com os Beiranenses de todas as classes sociais dos quais passavam, sem qualquer dificuldade, a fazer parte.

O Dia Maior da Beirã foi e tem sido até hoje, o Dia da sua Padroeira. Em 2019 como em 2009, 1999, 1989, 1979, 1969 e 1959 – ou seja desde que me conheço – a Beirã chama a si, neste dia, muitos dos seus filhos, onde quer que se encontram. E é inexplicável, especialmente agora que somos por cá já tão poucos a morar e a ir à missa, como no Dia da Padroeira a igreja se enche por completo. Filhos da Senhora que vivem longe e só cá vêm no Seu dia. Ao cair da noite então, a procissão junta ainda mais e mais gente. É um enigma que nunca consegui entender. Amor de filhos? Fé? Saudades? Não sei...

Quando há pouco tempo referi numa reunião de trabalho que a nossa festa foi outrora conhecida entre os locais como “a festa do pau caiado” vi olhares e expressões de surpresa de todas as pessoas que me ouviam, tendo algumas afirmado inclusive que nunca haviam ouvido falar de tal coisa. Mas era assim mesmo. Amo a minha aldeia na sua mais pura essência e há coisas que jamais conseguirei esquecer enquanto viver. Haverá certamente gente do meu tempo e até mais velha que eu, que se lembrará com certeza disso e poderá corroborar a minha explicação que nada tem de extraordinário pese embora a inocente brejeirice popular então associada ao “pau caiado”.

Para terminar e queiram perdoar-me a imodestia já algumas vezes dei o meu contributo pessoal para ajudar na angariação de verbas necessárias para as consequentes despesas que qualquer evento dessa natureza envolve. Brincadeiras sem importância mas com o empenho de muita gente que deu o seu melhor para levarmos a cabo uns serões muito bem dispostos, já que tristezas não pagam dívidas. Publico um dos programas que guardo carinhosamente de uma dessas aventuras em jeito de recordação, assim como guardo também os originais dos textos então por mim escritos à mão porque não tinha máquina para dactilografar.

Bons tempos. Boas recordações. Gente do melhor. Beiranenses puros e generosos que não tinham complexos de se mascarar de personagens hilariantes para divertir uma plateia inteira de atentos e bem-dispostos conterrâneos. Muitos deles vão com certeza ler estas letras. A todos envio um grande abraço com estima e consideração. E só não refiro nomes porque alguns já não estão entre nós, infelizmente. E também porque éramos tantos que receio por esquecimento não mencionar alguém. Os que lá estivemos sabemos quem fomos. Hoje seria mais complicado fazê-lo porque já não existe na Beirã nenhuma sala para tais eventos.

Tudo se vai extinguindo nestas aldeias outrora tão profícuas de gente, cultura e vida...


José Coelho
10Julho19