quarta-feira, 17 de julho de 2019

O pastor de palmo e meio..

Foto José Coelho


Final do verão de 1963. Terminada a instrução primária e já com o diploma da quarta classe acondicionado na gaveta da cómoda onde a tia Florinda Lourenço guardava numa caixa os papéis importantes da família – a sua cédula de nascimento e a dos filhos, a cédula de nascimento e a caderneta militar do marido, a caderneta predial da casa e mais alguns – não havia vagar para mais brincadeira com a malta da minha idade porque era chegado o tempo de começar a ajudar nas despesas da casa. A vida era dura, o dinheiro escasso, todos os tostões eram por isso bem-vindos.

Nessa altura já a minha irmã Adelina, a mais velha, trabalhava há três anos como aprendiza na Alfaiataria Barradinhas – instalada onde noutro tempo fora a Conservatória do Registo Civil da Beirã e o Conservador era o senhor Graça – a ganhar cento e cinquenta escudos por mês. E eu não era nem mais nem menos que ela. Por isso logo no dia seguinte ao do exame que ditou o fim da minha formação académica, o meu pai “ajustou-me” de pastor na casa do ti Zé Maroco e da ti Olímpia, aquele simpático casal de agricultores que moravam junto à ponte da Beirã onde todas as tardes as senhoras iam buscar leite de vaca acabado de ordenhar.

Cinco mil réis por dia também. Devia ser a tabela para os aprendizes porque foi a jorna mensal combinada entre o patrão e o meu pai. Exactamente a mesma que a mana Adelina ganhava a costurar os fatos de homem no Senhor Barradinhas. Não sendo muito, cinco mil reis por dia dava para comprar um pão e metade de outro pois nessa altura cada um custava três mil réis com trinta centavos que toda a gente abreviava dizendo apenas “três mil e trezentos”. O ti Zé Maroco apascentava as vacas turinas, ordenhava-as e cuidava do asseio do estábulo, a ti Olímpia distribuía o leite e cuidava dos seus muitos afazeres domésticos entre os quais a minha merenda.

Eu passei a ser o aprendiz de pastor. Pacientemente – porque era muitíssimo boa pessoa – o ti Zé Maroco ensinou-me a mudar o bardo logo à primeira hora da manhã assim como todos os caminhos e tapadas por onde eu teria que pastorear o rebanho, que, não sendo muito grande, também não era muito pequeno. Seriam para aí umas trinta cabeças, mais coisa menos coisa. E lá ia eu de bornal às costas aviado com um quarto de pão, uma pequena marmita com toucinho e farinheira fritos, uma fatia de queijo duro e uma córna com azeitonas, para o almoço e para a merenda.

Já nesse tempo gostava muito de ler, por isso à merenda que a ti Olímpia metia no bornal eu juntava sempre algum livrito para ler enquanto as ovelhas pastavam. Uma coboiada emprestada pelo Zé Gonçalves ou por outro amigalhaço qualquer da minha idade, às vezes um calhamaço mais avultado dos que me emprestavam na biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian que vinha todos os meses à Beirã para esse efeito. Tudo corria muito bem até um final de tarde em que estávamos, rebanho e pastor, nos confins do isolado Monte Velho, bastante longe da aldeia.

Ao início da tarde começaram a surgir no céu vindos dos lados dos Carvalhos de Roque uns limbos negros e ameaçadores de trovoada que depressa cobriram todo o céu.  Não sei porquê sempre tive – e tenho ainda – pavor das trovoadas. Bem comecei logo a rezar a“santa Bárbara bendita que no céu estás escrita com papel e água benta livra-me Senhor desta tormenta...” ensinada pela minha avó Amélia, mas não me sossegou nada. Normalmente eu ficava sentado no cimo de uma pedra a ler enquanto ia vigiando o rebanho mas naquela tarde fugi imediatamente para perto das ovelhas para me sentir um pouco mais acompanhado.

Não tardou que os relâmpagos começassem a cruzar ininterruptamente as negras nuvens com o consequente ribombar dos trovões. E eu já quase a chorar aterrorizado sem saber o que fazer. De repente um clarão enorme, um zumbido arrepiante e um raio atingiu um grande sobreiro a uns duzentos ou trezentos metros do local onde eu estava mais as ovelhas, queimando-o de cima a baixo. O estrondo do impacto na árvore e o trovão ensurdecedor que se seguiu foram medonhos. Mijei-me de medo. Não havia mais que pensar. Reuni atabalhoadamente as ovelhas e obriguei-as a fazer correndo todo o percurso do Monte Velho até ao bardo que estava na tapada do ribeiro junto aos Três Castanheiros. Não seriam mais de quatro horas da tarde mas parecia noite.

Fechei o rebanho no bardo e corri para casa onde a essa hora não havia ninguém porque os pais estavam no seu trabalho, a irmã mais velha na alfaiataria e as mais novas na mestra. Escondi-me debaixo da cama e só de lá saí quando deixei de ouvir trovejar. Claro que não contei nada a ninguém. O pior foi que o ti Zé Maroco, o patrão, passou pelo caminho do ribeiro com as vacas turinas a caminho da ordenha e viu o rebanho já fechado no bardo a meio da tarde. A trovoada já soava longe e as ovelhas precisavam de pastar até ao anoitecer como nos outros dias, obviamente.

Na manhã seguinte, muito enxuto e comprometido, apresentei-me ao serviço antes do nascer do sol como era costume. Tinha à minha espera com cara de poucos amigos um ti Zé Maroco que na véspera tivera que deixar a ordenha das vacas a cargo da ti Olímpia para ir soltar e guardar as ovelhas até anoitecer, enquanto eu me escondia da trovoada debaixo da cama. E perguntou-me:

- Aonde foste ontem Zé Manel?
- Tive medo da trovoada e fugi para a minha casa. Respondi com verdade.
- Pois podes voltar para a tua casa que aqui já não tens mais que fazer!

Fui despedido.

Desolado e bastante inquieto com o que ia ser a reacção do ti Pixorra quando soubesse, e, pior um pouco, a da ti Florinda, por que essa então tinha uma mãozinha muito pronta e sempre lampeira para acertos contas. Entreguei o bornal da merenda que com o cagaço que apanhei nem havia comido toda.  Tinha só onze anos feitos em Março mas naquele tempo a tenra idade não era motivo para desculpar o que quer que fosse. 

Deste relato existe até hoje uma testemunha. Lá se encontra ainda, na parede do caminho quase ao pé da cancela de ferro da Tapada do Monte Velho, o toco que resta do sobreiro atingido naquela tarde pelo raio. Já o mostrei aos meus filhos e esposa a quem contei, em primeira mão e há bastante tempo, esta história verídica...

José Coelho
17jul’19